26 março 2008

O SÉCULO XIX

A visão da história do século XIX do recém falecido prof. René Rémond, que compreende o período entre o Tratado de Viena de 1815 até a primeira guerra mundial de 1914, só poderia ser mesmo de um francês, ou eurocêntrica, como ele próprio vai concluir no final do livro, quando define como europeizantes, enfim, todas as visões de mundo deste último século. Mas de modo algum esta visão compromete a lúcida abordagem do emérito professor da Universidade de Nanterre. Ignorando a tradição política inglesa da relação do cidadão com os impostos cobrados pelas monarquias, da Carta Magna do século XIII à Revolução Gloriosa de 1688, Rémond destaca a principal mudança da ordem monárquica francesa até 1789 para o início do século XIX que, sem dúvida alguma, é a demanda por consentimento para a cobrança do imposto através da exigência de uma ordem constitucional (rules of law da tradição inglesa).
Nesta perspectiva separa o século em quatro grandes influências doutrinárias: a ascensão do liberalismo no primeiro quarto do século, seguido da ascensão da democracia de massas, dos socialismos e nacionalismos.
É de se frisar, todavia, que todas estas doutrinas políticas respondem a uma mesma visão de mundo romântica que vigora do final do século XVIII até o século XX. E o professor contesta que o liberalismo, por exemplo, pode ser reduzido à expressão dos interesses de classe da burguesia, como vão martelar os socialistas e nacionalistas daí por diante.
Se os regimes das monarquias absolutistas intitulavam do direito político-eleitoral apenas os nascidos da nobreza, a Monarquia de Julho, depois da Restauração de 1830, incluirá os capacitados pelos títulos do conhecimento, da propriedade e da renda a partir de 200 francos, denunciando a demagogia republicana do sufrágio universal que prevalecerá a partir de sua queda pelas barricadas da Segunda República de 1848. Deste apogeu ao declínio do liberalismo francês, passaremos a identificar a própria república com as sucessivas lutas da democracia e dos socialismos, onde imperará o princípio de cada cidadão, um voto. Pois o fato de distinguir duas categorias de cidadãos, entre nobre da Câmara Alta e os plebeus da Câmara Baixa, é perfeitamente natural para o liberalismo que não compactua com a hipocrisia e a demagogia. François Guizot, um ministro da Monarquia de Julho, chegará a aconselhar: - enriquecei-vos os que querem participar do processo político! Ou seja: o reconhecimento da igualdade de todos diante da lei, da justiça e dos impostos, não exclui as diferenças sociais, de fortuna e de cultura!
Das garantias civis e políticas, através dos direitos de sucessão e do ensino fundamental, todos terão igualdade de oportunidades. Ultrapassando-se esta realidade a partir da metade do século XIX, as repúblicas instauradas caem no perigo de ver a democracia se tornar demagogia. Mas desde 1820-1830, os Estados Unidos estão experimentando a transição do sufrágio censitário para o sufrágio universal. Com a posse do General Jackson em 1828 pelo voto universal, excluídos menores, escravos, mulheres e iletrados, os Estados Unidos se consagram como regime essencialmente liberal. A segunda experiência é a francesa que, em 1848, abole a escravidão e adota o sufrágio universal, deixando o destino político do país nas mãos dos demagogos, quando, para um liberal-democrata o direito do voto só deve ser estendido àqueles com condições de independência para exercê-lo. Mas os democratas insistirão na tese de que mesmo a igualdade política diante da lei só se atinge pela igualdade de oportunidades, com o fim de diminuir as desigualdades de nascimento e de fortuna.
Todavia, é o próprio desenvolvimento capitalista das tecnologias que irá garantir o direito de acesso à informação. Desde o início do século XIX, é a venda de publicidade que derruba os preços das assinaturas dos jornais diários que, até então, eram objeto até mesmo de assinatura coletiva. Assim acontece também com várias outras conquistas de cidadania como bicamerismo com limitação de poder das câmaras altas, maior acesso às câmaras baixas, sufrágio universal com inclusão das mulheres, candidaturas universais, maior acesso ao ensino público fundamental, adoção de concurso público para as carreiras de Estado, maior acesso à carreira militar, maior acesso ao crédito bancário, justiça gratuita, saúde pública preventiva, partidos políticos instituídos, imposto progressivo sobre mercadorias e rendas etc.
No final do século XIX, o Estado exerce numa escala crescente o mecenato dos antigos príncipes renascentistas e passa, por conseguinte, a se tornar objeto da luta política concreta dos socialistas, justificando, inclusive, a ascensão do anarco-sindicalismo de Bakunin, que objetiva não apenas a abolição da propriedade preconizada por Proudhon, como a substituição do Estado por uma confederação de sindicatos, além da abolição do exército, da religião, da polícia e dos tribunais, radicalizando por assim dizer a crítica liberal do Estado. Cabe aqui uma citação do próprio René Rémond de que o melhor governo é sempre aquele que não se faz sentir, que se faz esquecer!
Na luta anarquista, o argumento da propaganda é substituído pela criação do fato político, enquanto atentado, como no caso do assassinato do arque-duque Francisco Ferdinando, estopim da primeira guerra mundial. A partir do século das revoluções, a ênfase dos nacionalismos será contrapontuada pela ênfase do internacionalismo socialista: a Primeira Internacional é fundada na cosmopolita e industrial Londres de 1864 é contemporânea de um ucasse imperial abolindo a servidão na Rússia czarista, campesina e feudal de 1861 como o decretado pelo iluminista e reformador Alexandre II. No entanto, é na Rússia que se fará uma revolução comunista em 1917 sem ter adotado o sufrágio universal que impediria o despotismo e a corrupção da nomenclatura soviética. É uma revolução cultural que determina as mudanças políticas e não apenas as condições históricas. A substituição do ambiente rural pelo urbano para a propagação das novas idéias políticas corresponde à supremacia do valor da segurança pelo valor da liberdade e, neste aspecto, se trata de uma revolução eminentemente cultural.
Seja como for, o que René Rémond quer destacar é a importância fundamental da vigência do romantismo como visão de mundo e sistema de valores sobredeterminante dos eventos políticos. Como no caso da ênfase no nacionalismo que foi a maior contradição do liberalismo, uma vez que implica no fortalecimento dos Estados nacionais. Enquanto foi uma grande arma nas mãos do socialismo internacional que os tornava apenas seções nacionais da Internacional Socialista.