30 novembro 2009

A cidadania como guardiã das instituições do Estado


Numa cultura de licenciosidade como a brasileira, o valor da liberdade perde um pouco de sua importância. Assim como numa cultura de violação legal e violência social a preservação da própria vida se torna uma coisa de menor importância e não um valor universal do legado civilizatório da humanidade.

Por fim, num país dominado pela tradição romântica e socialista do meio acadêmico e dos operadores da mídia, o valor da propriedade se torna irrelevante. As investidas de dominação das oligarquias políticas sobre o Estado e as conseqüentes distorções que provocam no livro funcionamento dos mercados resultaram num pacto com o diabo que comprometem os fundamentos do próprio Estado Democrático de Direito.

Em recentes reflexões dedicadas ao liberalismo e a responsabilidade política empresarial, procuro reposicionar o liberalismo como empoderamento das organizações da sociedade civil. Neste caso, temos que pensar e difundir as idéias de defesa do mercado, não apenas como espaço de trocas mercantis (concretas), mas, sobretudo, de trocas culturais (simbólicas). Pois não há possibilidade de desenvolvimento de mercados fora de um contexto cultural maior.

E não vale a pena discutir aqui o sexo dos anjos: o que determina o que, entre os espaços do mercado e os espaços da cultura. Assim como o cinismo dos que gracejam que o povo tem o governo que merece, quando na verdade somos nós enquanto elites que o merecemos pela nossa omissão política.

Urge, portanto, a tarefa essencialmente liberal de fortalecer a consciência de cidadania tanto dos indivíduos quanto das organizações. Para além de centros de estudo, urge mobilizar toda uma rede de organizações, movimentos e iniciativas convergentes, através da própria mídia e resgatar seus compromissos de responsabilidade política, assim como aglutinar as empresas comprometidas com a defesa do livre mercado e o retorno do Estado às suas funções precípuas.

Trata-se de resgatar uma guerra no campo da argumentação que foi perdida pela excessiva ênfase liberal no seu compromisso histórico com o racionalismo, e o seu conseqüente descaso para com o aparelho da propaganda, exemplarmente utilizado pelos socialistas. Desde os expedientes de manifestos e panfletos dos socialistas utópicos alemães e franceses, passando pelos comunistas marxistas-leninistas, até a agitprop stalinista e o esgotamento da mentira que não podia enganar a todos durante todo o tempo.

Em nossas terras, urge enfrentar a retardada utopia brasileira de um Estado de bem-estar social, de uma Estado provedor perigosamente onipotente pela nossa tradição sebastianista, na sua versão tupiniquim da social-democracia, que nada mais é do que um socialismo envergonhado, no dizer genial de Roberto Campos.

São mais de 500 anos em que está entranhado no nosso imaginário o providencialismo religioso, o paternalismo estatal e todas as fantasias românticas sucedâneas desta imagem-símbolo de nossa cultura de cordialidade, jeitinho e impunidade. Da crença no sebastianismo até os golpes de estado de nossa história recente, estamos sempre esperando por um salvador da pátria, um milagre da Providência, a fezinha numa loteria qualquer, ou a tentação por alguma medida heterodoxa.

No que toca à nossa organização social e política, somos resultado de uma combinação original das mais diferentes mazelas culturais: do nepotismo, corporativismo e burocratismo ibérico-português, ao cunhadismo tupi-guarani e o fetichismo africano.

Introduzir uma pauta de reforma do Estado, de modernização da administração pública, do destravamento da economia, da prosperidade do país e de uma cidadania plena e autônoma, diante desta herança cultural, é tarefa de grande magnitude e que requer persistência, objetividade, tolerância para a convergência de idéias básicas e, sobretudo, união de forças.

Não basta uma campanha de propaganda de uma iniciativa isolada, qualquer que sejam as boas intenções de seus titulares institucionais.

Temos de coordenar campanhas cívicas de uma vasta rede de atores institucionais, sobretudo corporações empresariais que assumam sua quota-parte de responsabilidade política empresarial e para além de seus programas de responsabilidade social empresarial, como também empresas do setor psico-social, de serviços e de comunicação, que poderão fazer toda a diferença. A exemplo do extraordinário esforço de reconstrução das instituições civis, jurídicas e políticas americanas no famoso episódio do crime doesn´t pay.

Se as instituições da religião e da família estão em crise mundial, arrastando com elas os três clássicos sistemas de reprodução simbólica de valores culturais, os sistemas jurídico-político e o de educação, que também se apresentam comprometidos com a dominante cultura de impunidade brasileira, nos resta exatamente o melhor deles, pelo menos do ponto de vista técnico, que é a mídia, para que concentremos esforços tanto para abrir espaços para nossas mensagens como para recuperar recursos conceituais, valores humanistas e novas estratégias de argumentação visando a missão cívica de superar vaidades e arregimentar corações e mentes.

Podemos apreciar as complexas relações da sociedade com o Estado sob várias óticas. A mais explorada, todavia, tem sido a ótica estritamente econômica da relação do Estado com os cidadãos pagadores de impostos. E não as dimensões históricas da cidadania enquanto titular de direitos civis à segurança e à justiça, como tampouco a cidadania política que intitula o cidadão eleitor de efetivo poder político mandatório.

Se de um lado os próprios cidadãos não se reconhecem como tais, aceitando a sutil e dissimulada figura de “contribuintes” que a própria burocracia fiscal lhes impôs, de outro lado, as iniciativas de combate aos desmandos dos governantes, conduzidas sempre pela parte do empresariado mais independente, se limitam às questões fiscais com campanhas ingênuas contra a carga tributária.

E tais argumentos não conseguem a adesão dos demais setores da sociedade, como pequenos e médios comerciantes, prestadores de serviços, profissionais liberais, meio acadêmico, artistas, estudantes, produtores rurais etc, mas sobretudo os operadores da mídia e da justiça como reprodutores argumentativos. Como se todos acabassem sendo cooptados pela tradição arraigada do mito do Estado providencialista e paternal.

A própria tradição do pensamento liberal, por seu compromisso histórico com o iluminismo, desdenha da retórica socialista com relação à onipotência do Estado. Quando nele repousa na verdade a esperança ontológica da humanidade por justiça, valor universal pelo qual muitos liberais passam desatentos de sua essencial importância como instituto garantidor da vida, da liberdade e da própria propriedade. Pois fora a falha justiça dos homens só resta mesmo a justiça das próprias mãos ou das mãos de Deus...

Quando a relação do Estado com os cidadãos pagadores de impostos não pode ser entendida apenas na dimensão econômica como cidadãos consumidores, mas, sobretudo, nas dimensões civil e política dos cidadãos moradores e eleitores (residents & voters). Trata-se, ao fim e ao cabo, de uma relação jurídico-política, onde o Estado, como contratado dos cidadãos para o provimento prioritário dos serviços da justiça, das garantias constitucionais da segurança, da vida, da liberdade e da propriedade, não tem cumprido a sua parte.

Quando, se formos aprofundar a análise semiológica do conteúdo de toda a opinião pública brasileira, através dos mais variados temas gritados pela mídia, como segurança, miséria, corrupção, violência, desigualdade, esperteza, desordem, prepotência, privilégios, impunidade, etc, poderíamos sintetizar no final num único e verdadeiro tema: a omissão da justiça. Portanto, para além de bater nos excessos de poder do Estado, urge mostrar que o rei está nu, que ele não tem cumprido com seu dever de casa, seu contrato básico de agente de segurança e árbitro dos conflitos da sociedade. Urge, portanto, empoderar a cidadania!

Desde nosso convívio acadêmico com Mario Guerreiro, lá se vão mais de vinte anos, nas dependências do IFCS da UFRJ, onde era o único docente assumidamente liberal, já nos perguntávamos por que nossas elites não assumiam uma estratégia de argumentação política baseada na afirmação da cidadania a partir de valores universais da civilização ocidental, através das idéias e princípios legados pelo pensamento liberal, que se tem sido no correr da história convincente sob o ponto de vista puramente racional, tem sido pouco persuasivo sob o ponto de vista de sua argumentação retórica.

Com sua histórica dificuldade, pela aparente dicotomia entre seu compromisso racional-iluminista e o recurso, se não da mera agitação política, pelo menos da propaganda, dos quatro valores universais, clássicos e intrinsecamente liberais, como a vida (enquanto segurança de vida), a liberdade (diante da opressão dos governos), a propriedade (enquanto extensão do indivíduo e sua própria identidade social) e a honra (enquanto justiça e respeito a contratos), três deles acabaram aberrantemente deturpados como condições de vida, liberdades sem limites e propriedade coletiva pela propaganda socialista.

Por esta razão, temos preferido disputar no campo da argumentação social-democrata o valor da honra, do respeito aos contratos, o que significa rigorosa e tão somente a justiça enquanto função-limite do Estado e serviço indelegável de garantia da segurança de vida, da inviolabilidade dos contratos da propriedade (que nada mais são do que títulos), das liberdades civis, enfim, da própria cidadania, que, se corretamente entendida, é em última instância a melhor trincheira da luta contra o Leviatã.

Nossa proposta institucional, não enquanto think tank, mas enquanto talk tank, tem sido a de colher idéias em estado de argumento, ou seja, mais do que convincentes para um auditório racional específico, persuasivas para uma audiência emocional geral e trabalhá-las editorialmente na mídia de massa.

Assim é que entre empresários, acadêmicos e profissionais liberais, temos percebido que todos, embora com a predisposição de focar seus argumentos contra a carga tributária do Estado, têm tido imensa dificuldade em obter adesão entre os demais atores sociais e cidadãos comuns de modo geral. Isto por que a questão da carga tributária no Brasil, por não ser destacada do preço dos bens transacionados, acaba não percebida pelos consumidores e considerada questão de interesse exclusivo do empresariado.

Algumas outras campanhas sobre a qualidade da educação pública, e mesmo originais soluções como o voucher educação, idéia brilhante, mas de cunho setorial, tem sido insuficientes para proporcionar maior identidade da causa liberal na opinião pública nacional. Isso pra não falar no comprometimento do próprio label pelos péssimos costumes políticos brasileiros, quando um certo partido chega a trocar sua identidade liberal por democrata...

Nossa experiência profissional, nos leva a convicção de que a justiça, como valor central do liberalismo, e entendida como instância maior da garantia e honra dos contratos, e a cidadania, como trincheira da sociedade civil organizada, podem vir a ser uma nova e original frente da luta argumentativa e se constituir na melhor e mais eficaz estratégia de argumentação liberal no país.

Contra este imaginário de cultura estatista-providencialista, temos de mobilizar recursos financeiros a curto prazo e recursos de comunicação a médio e longo prazos, junto a empresários de visão histórica, para:

• Produção de campanhas de responsabilidade política empresarial assinadas pelas mais variadas entidades e associações civis e empresariais em espaços mal utilizados para campanhas de filantropia, comunitárias ou de responsabilidade social das empresas de mídia;
• Constituição de um banco de espaços formado por bonificações de volumes extras da publicidade comercial paga pelas grandes empresas varejistas e anunciantes das empresas de mídia;
• Constituição de um fundo financeiro para aquisição de serviços e recursos conceituais e técnicos de comunicação como pesquisas, papers, consultorias, criação e produção de materiais;
• Desenvolvimento de um programa de monitoramento dos conteúdos do jornalismo e do entretenimento da mídia nacional, sobretudo em função da reprodução do imaginário estatista-providencialista, da legitimação da impunidade, dos preconceitos culturais e bloqueios mentais dos quadros gerenciais públicos e privados, da desmobilização da cidadania e da demanda generalizada (e equivocada por que sem a necessária contrapartida de deveres civis e políticos) pela demagogia de direitos sociais ilimitados;
• Organização de programas de oficinas, fóruns e seminários específicos junto a jornalistas editores e produtores culturais e de entretenimento para discussão dos valores humanistas e sua distorção na produção de conteúdos da mídia;
• Organização dos mesmos programas para demais segmentos formadores de opinião como operadores da justiça, entidades e associações empresariais e profissionais;
• Explicitar o imaginário preconceituoso da cultura brasileira criado, reproduzido e projetado pela mídia como as figuras caricatas do empresário ganancioso e transgressor, do político fisiológico e desonesto e do cidadão cúmplice e omisso;
• E também o imaginário preconceituoso da cultura brasileira criado, reproduzido e projetado pela mídia para os valores da justiça que não funciona (mais vale um mau acordo do que uma boa demanda), da liberdade enquanto licenciosidade, do lucro como cobiça e pecado, dos direitos sociais ilimitados, universalizados e sem custos aparentes, da falta das contrapartidas dos deveres de cidadania; enfim, da democracia enquanto desordem e da demagogia como fatalidade e outros fenômenos da cultura de impunidade nacional;
• Além da flexibilização dos papéis sociais da polícia e do bandido; contraventores e benfeitores; Estado e providência paterna para órfãos de cidadania; tesouro e teta da viúva; magistrados e sinecuras; administradores públicos e burocratas; empresários e delinqüentes econômicos; mulheres como guerreiras e paternidade irresponsável; responsabilidade social empresarial e filantropia como cidadania etc;
• Apenas a título de exemplo, temos desenvolvido atenção especial monitorando os conteúdos produzidos pela teledramaturgia brasileira e por programas jornalísticos de entretenimento, que justamente reúnem a ficção e a realidade numa mesma argumentação, reproduzindo a um só tempo, não apenas a ilusão do Estado provedor onipotente, como também uma cidadania desmobilizada e mendicante.

Por fim, se o conceito da própria propriedade é inapropriadamente desentendido no Brasil como desapropriação da propriedade privada pela sua apropriação como propriedade coletiva, de maneira ilegal, autoritária e boçal, uma vez que para a sua própria condição de possibilidade é o consentimento do cidadão titular da propriedade privada para a existência da própria propriedade coletiva, quando o valor que se impõe urgentemente é o da própria Justiça que a própria propriedade, juntamente com a vida e a liberdade, institui através do Estado.

Com isso, poderemos desmanchar o imbroglio cultural brasileiro que toma o público, que deveria ser de propriedade de todos, como sendo de ninguém ou, no máximo de quem dele se apropria e o privatiza pela força e de forma vil. Nossa causa, portanto, é a de privatizar tudo que possa ser privatizado, menos o próprio Estado, que deve ser resgatado urgentemente como bem público.

Esta é a estratégia de argumentação de uma cultura de cidadania, que, para além de entendida como urbanidade, solidariedade, caridade, civilidade, direitos sociais ilimitados, e responsabilidade sócio-ambiental, deve ser entendida como direitos e deveres civis e políticos, responsabilidade política empresarial, como consciência e exercício de controle social sobre mandatos políticos, planos de governos e aplicação dos orçamentos públicos.

Para que se cesse no Brasil o que já chamamos de desordem e regresso de nossa cultura de governantes patrimonialistas, falsos provedores de insaciáveis demandas por direitos sociais e omissos na defesa da vida, da liberdade e dos contratos.