21 setembro 2007

Cidadania e classe social


Cidadania e classe social
Thomas Humphrey Marshall, 1893 - 1981

Leituras sobre cidadania, Senado Federal, MCT/CEE, Brasília, 2002 Editora Zahar, Rio de Janeiro, 1967
Editor: Senado Federal/Ministério da Ciência e Tecnologia – CEE Ano: 2002

Obra prima e marco nos estudos da cidadania como um dos mais complexos conceitos de toda a filosofia política, este livro do sociólogo inglês da LSE foi originalmente apresentado em conferência de 1949, quando definia historicamente a cidadania como uma sucessão dos direitos civis, políticos e sociais, além dos deveres.

Os direitos civis correspondem aos direitos relativos à vida, à segurança e às liberdades individuais, mas sobretudo ao direito à propriedade, aos contratos e à justiça.

Os direitos políticos devem garantir aos cidadãos de um determinado Estado a participação livre na atividade política, seja como membros de organismos do poder político, seja como simples eleitores de representantes nesses organismos. Os direitos sociais respondem às necessidades humanas básicas, assegurando o direito a um bem-estar econômico mínimo, relacionam-se principalmente com o direito a salário, saúde, educação, habitação e alimentação.

A esses diferentes tipos de direitos correspondem quatro conjuntos de instituições: os tribunais, para salvaguardar os direitos civis; as assembléias representativas, locais e nacional, como fóruns legislativos e de decisões políticas; os serviços sociais dos executivos para garantir o mínimo de saúde e viabilizar o acesso à educação.

Mas a noção de cidadania implica direitos e também deveres, sobretudo os de agir social e politicamente de forma a garantir aos demais cidadãos estes mesmos direitos, o que só foi possível com as conquistas do direito eleitoral, na França em 1793 e na Inglaterra somente em 1832, mesmo assim para homens proprietários, excluídos servos, desempregados e mulheres. Ou seja, como integrante de uma coletividade, todo cidadão deveria respeitar o acesso de seus concidadãos aos direitos básicos.

Marshall periodiza os fatos históricos relativos à esfera dos direitos nos Estados modernos europeus atribuindo a séculos diferentes o surgimento de cada tipo de direito. Assim os direitos civis seriam os primeiros, surgidos no século XVIII; os políticos estão ligados ao século XIX; e os sociais, ao século XX. Sendo que a literatura sociológica moderna atribui ao século XX o surgimento de uma quarta geração de direitos difusos relativos aos direitos dos consumidores e do meio ambiente. O que abriria na nossa concepção um novo campo de direitos econômicos ao consumo consciente e ao controle social dos governos, mandatos e orçamentos públicos como forma de garantia de fato dos direitos sociais e não de sua manipulação demagógica pelos políticos.

A noção de cidadania, se foi algum dia relativa às liberdades no âmbito das cidades, se nacionalizou a partir das constituições dos estados nacionais europeus durante os séculos XVIII e XIX, assim como se universaliza numa cidadania planetária a partir do século XX. A noção de igualdade perante a lei, por outro lado, vai garantir a possibilidade de mobilidade entre as próprias classes sociais, superando a noção socialista utópica da distribuição igualitarista da riqueza social e da quebra dos valores universais do contrato e da propriedade. A própria diminuição da desigualdade social foi uma conquista da evolução do próprio capitalismo que garante acesso pelo menos aos direitos sociais fundamentais para a livre competição.

O próprio princípio da justiça social, questionado pelos liberais, é tão somente para subsidiar os custos da justiça para quaisquer litigantes, mesmo os hipossuficientes, garantindo os direitos civis fundamentais. E não para intervir na desigualdade de renda social ou tentar eliminá-la a qualquer custo, o que acabaria cerceando as liberdades da livre iniciativa sem a conseqüente garantia da extinção das mesmas desigualdades. O direito de ter direitos, como definição clássica da cidadania, é na verdade a garantia de isonomia diante das leis, a igualdade de oportunidades, que só é garantida de fato pela eliminação de privilégios, pelo igual direito de ser desigual e pelo exercício dos deveres civis e políticos dos cidadãos. Desigualdades sociais podem ser admitidas como fruto de méritos empresariais, autorais ou ganhos pela assunção de riscos, garantidas a propriedade e sua sucessão, mas jamais pela desigualdade de oportunidades advindas de privilégios hereditários.

Se corretamente lido, verificaremos que, mesmo simpatizante de um socialismo fabiano, Marshall considera possível a elevação do nível geral de civilização dos trabalhadores sem no entanto interferência no livre funcionamento do mercado.

Biografia: http://www.lse.ac.uk/resources/LSEHistory/marshall.htm

Onde comprar: http://www.seep.ws/produtos.asp?produto=223

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19 setembro 2007

A formação das almas

A formação das almas
José Murilo de Carvalho

O imaginário da república no Brasil - O que se constata com a leitura deste belo ensaio de nosso maior historiador é o quanto a república foi um movimento sem raízes na cultura popular brasileira ainda muito marcada pelos símbolos monárquicos do longo segundo reinado. Para tanto, esforçam-se os republicanos a formar a alma brasileira nos padrões da propaganda do “orador do povo” Mirabeau que, nos anos de consolidação da República francesa, funda o Bureau de l´Esprit no Ministério do Interior justificando: “não basta mostrar a verdade, é necessário fazer com que o povo a ame, é necessário apoderar-se da imaginação do povo.”

O modelo republicano francês vem a prevalecer diante do modelo liberal americano pela profusão de símbolos e pelo misticismo romântico da comemoração do centenário da Revolução francesa em 1889. Na verdade, acabamos por substituir uma monarquia parlamentarista das mais avançadas da época por uma república oligárquica. Como se na guerra de secessão americana terminassem por ganhar as forças latifundiárias e conservadoras sulistas. Neste republicanismo positivista, a clássica liberdade político-fiscal inglesa, que funda a cidadania na esfera de sua relação com os governantes, se dilui em românticas liberdades civis de expressão, locomoção, credo e associação.

A visão jacobina (radicais sans-cullotes que se sentavam à esquerda no salão das reuniões dos revolucionários franceses) da república brasileira identificou a monarquia com o Ancien Régime, quando a nobreza brasileira era apenas nominal e não hereditária e o índice de moralidade um dos mais altos de toda a nossa história. A legenda católica de que “não existia pecado a baixo da linha do Equador” acaba se transformando na legenda de não existência da própria lei, o que dificulta a cultura brasileira na ordenação do Estado. Tínhamos uma tradição de espírito explorador capitalista sem a correspondente virtude da ética protestante. Talvez aqui se explique a razão de nossa orfandade sebastianista: como em Totem e Tabu, assassinamos o pai monarca mas não constituímos o império da lei, essência de uma verdadeira república.
Como fica claro, os dois maiores símbolos nacionais da república não são da república, uma vez que o hino nacional de Francisco Manuel da Silva foi composto em 1831 em homenagem à abdicação de D. Pedro I e coroação de D. Pedro II. E a bandeira apenas redesenhada com a legenda positivista, uma vez que as cores e os elementos geométricos de nossas riquezas já estavam na bandeira imperial. Na verdade o evento da proclamação da república não passou de uma passeata militar entre o Itamaraty e a Assembléia Legislativa, com a deposição e expatriação de D. Pedro II. Deposto o rei, tal qual a simbologia da revolução francesa, passa-se a representar a república pela figura feminina inspirada em Palas Atena, símbolo da guerra justa e da liberdade (vide a própria representação da estátua da liberdade americana doada pela república francesa). Só que, positivistas, nossos republicanos concebem um Estado provedor, uma pátria mátria no dizer de Comte, como na famosa escultura de Honoré Daumier em que Palas dá as tetas (da viúva?) aos filhos da república. O valor maior do positivismo, o altruísmo de uma sociedade cujo Deus é a própria humanidade e seus sábios os santos, é de natureza feminina que, enquanto mãe, pensa mais no filho do que em si mesma. Mesmo os opositores do novo regime, dilaceravam a simbologia da res publica como uma mulher pública, prostituta. Mas, se as virtudes da república podem ser contestadas, certamente não poderiam no regime machista monárquico. Como nenhum dos candidatos a heróis masculinos pegaram, de Deodoro a Benjamin Constant ou Floriano, restou desenterrar Tiradentes de quase um século antes, ou recuperar a figura religiosa de Nossa Senhora da Aparecida, negra e brasileira.

Mesmo com relação à legenda inscrita na nova bandeira redesenhada por Décio Villares, resta obscura a exclusão do segundo elemento do tríptico comteano: ordem como base, amor como princípio e progresso como fim. Conforme já nos referimos aqui, o amor comteano não se trata do amor eros ou filos, mas era o amor ágape do sentimento de nobreza com relação ao povo, entendido este amor classicamente, como a expressão afetiva da justiça, assim como a justiça era entendida como a expressão social do próprio amor.

De qualquer jeito, o que marca o positivismo romântico brasileiro é a contradição da superação da base da razão (a ordem) pelo amor (o princípio) para se chegar à ação-fim (progresso), quando na verdade o que se suprimiu no tríptico comteano foi o próprio princípio do amor-justiça. Esta seria o grande mistério da formação de nossas almas tão mais afeitas ao individualismo e a omissão política e incapazes de construir uma verdadeira cultura de cidadania. Parodiando a pietá de Michelângelo, José Murilo nos representa Nossa Senhora Aparecida tendo o Tiradentes esquartejado de Pedro Américo como símbolo de nosso povo!
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