05 dezembro 2012

Os empresários e a mídia


Não apenas políticos populistas, mas também a mídia sensacionalista adora alardear os movimentos sociais. O que frequentemente leva aos mais incautos a tomar como multidões de manifestantes uma meia dúzia de gatos pingados que caberiam num furgão. Outros movimentos como os empresariais já não rendem tanta manchete ou escalada de telejornais. Afinal, são menos cenográficos e mais propositivos, o que não dá margem a imagens e chamadas de impacto. Se fizermos uma rápida enquete junto às audiências televisivas veremos que ninguém ouviu falar na Ação Empresarial, no MBC – Movimento Brasil Competitivo, ou no MBE – Movimento Brasil Eficiente.Movimentos empresariais que já duram há vários anos e lutam por reformas estruturais do Estado brasileiro e por políticas públicas que envolvem interesses não apenas corporativos do setor, mas o bolso de todos nós, cidadãos eleitores, consumidores e pagadores de impostos.

Vejamos este último, o MEB, que propõe uma reforma tributária gradual e realista para a próxima década e que já tem mais de 100.000 apoiadores em seu site. Como todo mundo sabe, um dos grandes entraves para o desenvolvimento pleno do Brasil é a elevada carga tributária que pesa sobre a sociedade, especialmente aqueles que estão nas faixas mais baixas de renda.Segundo o Instituto Brasileiro de Pesquisa Tributária, hoje os cidadãos brasileiros comprometem pelo menos 40% da sua renda bruta para os fiscos federal, estadual e municipal. Na prática, o cidadão trabalha hoje cinco meses por ano apenas para pagar tributos. É muita coisa, principalmente se comparamos com os serviços precários que os governos oferecem em troca para a sociedade.

O movimento se iniciou há poucos anos a partir de diversos agentes envolvidos com o setor produtivo nacional, como federações empresariais e empresas de diversos segmentos, mas ganhou a adesão também de várias associações civis de profissionais liberais e cidadãos trabalhadores, todos em torno de uma proposta de simplificação fiscal e tributária que garanta ao país um crescimento econômico sustentável, consistente econstante. A ideia é diagnosticar e propor soluções que revertam esse quadro tributário perverso e pouco transparente.

Segundo um de seus idealizadores, o economista Paulo Rabello de Castro, dentre as várias propostas do MBE, a que tem mais chance de conquistar apoio da maioria da sociedade, e dos setores público e político, seria uma diminuição gradual da carga de impostos e do déficit público ao longo dos próximos 10 anos. Mais ou menos 1% ao ano. Assim, depois desse tempo chegaríamos a uma redução de 10% na carga, o que nos traria de novo para perto da carga tributária de países mais desenvolvidos, ou da já praticada no Brasilantes da década de 90. Para fazer a ideia dar certo, o MBE tem algumas propostas, como reduzir a taxa básica de juros, racionalizar o conjunto de impostos cobrados hoje e também desenvolver a infraestrutura dopaís para que a produção industrial possa aumentar e gerar empregos com menores custos.Mas tais propostas não são visíveis na mídia de massa, para não dizer que se segregam apenas no noticiário econômico e de negócios, de resto percebidos pela opinião pública como se fossem de interesse corporativo exclusivo do setor empresarial. Se todos os formadores de opinião já estão carecas de saber queum dos maiores entraves para o desenvolvimento pleno do Brasil é a elevada e injusta carga tributária que pesa sobre a sociedade, especialmente sobre os que estão nas faixas mais baixas de renda, como não conseguem argumentar exatamente para os maiores interessados?

A ideia da simplificação fiscal e tributária que garanta ao país um crescimento econômico sustentável, consistente, constante e acelerado tem como inimigos apenas os que se aproveitam de um Estado-empresário hipertrofiado, injusto, perverso e pouco transparente e todos sabemos quem são: políticos corruptos, empresários corruptores e burocratas oportunistas. E o Brasil em sua grande maioria está cansado deles! Se vivemos numa democracia por que o interesse da maioria é solapado pelo de uma minoria? Tenho refletido bastante sobre o papel do uma nova estratégia de argumentação do empresariado na articulação de uma agenda mínima comum, e que tenha efetiva eficácia de argumentação junto aos demais setores sociais e me parece que seja exatamente o tratamento da comunicação, a própria estratégia de argumentação, o que falta. Por que o empresariado, que sustenta o setor de mídia via publicidade comercial de seus produtos e serviços, se revela ingênuo na hora de negociar sua estratégia de comunicação de interesse público.

Como não pretendo inventar a roda, passei anos estudando o mesmo fenômeno em culturas de instituições democráticas mais sólidas como a inglesa e americana. E constato que os movimentos empresariais brasileiros carecem exatamente do que sobra nos movimentos sociais: a sua habilidade de relacionamento com a mídia. E aqui friso a mídia, não apenas a imprensa. Enquanto que a classe política que os mesmos empresários financiam em cada eleição, continua a boicotar todas as agendas de reformas, uma a uma, olimpicamente, na certeza de que a pauta da mídia não mudará. A não ser uma ou outra notícia esparsa em algum programa jornalístico de baixa audiência, mas jamais na vertente de entretenimento da grande audiência, onde realmente se conquistam corações e mentes, se mudam valores, se produz cultura, se cria o imaginário social e político de um país. Onde a escala de 100 mil pode chegar a milhões de adesões, patamar a partir do qual os políticos via-de-regra começam a se mexer.

07 novembro 2012

A percepção da corrupção


 A propósito de meu último artigo nesta página sobre “A corrupção dos valores”, no momento em que toda a nossa atenção se volta para os efeitos das sentenças do Supremo nos nossos costumes políticos, faltou comentar sobre o índice de percepção da corrupção elaborado anualmente pela Transparency International, uma vez que coloca o Brasil como tendo caído quatro posições no ranking entre 182 países pesquisados de 2010 a 2011. Em sentido oposto, os editoriais da grande mídia já anunciam o início do fim da cultura de impunidade, enaltecendo o nosso herói nacional Joaquim Barbosa que enfrentou com destemor “os dragões da corrupção”.  Nem tanto ao mar, nem tanto a terra. Com relação ao índice da percepção da corrupção faço aqui uma consideração que me parece preliminar: será que os mais de 3.000 entrevistados que alimentam este índice tem de fato uma consciência crítica sobre o fenômeno da corrupção sistêmica dos próprios valores universais da moral pública e que antecedem a própria corrupção política? Ao analisar a maneira como a mídia aborda o fenômeno, desconfio que não, uma vez que ela é a grande fornecedora de significados para a construção do imaginário social. Sobretudo agora nas matérias de cobertura do mensalão, não vejo a mídia explicitando a necessária conexão causal entre os dois universos da corrupção dos valores morais no âmbito da produção da cultura como um todo e no de sua expressão política propriamente dita. Pois a má conduta no trânsito pelo cidadão comum, por exemplo, e o desvio do dinheiro público pelos titulares de mandatos e agentes da lei, se alimentam da mesma fonte que é a própria corrupção dos valores morais no imaginário social de cada um deles. Neste aspecto, tenho desenvolvido a hipótese de que somos “campeões de impunidade”, como a mídia hiperboliza, apenas por que é a própria mídia que alimenta esta percepção quando repete ad nauseam a extraordinária má conduta política de nossos governantes, na crença de que cumpre seu papel institucional do dog watch journalism, mas criando colateralmente o fenômeno de consenso de que “nada adianta fazer contra um traço atávico de nossa cultura, cada povo tem o governo que merece, este é o (mau) caráter do próprio povo brasileiro”, e por aí vai. Chego, então, a hipótese de que o que a Transparência Internacional chama de “percepção da corrupção” na verdade é a percepção oferecida pela própria mídia, cobrindo as elites detentoras de poder político diretamente no setor público ou indiretamente no setor privado empresarial, mesmo que subsidiados pelos chamados “queridinhos da mídia”, alguns artistas, consultores e acadêmicos, ditos formadores de opinião.

Enquanto a boa conduta política da maioria dos cidadãos de bem, embora em muito maior número e frequência, é raramente atendida pela mídia, que se nega por puro preconceito a cumprir sua missão de civic journalism. Tenho dito, aliás, que a mídia no Brasil confunde civic com cinic journalism. Uma vez que ratifica o poder imperial do poder executivo em detrimento direto de um legislativo que só cobre desmoralizado e ignora solenemente o cotidiano do judiciário, até mesmo por que se julga juiz que condena, promotor que acusa e polícia que investiga, na arrogância típica dos que ignoram. Junte-se a isto que o próprio Poder Judiciário brasileiro ainda resiste à transparência pública e o sistema educacional se limita precariamente à função de aprendizagem e transmissão de conhecimento, jamais de valores morais, além da desconstrução na sociedade contemporânea da estrutura familiar e religiosa, só nos resta mesmo a sensação universal de impunidade e a percepção da corrupção como uma fatalidade civilizatória.

Se a própria TI na metodologia de sua pesquisa do índice de percepção da corrupção desconsidera estas diferenças estruturais da cultura institucional e política propriamente dita, de cada um dos vários países que monitora, contra quem e contra o que estaremos combatendo, afinal? Se não pelas diferenças fundamentais de respeito aos valores universais da tradição moral, como a vida, a liberdade, a justiça e a propriedade, pelos gestores institucionais do sistema de produção simbólica do imaginário social, como a própria mídia, a educação, a justiça, a família e a religião, como explicar índices tão contraditórios entre países de origem territorial e cultural semelhante? Como no caso de China (3.6) e Hong Kong (8.4) ou Taiwan (6.1). Ou Coreia do Norte (1.0) e Coreia do Sul (5.4). Ou Indonésia (3.0) e Nova Zelândia (9.5). Ou Iraque (1.8) e Israel (5.8). Venezuela (1.9) e Chile (7.2). Ou mesmo no âmbito da desenvolvida Europa, como no caso da Alemanha (8.0) e Itália (3.9). Embora em regiões e culturas semelhantes, a percepção da corrupção não é apenas um dado a marcar opostos costumes políticos, entre demagogias ditatoriais e democracias institucionais, mas também um dado da percepção dos próprios valores universais da vida, da justiça, da liberdade e da propriedade e das instituições de estado que os garantem como direitos fundamentais do cidadão.

02 outubro 2012

A corrupção dos valores

Há uma corrupção maior na cultura política brasileira do que a corrupção de quaisquer dos crimes contra a administração pública que o Supremo está a destrinchar. É a corrupção dos valores. Por exemplo, o valor da liberdade que nunca é limitado pela lei, mas tomado sempre como licenciosidade, liberalidade ou abuso da liberdade de se achar que se pode fazer o que lhe venha na telha. A liberdade corrompida pela perspectiva exclusiva de sua própria identidade e jamais da alteridade. A minha liberdade começa quando acaba a do outro, já disse o humorista crítico de nossos maus costumes sociais. O que dizer então de outros valores universais da tradição humanista judaico-cristã? Como a justiça que é sempre espichada para uma enviesada justiça "social" que pode inclusive atentar contra o próprio senso comum da justiça? Ou a propriedade que não se limita ao que é próprio de sua identidade, função social, ofício ou trabalho, mas via de regra quer se apropriar do que é comum a outrem, ou a própria coisa pública, própria de todos os cidadãos. Ou o valor da vida que se amesquinha como "condições" de vida para tentar justificar arbitrariedades e abusos de poder. Os libertários querem colocar o valor da liberdade como bem supremo, mesmo que negando os demais valores, como a propriedade, a vida e a justiça. Como os igualitários querem trocar a igualdade perante a lei por uma igualdade social acima da própria lei. Vejam o caso da liberdade de imprensa que se quer colocar como um bem absoluto e acima da própria vida, como o mundo todo está a assistir desde que se postou na internet um vídeo ridicularizando o profeta Maomé, sagrado para a confissão muçulmana de milhões de seres humanos. Ou o semanário francês de humor que afirmou o seu direito à liberdade de expressão, mesmo que ponha em risco a vida de milhares de inocentes pela ação revoltosa de fundamentalistas islâmicos de todo o planeta. Haveria de fato possibilidade de garantia de qualquer liberdade, de qualquer propriedade e a de qualquer sombra de justiça sem a garantia da vida, ou mesmo relativizando o seu valor, que é intrínseco ao próprio humanismo? A vida é o valor dos valores, o bem supremo, o único que não pode ser relativizado sem colocar todos os demais valores em risco. Como a propriedade, por exemplo, de que propriedade se trata mesmo quando é fruto da usurpação da vida? E de que justiça se trata quando à custa de uma única vida humana? De que liberdade se trata quando se atenta contra a vida de outrem? Sem a vida como medida de todos os demais valores, tudo se torna falso e corrompido de sentido humano. Pois, para além de qualquer especulação filosófica ou religiosa, se os valores da propriedade, da liberdade e da justiça são derivados da ação humana, a vida é um dom que transcende ao próprio homem. Pois são na verdade corruptelas de justiça, de liberdade e de propriedade tais valores quando atentam contra a vida. E que sentido faz quaisquer liberdades de expressão, crença, associação e locomoção se sua condição de possibilidade é estar vivo para exercê-las? Que sentido a justiça e seus derivados de lei, ordem, segurança e honra (a palavras e a contratos), se sua condição de possibilidade é estar vivo para exercê-las? Que sentido a propriedade quando abusa de ser exclusivamente própria e atenta contra a propriedade de outrem, colocando a vida sob ameaça. A própria legalidade se esvazia de moralidade quando atenta contra os direitos de outrem. A liberdade da ação humana deixa de ser livre quando se quer absoluta e ilimitada às custas da liberdade de outrem. Simplesmente por que se corrompem quando não balizadas pelo valor absoluto da vida.

No que toca aos costumes políticos brasileiros estamos a padecer exatamente da superestimação das liberdades individuais em detrimento do valor da vida. E assim é que moldamos a sociedade mais violenta sob o rótulo hipócrita da tolerância de costumes e de diferenças étnicas e sociais. Vejam o caso da cultura da impunidade dominante que começa enfim a ser desmontada. Vejam o caso do abuso do direito defesa da lei penal, da procrastinação infinita da execução penal dos cidadãos oriundos das elites sociais diretamente proporcional às execuções sumárias dos delinquentes de baixa renda que, se consumadas pelo aparelho policial, jamais alcançam o domínio da justiça. Se não a lerdeza judiciária, atentem para o patrulhamento impiedoso de poderosos grupos econômicos, até mesmo contra a autonomia das funções reguladoras do estado. Vejam o caso recente do questionamento da chamada Lei Seca, como se a liberdade de dirigir um carro bêbado fosse absoluto diante da ameaça da vida de outrem. Vejam o caso do questionamento das regulações sobre a restrição da publicidade médica, de guloseimas, de tabaco, onde as próprias indústrias do ramo são a favor como forma de proteção da infância, o que não significa que um adulto de plena posse de suas faculdades mentais e civis não tenha até mesmo o direito de dar cabo à sua própria vida, suspendendo para isso a responsabilidade de o estado, ente público por excelência, lhe amparar, cuidar e tratar. Pois a minha liberdade não pode de fato começar quando acaba com a do outro, como disse o humorista com fino sarcasmo.




01 setembro 2012

Na contramão da Avenida Brasil

É perturbador como a mídia de massa percebe o país. De um lado, dramáticos conflitos estão para se suceder nesta nova fase do julgamento do mensalão no STF. Onde baixaram os espíritos de Carminha e Nina se digladiando por entre as togas. Por outro lado, se a Avenida Brasil baixou no Supremo, não há a mais remota hipótese de que qualquer instituição judiciária, sequer uma delegacia de política, ou um promotor público, sequer um juiz de vara criminal, quanto mais o Supremo, venham a visitar o roteiro da novela-fenômeno do Ibope. Na fase das defesas a cobertura do “julgamento da história” andou fraca. Muito juridiquês para poucos tipos penais. Quando na passarela da Avenida Brasil desfilavam quase todos os tipos do Código Penal, do abandono de menor ao atentado a vida, roubo, estelionato, cárcere privado e até estupro.


O drama criado pelo noveleiro-sensação do momento, numa sucessão vertiginosa de embates de vingança, ódio e paixão, reserva para a classe emergente do subúrbio o papel de uma sociedade tribal, detentora apenas do código de Hamurabi das mais priscas eras, onde ainda não havia a instituição da justiça propriamente dita, e sim a da retaliação. E qual o saldo que fica no imaginário do cidadão comum? Se conquistamos nos últimos anos um sistema judiciário, que, apesar de todas as mazelas, está funcionando, temos um imaginário social projetado sem a menor sombra da justiça institucional, relegado à justiça selvagem dos que a fazem com as próprias mãos. Pois se a trama é eletrizante é justamente porque só dá conta dos sentimentos primários da barbárie, da selvageria da vingança e do salve-se quem puder.

A pena de Talião nos eletriza e nos paralisa. Como quando vemos uma vítima estraçalhada por um atropelamento na rodovia e suspiramos aliviados de que escapamos enfim de mais uma trama do destino. A retaliação é o estágio que nos cabe da justiça, o que foi dado ao povo brasileiro cultivar no seu imaginário, a experiência cotidiana da insuficiência das instituições jurídicas, a eloquência de sua ausência! Estas que são a verdadeira função do estado, em prover e distribuir a justiça pros cidadãos em troca do imposto que recolhe. E como o estado falha, a audiência se entrega de corpo e alma aos relatos das grandes vinganças e traições, das retaliações do olho por olho, dente por dente, anterior ao Código Mosaico, que é marco fundador de todos os valores da tradição judaico-cristã. Este é exatamente o salto civilizatório que não conseguimos dar. E, neste sentido, é eloquente o silêncio do autor do folhetim com relação à ausência de qualquer instituição no enredo puro de paixões as mais extremadas. Mesmo ‘Tropa de Elite’, que estourou a audiência há algum tempo atrás, pelo menos havia a polícia onipresente no lugar da ação de promotores e juízes. Mas nessa avenida de agora, não passa sequer uma viatura da polícia! Sequer um guardinha transeunte no alvoroço do centro comercial do Divino.

Mas afirmo: está longe de o Brasil caber nesta avenida, que se limita a uma luta selvagem de classes de patrão com empregado, de vilões endiabrados contra mocinhos quase sempre babacas, crédulos e cornos-mansos como Tufão, Jorginho, Adauto, Monalisa, Tessália e Ivana. Uma perversa redução dos valores da sociedade brasileira a cenas inverossímeis e grotescas, reforçando uma cultura ultrapassada de tolerância para com a impunidade e imoralidade que tem sido repudiada nos últimos anos. Ou cinco milhões de brasileiros lutando pela lei de iniciativa popular da Ficha Limpa, ou 20 milhões de cidadãos votando em ética na última eleição, é delírio? Só se for aos olhos míopes do autor. No plano do real, mesmo que ardendo na fogueira das vaidades togadas pela inflamável cobertura midiática, mesmo exarada a sentença final do julgamento do mensalão, ela não será o clímax, senão a conclusão de uma etapa do processo de lenta afirmação das instituições sobre a tradição de arbítrio dos donos do poder, nossos oligarcas e demagogos de sempre. Pois o show só pode acontecer depois da prévia e diligente “produção” de instituições como a Polícia Federal, a Receita Federal, o Tribunal de Contas, o Ministério Público, todos funcionando como a condição de possibilidade de funcionamento do próprio STF! Mas segue a novela de nossa marcha inexorável para um novo patamar de civilização, a despeito da limitação cultural de nossos produtores de entretenimento, nossos arquitetos de almas, noveleiros de imaginários tão eloquentes de audiência quanto ausentes de valores e instituições de que tanto carecemos. E fica o alerta: o Brasil é bem maior do que a avenida de mesmo nome! Fica também a aposta que no Supremo estamos aprendendo a condenar Rita, Carminha, Max, Leleco, Muricy, Silas, Nilo e tantos outros que fazem pouco de nosso povo, que querem nos convencer de que somos assim mesmo, cidadãos de segunda classe, sem ética política, sem moral definida, sem responsabilidade ou respeito por leis e pelos direitos do próximo, com o fatal traço cultural da carne fraca, dos que não jogam pedra em telhado de vizinho, dos omissos e licenciosos de sempre. Quem viver, verá!

11 agosto 2012

Fausto, o filme de Sokurov

Grande vencedor do Festival de Veneza 2011, o filme do diretor russo é uma transposição fidedigna para o cinema de uma das obras mais importantes da literatura mundial – o Fausto, de Goethe (1749-1832) e conclui sua tetralogia sobre o poder que parte de três personagens cruciais da história mundial: Hitler (em Moloch, de 1999), Lênin (em Taurus, de 2001) e o imperador japonês Hiroito (em O Sol, de 2005). A diferença é que a série se conclui, não com um personagem histórico real, mas com uma lenda, talvez o mais importante mito do poder político do século passado e um dos mitos mais frequentes do imaginário social ocidental. Poderíamos mesmo afirmar que a lenda de Fausto está na linha paradigmática dos grandes mitos clássicos de Adão, na tradição judaica, e Prometeu, na tradição grega. Extremamente pictórico, o filme também dialoga claramente com as pinturas de Bosch e Rembrandt, especialmente na cena do encontro entre Fausto e sua amada, Marguerite. Como admitiu o próprio Sokurov: “Sem dúvida alguma, as tradições e a estética de Rembrandt influenciaram a evocação visual em meu filme”. E não foi esta a primeira, como não será a última vez que a obra de Goethe é adaptada para o cinema, com destaque para Fausto do grande cineasta expressionista alemão, Friedrich Murnau, de 1926, La Beauté du Diable de René Clair, de 1950, Doctor Faustus de Richard Burton, de 1967, Faust de Jan Svankmajer, de 1994 e Faust: der Tragödie Erster Teil de Ingo J. Biermann, de 2009. Considerado a anunciação da modernidade, a lenda de Fausto se espalhou a partir do iluminismo alemão por todas as culturas europeias. No intuito de compilar tudo quanto se acreditava e se dizia acerca de Fausto, Johann Spiess, livreiro e escritor de Frankfurt, compôs no ano de 1587 a primeira narrativa literária dessa personagem. Era um volume de 227 páginas, intitulado como a Historia von dr. Johann Fausten, cujo enredo contava como ele se vendeu ao diabo a prazo estipulado, as extraordinárias aventuras que viveu nesse ínterim, a magia que praticava, e por fim sua danação e morte. Tudo isso publicado para servir de advertência sincera contra os que levavam a curiosidade intelectual além do limite estabelecido pela Igreja. Muitos críticos e estudiosos avaliam esse primeiro romance faustiano, ou Faustbuch, como passou a ser conhecido, como mera propaganda luterana para doutrinação e proselitismo, o que significa a um só tempo uma poderosa alegoria sobre a soberba humana em face do conhecimento e a necessidade de se impor um limite com o advento da Santa Inquisição. Dois anos depois da publicação de Spiess, ou seja em 1589, o escritor e dramaturgo inglês Christopher Marlowe (1563-1593) transforma Fausto em peça teatral, onde sutilmente retrata o dilema do novo homem ocidental, então dividido entre a religiosidade medieval e o humanismo renascentista. Este texto será base, por exemplo, de versões de roteiros cinematográficos como os de Richard Burton, de 1967. Quase dois séculos depois, no ano de 1760, foi a vez do escritor alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) criar uma nova versão dramática do Fausto, na qual ele encarnaria o heroísmo do intelecto humano, capaz por si mesmo de triunfar sobre o mal, personificado no diabo. A obra de Lessing, porém, hoje encontra-se fragmentada. Sendo um arquétipo da alma humana, o mito de Fausto jamais se esgotou simbólica e literariamente, de modo que diversos artistas contemporâneos e posteriores a Goethe reagiram criativamente à personagem. O poeta russo Puchkin escreveu em 1826 um Fausto notável pelo diálogo com Mefistófeles. Christian Dietrich Grabbe também compôs em 1836 uma tragédia onde confrontava Don Juan e Fausto. No século XX, o poeta francês Paul Valéry escreveu a peça Mon Faust, sem todavia a concluir. Depois foi a vez do poeta português Fernando Pessoa escrever Fausto: Uma Tragédia Subjectiva, inusitadamente narrado na primeira pessoa. E por fim, Thomas Mann publicou seu romance Doktor Faustus em 1947. Para o crítico brasileiro Nivaldo Cordeiro, ninguém melhor que Thomas Mann fez a crônica e interpretou melhor o fenômeno do totalitarismo nazista. Discípulo e continuador da obra de Goethe, Mann conseguiu no livro Doktor Faustus juntar as partes do quebra-cabeça: o mito do Fausto, a filosofia da rebelião contra Deus, fundada no Iluminismo, o satanismo militante e o niilismo tão bem retratado na filosofia de Nietzsche. Tudo costurado numa trama que relata a ascensão e a queda do nazismo. Para além de ser também uma obra autobiográfica, que relata a ruptura espiritual de Thomas Mann com esse caldo de cultura satânico da modernidade. Mann terá sido o primeiro exilado, o alemão exemplar, que jamais se iludiu com o populismo nazista. O anti-Goethe e, ao mesmo tempo, o maior dos seus discípulos. Ele sempre soube que Hitler, mais que um fenômeno político, encarnava um problema espiritual. Dentro dos meios civis, foi Thomas Mann aquele que impôs a mais severa oposição ao nazismo, o que mais agiu e o que mais sofreu as consequências de um exilado. Recentemente, em 2008, o escritor português Rafael Dionísio lançou os seus "Cadernos de Fausto" revisitando também este mito. Fausto também foi tema para as peças musicais de vários compositores clássicos como Wagner (Faust), Berlioz (La Damnation de Faust), Schumann (Szenen aus Goethes Faust), Liszt (Faust-Symphonie) e Gounod (Faust). Ainda na música Fausto de Goethe serviu de inspiração para dois álbuns, Epica e The Black Halo, da banda de Metal Melódico Kamelot, e para três álbuns, The Scarecrow, The Wicked Symphony e Angel Of Babylon do projeto de Power Metal Avantasia, onde o compositor Tobias Sammet cria sua própria versão da Lenda de Fausto através de canções. Ainda na chamada "Cultura Pop", o escritor de quadrinhos Alan Moore traz em sua premiada obra "Promethea" (1999) uma versão de Fausto, baseado livremente na lenda original. O livro O Fantasma da Ópera (Gaston Leroux) apresenta a ópera Fausto, de Charles Gounod, no momento em que Erik sequestra Christine. Trata-se, enfim, de uma lenda, quase um mito, com o qual podemos refletir sobre a condição humana e os próprios fundamentos e valores da humanidade, o que não é absolutamente corriqueiro na cultura ocidental. Veja matéria de imprensa sobre o filme: http://globotv.globo.com/globo-news/globo-news-literatura/ v/livro-fausto-de-goethe-ganha-nova-adpatacao-para-o-cinema/2051479/ Veja o Fausto de Murnau de 1926: http://www.youtube.com/watch?v=hQ7_OwQRU-M Acesse um estudo sobre a obra de Goethe http://www.fraternidaderosacruz.org/am_fausto_de_goethe.pdf Acesse uma crítica sobre o Dr Fausto de Thommas Mann: http://www.nivaldocordeiro.net/ Acesse um ensaio sobre Fausto: http://uerj.academia.edu/KaioFelipe/Papers/1787855/A_ Bildung_Demoniaca_Doutor_Fausto_e_a_Crise_Cultural_da_Alemanha_no_Entreguerras Para assistir o trailer do filme em questão: http://www.youtube.com/watch?v=PlXgjnU83S8 9/8/2012

14 julho 2012

Habemus Papam, de Nanni Moretti

Com Michel Piccoli no papel principal, o seu desempenho é um espetáculo à parte. Mas a escolha do argumento do mesmo Nanni Moretti é surreal e de fino senso estético, daqueles que enfrentam as grandes questões existenciais com a leveza da ironia e do humor. Conduzem o espectador pelo caminho fácil de uma comédia ao sítio insuspeitável dos grandes dramas. Poderíamos dizer que o roteiro trata de uma paródia crítica sobre o distanciamento da Igreja católica de seus fiéis pelo sigilo interno e o peso de seus rituais e tradições, pela natureza de seu poder celeste e terreno, mas não se esgota aí. Como também não se esgota numa paródia elegíaca do drama A Gaivota de Tchekov, uma vez que o candidato a papa foi um ator fracassado e conhece como ninguém o sentimento paralisante do medo de entrar em cena. Poderíamos dizer que se trata de uma grande alegoria sobre o poder político mal dividido entre as regiões do planeta, mas também não se esgota aí o roteiro. Como ateu assumido, o diretor mais celebrado da Itália contemporânea ousa uma paródia sobre a crise da própria fé religiosa. Encarna a figura inusitada de um psicanalista para tratar, não apenas do papa eleito pelos seus pares pela vontade de Deus e em total crise de pânico diante da imensa responsabilidade de se tornar objeto da fé de milhões de fiéis, mas a própria irracionalidade da fé contemporânea persistindo de maneira ridícula numa humanidade que já perdeu a centralidade do universo com Copérnico, a imagem da semelhança divina com Darwin e a própria certeza de autodeterminação com o próprio Freud. Neste sentido, o filme ousa o questionamento do próprio poder político diante de massas de fiéis desprovidos de cidadania e autogoverno. Mas o processo humano de escolha desta figura paterna representante de Deus na terra, esteio e enlevo do desamparo intrínseco da natureza humana, é o mesmo de uma encenação teatral, onde se estabelece o conflito ou o conclave entre os que disputam o papel principal, em meio a outros tantos que, longe desta função, preferem permanecer no conforto do anonimato sem maiores responsabilidades ou expectativas de tantos espectadores. A escolha, que nesses casos cai sobre uma figura neutra, como estratégia de não se escolher um único vencedor, corresponde à própria falência da figura do pai, o que nos leva todos à miserável condição humana de orfandade, tema fundacional da própria psicanálise. Pelo menos é esta a aposta dramática do diretor espelhando-se em Tchekov e para além da comédia cotidiana do filme. Veja o trailer oficial: http://www.youtube.com/watch?v=Mr8O687r-60

07 junho 2012

O valor das instituições

Por Jorge Maranhão Publicado no jornal O Globo em 05/06/2012 A propósito deste imbroglioentre o ex-presidente Lula, o ministro Gilmar Mendes e o ex-presidente do STF Nelson Jobim, acho quemuito se falou, mas pouco se disse sobre o que está por trás do mesmo: o desconhecimento do papel e do valor das instituições para a democracia. Em especial das instituições de Estado, que existem mais para servir aos interesses do bem comum do que a governantes e políticos da ocasião. Chamam o ex-presidente de apedeuta, mas o que esperar de um líder sindical que vira líder político exatamente no vácuo da omissão política da mais fina flor de nossas elites sociais? Quando ninguém da assessoria do ex-presidente –a começar pelo experiente Nelson Jobim –se aproximou para alertá-lo sobre alguns conceitos básicos da república, como o próprio Artigo 2º da Constituição Cidadã, que define os três Poderes da União como independentes e harmônicos entre si. Ou outro conceito mais fundamental ainda, como o de “instituições”, definido como o “conjunto de normas previsíveis e acumuladas pela experiência ao longo do tempo, visando orientar a conduta de seus membros diante da expectativa da sociedade e das organizações”. Ninguém para frear o ímpeto voluntarista de Lula para lembrá-lo que, entre as instituições de Estado, as instituições jurídicassão a própria garantia do estado de direito democrático, criadas exatamente para defender todo cidadão contra qualquer tentativa de coerção ou intimidação por parte dos governantes. Sobre o valor das instituições, aliás, o economista prêmio Nobel de 1992, Douglass North, observou ainda nos anos 80, num estudo sobre oscustos das transações:“a liberdade, a igualdade e a democracia só sobrevivem com base no poder controlado. A função principal das instituições é ajustar os limites da igualdade aos limites da liberdade. Liberdade e igualdade são preservadas como bens comuns na razão direta da eficiência das instituições”.Como há 150 anos atrás, escrevendo sobre as instituições da república americana, Alexis de Tocqueville ressaltava os princípios da impessoalidade e da moralidade como sua própria razão de ser. Mas nossos comentaristas políticos da imprensa mais abalizada falam até em crime de coerção e que a conduta de Lula foi um tiro no pé, e não aproveitam o episódio para relevar o sentido do artigo 37 da CF: “A administração pública de qualquer dos Poderes da União obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. O que se fundamenta outra vez no conceito de instituição como a concretização dessa impessoalidade da coisa pública e até como o próprio ambiente de segurança jurídica e de previsibilidade da jurisprudência, estas, sim, que nos faltam para o aumento dos investimentos e do progresso econômico e social. Jorge Maranhão é diretor do Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão. Email: jorge@avozdocidadao.com.br

30 abril 2012

Pina, de Wim Wenders O plano era outro. Wim Wenders tinha em mente a ideia de registrar em 3D os ensaios da Tanztheater Wuppertal, a icônica companhia da bailarina e coreógrafa alemã Pina Bausch. A morte inesperada de sua fundadora e diretora, em junho de 2009, mudou os rumos do projeto. Após um período de luto e reflexão, em que cogitou cancelar tudo, o cineasta percebeu que era possível repaginar o trabalho: não seria mais um filme com Pina Bausch ou sobre Pina Bausch, mas um filme para Pina Bausch. Assim nasceu este magnífico documentário com emocionantes testemunhos de todos os membros de sua companhia, vindos de todas as partes do mundo, não importando tipo físico, países, culturas ou mesmo conhecimento e técnica de dança ou coreografia. A partir deste documentário, todos podemos ver concretamente a diferença fundamental entre ballet, como expressão da dança barroca, clássica e romântica, e a dança enquanto criação a mais radicalmente transformada pelos gritos da modernidade. Não há companhia de dança contemporânea que não tenha se inspirado na obra da grande coreógrafa alemã. Seja como expressão da dor e do sofrimento humano, seja como exteriorização da alegria de viver. Não há número na Tanztheater Wuppertal que não contagie o expectador de imediata sensação de humanidade, humildade mesmo, quando somos reduzidos à concretude de nossos corpos, matéria que quase nada pode, mesmo diante do desejo da mais cotidiana subjetividade. Chega a ser cómico uma grande artista alemã trazer para a limitação das possibilidades de nossos movimentos físicos o que sempre sonhamos de utopia pela ilusão de nossos desejos. É como se a artista fosse o último comentário humano sobre toda a retumbante trajetória da civilização germânica. Vá ver correndo ou dançando este extraordinário documentário e também o site oficial da coreógrafa, assim como alguns posts imperdíveis da internet: http://www.pina-bausch.de/en/pina_bausch/index.php http://www.youtube.com/watch?v=R-J1FXg-awA&feature=player_embedded http://www.youtube.com/watch?v=Jm70fMM3JAk http://www.youtube.com/watch?v=KXVuVQuMvgA http://www.youtube.com/watch?v=OjutwwRk1E0&feature=related http://www.youtube.com/watch?v=o8VGxwjtlQ4&feature=related

30 março 2012


Cineasta foi o mestre inventor dos efeitos especiais no cinema

A Invenção de Hugo Cabret (Hugo, EUA, 2011), de Martin Scorsese

Na Paris da década de 30, Hugo acaba de ficar órfão. Ele descobre que o robô deixado para ele por seu pai esconde um mistério. Com a ajuda de uma nova amiga, o menino viverá uma incrível aventura. Este é o argumento manifesto como uma aventura infanto-juvenil. O argumento subjacente não se dirige aos jovens. Trata-se de uma apologia ao próprio cinema com uma particular homenagem, quase um documentário, sobre um dos precursores da sétima arte e talvez o mais injustiçado pela competitividade humana: Georges Meliés, sucessor dos irmãos Lumière e mestre inventor dos efeitos especiais.

Quem pensa que o primeiro filme a cores foi ... E o Vento Levou, pode ficar chocado e deveras intrigado com O Reino das Fadas (Le Royaume des Fées, 1903), O Caldeirão Infernal (Le Chaudron Infernal, 1903) ou O Inquilino Diabólico (Le Locataire Diabolique,1909). Sem falar na sua grande obra-prima: Viagem à Lua (Le Voyage Dans La Lune), 1902. Como não poderia faltar ao pai da ficção científica, Méliès reproduz, através da nova tecnologia, um romance do sublime visionário Júlio Verne. Mas quem se faz gênio nem sempre morre reconhecido como tal. Sua companhia de filmes, a Star Films, foi considerada, por algum tempo, como referência mundial em cinema. Mas concorrentes foram surgindo e o cinema amadurecendo. E surge Griffith e a Pathé, concorrência forte demais para um ilusionista que trabalhava artesanalmente. É de se frisar que a nova linguagem do cinema é a essência do espirito romântico da arte como evasão da realidade e busca de outro tempo que não o insuportável presente. Para além do que, os temas futuristas que incensavam a imaginação dos artistas do cinema e das artes, passaram a não ter mais apelo diante das imagens realistas sobre a morbidez da primeira grande guerra, a primeira na verdade filmada e fotograficamente documentada, colocando o homem diante do horror que ele próprio jamais pode imaginar que fosse capaz de perpetrar.

Martin Scorsese faz um filme para recontar a própria história do filme e corrigir esta injustiça de ter sido colocado no ostracismo uma figura singular da história do cinema. Meliès ainda era vivo quando Hugo Cabret, filho de seu relojoeiro, conseguiu recuperar o autômato, decifrou sua mensagem enigmática e lhe devolveu o autômato. Se hoje a técnica cinematográfica não tem limites, ela serve mais às superproduções fantásticas de guerras nas estrelas do que a argumentos tão singelos como o resgate de um artistas inovador como Meliès. E trazê-lo de volta ao presente como forma de provar a capacidade profética dos grandes artistas como verdadeiras antenas do futuro. Para além de todos os recursos do 3D como os que Scorsese faz questão de usar, é de se notar a beleza da reconstituição de Paris de época com uma locação numa das estações de trem que, por ironia da história, lembra o Quai d'Orsay de hoje em dia, inclusive com seu grande relógio intacto, transformado num dos mais prestigiados museus da arte impressionista francesa.

Vale a pena conferir o filme original de Meliès em:
http://www.youtube.com/watch?v=7JDaOOw0MEE&feature=youtube_gdata_player

Veja o trailer oficial dublado:
http://www.youtube.com/watch?v=QBLsVTJlAqo&feature=youtube_gdata_player

07 fevereiro 2012


O brado retumbante, minissérie da TV Globo, de Euclydes Marinho

Apesar de certa discussão sobre o realismo fantástico ou do ficcionismo realista, isto tem muito pouca importância quando estamos a avaliar um produto de comunicação televisiva. Diria mesmo que a flexibilidade entre estas fronteiras é o que importa e o que traz a verdadeira natureza da linguagem televisiva. Já houve quem dissesse que se alguém quiser conhecer o imaginário social e politico brasileiro, que veja os telejornais. E se quiserem conhecer a realidade da cultura política nacional que se liguem nas telenovelas, ou mesmo nos programas humorísticos, com larga tradição de sarcasmo político. O que importa é que esta 76ª minissérie da Tv Globo “O brado retumbante” é a mais ousada narrativa sobre os costumes políticos brasileiros dos últimos anos. A ponto de animar debates acalorados sobre que políticos de nossa vida recente inspiraram os principais personagens. Quem seria Paulo Ventura? Uma mistura de Fernando Collor, Itamar, Lula? E o senador Nicodemo Cabral, com este nome de sabor nortista-nordestino? Seria Sarney, Antonio Carlos Magalhães, Edson Lobão? E a ala de deputados corruptos que nem inspiração precisa de tão diversa zoologia? Para não falar na ampla gama de questões de nossa recente pauta política que inspiraram com realismo desconcertante as falas dos personagens. O jovem político que é amante da mulher de um outro político. Um presidente por acaso, independente de corriolas partidárias, que resolve comprar uma briga heróica contra as quadrilhas de corruptos. As manobras para derrubá-lo, com atentados e votações de impeachement; o congresso que não vota a reforma política; a crise militar na fronteira de um país sulamericano dirigido por um general ditador; a nova lei de responsabilidade pública que pretende dobrar as penas contra a improbidade administrativa; a marquetagem das campanhas eleitorais; o genro aproveitador; o tio delinquente e vendido ao tráfego de influência; a mãe inconveniente; os desvios hediondos dos orçamentos da saúde e da educação públicas; as denúncias contra a manipulação ideológica dos conteúdos dos livros didáticos; a onda de ongs picaretas; a reação das centrais sindicais às políticas de cortes de déficits públicos; a demagogia de congressistas que vendem apoios e não votam leis necessárias, mas apenas casuísticas. Isto é tudo ficção ou pura realidade?

Como já dissemos, não importa. O que importa é a maior rede de televisão aberta brasileira se debruçar sobre o tema. Uma vez que as demais instituições reprodutoras de valores morais estão a falhar na sua outrora nobre missão, como os sistemas de educação pública e do judiciário do estado. Uma vez que instituições mais antigas com esta função não estão dando conta. A família por uma crise de restruturação como nunca passou nestes mais de tres milênios de existência. As igrejas por uma crise de valores e de credibilidade que as jogam na mesma vala comum da política partidária, na disputa comercial e pelo controle de fundos pecuniários, além da conduta imoral de alguns de seus sacerdotes. As empresas, pela ganância global, não tem mais espaço para enxergarem um pouco mais além do próximo balanço, em prejuízo direto da sustentabilidade na própria vida na terra.

Neste contexto dantesco, a ação política tenderia a ser cada dia mais negada ou inibida, senão completamente omissa, não fosse a indignação dos mais jovens e esta sempinterna esperança cultural brasileira. Não fosse também o ar de liberdade que se respira e o concurso da tecnologia da informática que tende a transformar radicalmente a ação política tal qual se concebe hoje em dia. Se estas possibilidades são reais, como o feliz desfecho de nosso herói, que decide permanecer na trincheira da luta, ficção mesmo, nesta mesma vida real, é a possibilidade de sair vitorioso de tantas batalhas, tamanha a mediocridade de instituições de estado como o judiciário e a própria polícia, como temos testemunhado nos mais recentes episódios de nossa história política.

Mais vale muito a pena continuar apostando na mídia como um fator decisivo de mudança de nossos lamentáveis costumes políticos.

Para ver mais, acessem:
http://redeglobo.globo.com/o-brado-retumbante/cobertura/

28 janeiro 2012

Igualdade diante da lei

Apesar do recesso a polêmica continua. A liminar suspendendo na prática todas as ações investigatórias do CNJ, decidida monocraticamente pelo ministro Marco Aurélio Mello, tem sido repelida pela consciência jurídica nacional. Vários constitucionalistas se manifestaram uma vez que não havia a urgência imprescindível para a concessão da liminar no último dia antes do recesso do STF. Questionado pela AGU, o próprio ministro Peluso confirmou a liminar transferindo para a volta do recesso, em fevereiro de 2012, o julgamento definitivo pelo pleno da corte. Quando já inúmeras vezes ministros do STF, como o atual presidente inteirino Ayres Britto, já se declararam publicamente pela competência investigatória concorrente e não subsidiária do CNJ em face dos procedimentos investigatórios inócuos das corregedorias dos tribunais estaduais. Ato contínuo, as três maiores entidades de membros da magistratura conseguiram do ministro Ricardo Lewandowskioutra liminar para impedir que a corregedora-geral do CNJ, ministra Eliana Calmon, promova investigações na vida de 231 mil pessoas, entre juízes, familiares e servidores de 22 tribunais.
A ministra Eliana havia requisitado através de ofício a análise das declarações de bens e rendimentos apresentados por magistrados e servidores, principalmente nos casos com movimentação acima de R$ 500 mil no período de 2006 a 2010. Como justificativa, a ministra citou material que recebeu do Coaf - Conselho de Controle de Atividades Financeiras, ligado ao Ministério da Fazenda, a pedido do corregedor Gilson Dipp, seu antecessor.
Hoje, a Corregedoria Nacional de Justiça analisa um total de 503 processos sobre irregularidades e corrupção relacionadas a magistrados. E, mais uma vez, setores da magistratura reagem com veemência a tentativas de garantir transparência a um poder que historicamente tem sido considerado o mais opaco e corporativista diante da crescente exigência de transparência da administração pública e da crescente consciência de controle social pelas organizações da sociedade civil. O próprio presidente do CNJ e do Supremo, Cesar Peluso, afirmou que "nos termos expressos da Constituição, a vida funcional do ministro Lewandowski e a dos demais ministros do Supremo Tribunal Federal não podem ser objeto de cogitação, de investigação ou de violação de sigilo fiscal e bancário por parte da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça”.
Não pode por que? Se todos os cidadãos são iguais perante a lei? Cabe aqui esclarecer que o sigilo fiscal é tão-somente a proteção às informações fiscais prestadas por todos os cidadãos contribuintes. Ou seja, sua quebra se dá apenas quando da divulgação desses dados por órgão que detenha direito a eles. No caso do CNJ, como expresso no Artigo 4º, item XV, de seu regimento, pode, sim,“requisitar das autoridades fiscais, monetárias e de outras autoridades competentes informações, exames, perícias ou documentos, sigilosos ou não, imprescindíveis ao esclarecimento de processos ou procedimentos de sua competência”. Vale lembrar que a divulgação destes dados sigilosos constitui crime previsto no artigo 325 do Código Penal. Em sua defesa, a ministra Eliana Calmon não fez por menos, acusando de mentirosas e maledicentes as entidades de juízes e suspeitando que elas próprias podemter vazado os dados para a imprensa.Ao contrário do que pensam esses setores da magistratura que estão tão incomodados com o CNJ, juízes e desembargadores são também servidores públicos. Tanto quanto os outros servidores estão sujeitos ao Artigo 37 da Constituição Federal, que determina que “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.
Polêmicas deste tipo, além de soarem meramente corporativistas para a sociedade, só contribuem para denegrir a imagem do poder mais importante para a democracia, que é o Judiciário, responsável pelas garantias fundamentais dos cidadãos. Agora é a vez dos setores éticos e transparentes da magistratura se manifestar. Para além de nossos parlamentares agilizarem a tramitação da lei proposta pelo senador Demóstenes Torres sobre a competência investigatória do CNJ, instrumento de controle externo da magistratura, conquista de décadas de lutas da sociedade civil, a exemplo de todas as demais funções públicas providas de conselhos de controle externo e corregedorias. A cidadania aguarda ansiosa que nossos magistrados deem o bom exemplo da vida republicana que todos os cidadãos são iguais e ninguém pode estar acima das leis.
Jorge Maranhão
Publicado no jornal do Comércio de São Paulo de 02/01/1012