07 novembro 2012

A percepção da corrupção


 A propósito de meu último artigo nesta página sobre “A corrupção dos valores”, no momento em que toda a nossa atenção se volta para os efeitos das sentenças do Supremo nos nossos costumes políticos, faltou comentar sobre o índice de percepção da corrupção elaborado anualmente pela Transparency International, uma vez que coloca o Brasil como tendo caído quatro posições no ranking entre 182 países pesquisados de 2010 a 2011. Em sentido oposto, os editoriais da grande mídia já anunciam o início do fim da cultura de impunidade, enaltecendo o nosso herói nacional Joaquim Barbosa que enfrentou com destemor “os dragões da corrupção”.  Nem tanto ao mar, nem tanto a terra. Com relação ao índice da percepção da corrupção faço aqui uma consideração que me parece preliminar: será que os mais de 3.000 entrevistados que alimentam este índice tem de fato uma consciência crítica sobre o fenômeno da corrupção sistêmica dos próprios valores universais da moral pública e que antecedem a própria corrupção política? Ao analisar a maneira como a mídia aborda o fenômeno, desconfio que não, uma vez que ela é a grande fornecedora de significados para a construção do imaginário social. Sobretudo agora nas matérias de cobertura do mensalão, não vejo a mídia explicitando a necessária conexão causal entre os dois universos da corrupção dos valores morais no âmbito da produção da cultura como um todo e no de sua expressão política propriamente dita. Pois a má conduta no trânsito pelo cidadão comum, por exemplo, e o desvio do dinheiro público pelos titulares de mandatos e agentes da lei, se alimentam da mesma fonte que é a própria corrupção dos valores morais no imaginário social de cada um deles. Neste aspecto, tenho desenvolvido a hipótese de que somos “campeões de impunidade”, como a mídia hiperboliza, apenas por que é a própria mídia que alimenta esta percepção quando repete ad nauseam a extraordinária má conduta política de nossos governantes, na crença de que cumpre seu papel institucional do dog watch journalism, mas criando colateralmente o fenômeno de consenso de que “nada adianta fazer contra um traço atávico de nossa cultura, cada povo tem o governo que merece, este é o (mau) caráter do próprio povo brasileiro”, e por aí vai. Chego, então, a hipótese de que o que a Transparência Internacional chama de “percepção da corrupção” na verdade é a percepção oferecida pela própria mídia, cobrindo as elites detentoras de poder político diretamente no setor público ou indiretamente no setor privado empresarial, mesmo que subsidiados pelos chamados “queridinhos da mídia”, alguns artistas, consultores e acadêmicos, ditos formadores de opinião.

Enquanto a boa conduta política da maioria dos cidadãos de bem, embora em muito maior número e frequência, é raramente atendida pela mídia, que se nega por puro preconceito a cumprir sua missão de civic journalism. Tenho dito, aliás, que a mídia no Brasil confunde civic com cinic journalism. Uma vez que ratifica o poder imperial do poder executivo em detrimento direto de um legislativo que só cobre desmoralizado e ignora solenemente o cotidiano do judiciário, até mesmo por que se julga juiz que condena, promotor que acusa e polícia que investiga, na arrogância típica dos que ignoram. Junte-se a isto que o próprio Poder Judiciário brasileiro ainda resiste à transparência pública e o sistema educacional se limita precariamente à função de aprendizagem e transmissão de conhecimento, jamais de valores morais, além da desconstrução na sociedade contemporânea da estrutura familiar e religiosa, só nos resta mesmo a sensação universal de impunidade e a percepção da corrupção como uma fatalidade civilizatória.

Se a própria TI na metodologia de sua pesquisa do índice de percepção da corrupção desconsidera estas diferenças estruturais da cultura institucional e política propriamente dita, de cada um dos vários países que monitora, contra quem e contra o que estaremos combatendo, afinal? Se não pelas diferenças fundamentais de respeito aos valores universais da tradição moral, como a vida, a liberdade, a justiça e a propriedade, pelos gestores institucionais do sistema de produção simbólica do imaginário social, como a própria mídia, a educação, a justiça, a família e a religião, como explicar índices tão contraditórios entre países de origem territorial e cultural semelhante? Como no caso de China (3.6) e Hong Kong (8.4) ou Taiwan (6.1). Ou Coreia do Norte (1.0) e Coreia do Sul (5.4). Ou Indonésia (3.0) e Nova Zelândia (9.5). Ou Iraque (1.8) e Israel (5.8). Venezuela (1.9) e Chile (7.2). Ou mesmo no âmbito da desenvolvida Europa, como no caso da Alemanha (8.0) e Itália (3.9). Embora em regiões e culturas semelhantes, a percepção da corrupção não é apenas um dado a marcar opostos costumes políticos, entre demagogias ditatoriais e democracias institucionais, mas também um dado da percepção dos próprios valores universais da vida, da justiça, da liberdade e da propriedade e das instituições de estado que os garantem como direitos fundamentais do cidadão.