No que toca aos costumes políticos brasileiros estamos a padecer exatamente da superestimação das liberdades individuais em detrimento do valor da vida. E assim é que moldamos a sociedade mais violenta sob o rótulo hipócrita da tolerância de costumes e de diferenças étnicas e sociais. Vejam o caso da cultura da impunidade dominante que começa enfim a ser desmontada. Vejam o caso do abuso do direito defesa da lei penal, da procrastinação infinita da execução penal dos cidadãos oriundos das elites sociais diretamente proporcional às execuções sumárias dos delinquentes de baixa renda que, se consumadas pelo aparelho policial, jamais alcançam o domínio da justiça. Se não a lerdeza judiciária, atentem para o patrulhamento impiedoso de poderosos grupos econômicos, até mesmo contra a autonomia das funções reguladoras do estado. Vejam o caso recente do questionamento da chamada Lei Seca, como se a liberdade de dirigir um carro bêbado fosse absoluto diante da ameaça da vida de outrem. Vejam o caso do questionamento das regulações sobre a restrição da publicidade médica, de guloseimas, de tabaco, onde as próprias indústrias do ramo são a favor como forma de proteção da infância, o que não significa que um adulto de plena posse de suas faculdades mentais e civis não tenha até mesmo o direito de dar cabo à sua própria vida, suspendendo para isso a responsabilidade de o estado, ente público por excelência, lhe amparar, cuidar e tratar. Pois a minha liberdade não pode de fato começar quando acaba com a do outro, como disse o humorista com fino sarcasmo.
02 outubro 2012
A corrupção dos valores
Há uma corrupção maior na cultura política brasileira do que a corrupção de quaisquer dos crimes contra a administração pública que o Supremo está a destrinchar. É a corrupção dos valores. Por exemplo, o valor da liberdade que nunca é limitado pela lei, mas tomado sempre como licenciosidade, liberalidade ou abuso da liberdade de se achar que se pode fazer o que lhe venha na telha. A liberdade corrompida pela perspectiva exclusiva de sua própria identidade e jamais da alteridade. “A minha liberdade começa quando acaba a do outro”, já disse o humorista crítico de nossos maus costumes sociais. O que dizer então de outros valores universais da tradição humanista judaico-cristã? Como a justiça que é sempre espichada para uma enviesada justiça "social" que pode inclusive atentar contra o próprio senso comum da justiça? Ou a propriedade que não se limita ao que é próprio de sua identidade, função social, ofício ou trabalho, mas via de regra quer se apropriar do que é comum a outrem, ou a própria coisa pública, própria de todos os cidadãos. Ou o valor da vida que se amesquinha como "condições" de vida para tentar justificar arbitrariedades e abusos de poder. Os libertários querem colocar o valor da liberdade como bem supremo, mesmo que negando os demais valores, como a propriedade, a vida e a justiça. Como os igualitários querem trocar a igualdade perante a lei por uma igualdade “social” acima da própria lei. Vejam o caso da liberdade de imprensa que se quer colocar como um bem absoluto e acima da própria vida, como o mundo todo está a assistir desde que se postou na internet um vídeo ridicularizando o profeta Maomé, sagrado para a confissão muçulmana de milhões de seres humanos. Ou o semanário francês de humor que afirmou o seu direito à liberdade de expressão, mesmo que ponha em risco a vida de milhares de inocentes pela ação revoltosa de fundamentalistas islâmicos de todo o planeta. Haveria de fato possibilidade de garantia de qualquer liberdade, de qualquer propriedade e a de qualquer sombra de justiça sem a garantia da vida, ou mesmo relativizando o seu valor, que é intrínseco ao próprio humanismo? A vida é o valor dos valores, o bem supremo, o único que não pode ser relativizado sem colocar todos os demais valores em risco. Como a propriedade, por exemplo, de que propriedade se trata mesmo quando é fruto da usurpação da vida? E de que justiça se trata quando à custa de uma única vida humana? De que liberdade se trata quando se atenta contra a vida de outrem? Sem a vida como medida de todos os demais valores, tudo se torna falso e corrompido de sentido humano. Pois, para além de qualquer especulação filosófica ou religiosa, se os valores da propriedade, da liberdade e da justiça são derivados da ação humana, a vida é um dom que transcende ao próprio homem. Pois são na verdade corruptelas de justiça, de liberdade e de propriedade tais valores quando atentam contra a vida. E que sentido faz quaisquer liberdades de expressão, crença, associação e locomoção se sua condição de possibilidade é estar vivo para exercê-las? Que sentido a justiça e seus derivados de lei, ordem, segurança e honra (a palavras e a contratos), se sua condição de possibilidade é estar vivo para exercê-las? Que sentido a propriedade quando abusa de ser exclusivamente própria e atenta contra a propriedade de outrem, colocando a vida sob ameaça. A própria legalidade se esvazia de moralidade quando atenta contra os direitos de outrem. A liberdade da ação humana deixa de ser livre quando se quer absoluta e ilimitada às custas da liberdade de outrem. Simplesmente por que se corrompem quando não balizadas pelo valor absoluto da vida.