29 dezembro 2010

Uma breve história do Brasil


Uma breve história do Brasil, Mary Del Priore e Renato Venancio
Editora Planeta, São Paulo, 2010

Os autores percorrem a história do Brasil desde quando ainda era a ilha de Vera Cruz até os dias atuais. Através de uma abordagem precisa e rica em detalhes, os historiadores interpretam os fatos da vida nacional de forma leve e acessível. Por meio de capítulos curtos e texto saboroso, narram quais eram os hábitos dos povos que fizeram do passado o nosso presente: o que comiam, como se vestiam, em que divindades acreditavam, o que temiam e o que amavam. A partir da descrição dessas curiosidades, abordam as estruturas política, econômica e social e sua evolução no tempo até os dias de hoje. Vejam por exemplo logo na introdução a descrição do Curupira, o espírito das florestas, um pequeno índio de cabelo vermelho que tinha os pés tornados para trás, deixando rastros em sentido contrário ao de sua marcha; dirigia manadas de porcos-do-mato e, segundo descrição de José de Anchieta, já em 1560, era para os índios que temiam as matas e seus perigos, verdadeiro demônio. Pois é nestes primeiros anos do século XV que se colonizam as capitanias, com a vinda dos capitães donatários e se decide pela tomada do espaço territorial dos indígenas, cessando assim a cumplicidade coletivista inaugural. Assim como se inicia a Inquisição em Portugal em 1536, nada mais simbólico para caracterizar este novo mundo do que a substituição da visão do paraíso inicial pela experiência infernal da ocupação. Se buscavam os chifres do demo em tudo, nada mais propício do que caracterizar o Curupira indígena como uma entidade que troca os sinais, inverte os sentidos, corrompe os valores, enfim, o que poderíamos ver como o próprio estigma da futura identidade nacional. Juntamente com os nobres capitães, muitos deles cristãos-novos, vinha toda sorte de degradados, foragidos da justiça, bígamos e feiticeiras, “os indesejáveis do reino”: - Ora assim me salve Deus, e me livre do Brasil!, esconjura um dos personagens de Gil Vicente no Auto da barca do Purgatório! Se o Brasil nasceu à sombra da cruz, e o estado era cristão, o mercado era de capitais judaicos financiando a produção e comércio do açúcar para as casas reais européias maravilhadas com a doçura da cana. Os valores são corrompidos, sobretudo na gestão pública, mas o lema dos jesuítas IHS – Iesus hominum Salvator nos salvaria pela caridade missionária, traço de solidariedade atávico de que não nos livraríamos até hoje. Passado o ensaio de iluminismo da Inconfidência, quando nosso herói Tiradentes foi escolhido para assumir uma pena capital como forma de amenizar as penas dos bacharéis, pintado inclusive como Cristo por Pedro Américo, as fronteiras imaginárias do Tratado de Tordesilhas na verdade se estenderam para oeste para mais que o dobro do que fora previsto em de 1494. Com a independência, D. Pedro I é sucessor de D. João VI e sucedido pelo então impúbere D. Pedro II. Linha de sucessão de uma casa real de menor importância na Europa, não apenas de pai para filho como convinha às monarquias, mas de titulares de valores, credos, costumes, políticas e algum apreço especial pela riqueza do estado português, até mesmo como o meio mais seguro de riqueza de seus próprios domínios. E assim como a família real, também os nobres portugueses vinham às novas terras “fazer o Brasil”, como na expressão da época. Não fosse assim, com a onda de alternância republicana européia e americana, o que garantiria, para além do manancial inesgotável de matérias-primas, a herança dos valores e da própria história de um povo senão a sucessão monárquica? Mas nosso último imperador, D. Pedro II, era um estadista acima de seu tempo, como conselheiro da casa dos Habsburgo e até mesmo da rainha Victoria, era um dos mais esclarecidos monarcas do mundo de então. Abolicionista, democrata, meritocrata e até mesmo parlamentarista, formulador e executor da estratégica política de imigração européia, jamais imaginou que esse princípio maior da sucessão monárquica e de sua função como poder moderador e garantidor de valores e da própria história, entre governantes e governados, última instância da justiça e comando máximo do exército, fosse quebrado por parte de uma oligarquia escravista e gananciosa em conluio com uma oficialidade ingênua e positivista, uma lamentável e vil traição através de uma quartelada republicana, em 1889. Começamos definitivamente a celebrar a máxima corrupção do valor da liberdade e da política: uma república de oligarcas escravistas envergonhados. Uma república como uma sucessão de quarteladas, onde o próprio lema positivista é corrompido e “simplificado”, na sua redução ao fim do progresso, sobre a base da ordem, mas sem princípio do amor (como da justiça)!
Acesse algumas entrevistas com os autores:
http://www.youtube.com/watch?v=baFGL4N4WsI&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=QNJvM3qslIg&feature=related

30 novembro 2010

Filosofia política em Eric Voegelin


Dos megalitos à era espacial
de Manedo Castro Henriques

Eric Voegelin (1901-1985) foi um dos maiores filósofos do século XX, sobretudo no âmbito da cultura saxã. Muito pouco conhecido na área de influência da cultura latina, é auspicioso que seja introduzido na lusofonia pelo professor da Universidade Católica de Lisboa Mendo Castro Henriques. Eric Voegelin nasceu em Viena e se tornou professor de ciência política da faculdade de direito quando, em 1938, perseguido pela Gestapo, teve que fugir para a Suíça e depois para os Estados Unidos, onde obteve a cidadania americana. Durante a sua vida publicou mais de 30 livros, dos quais se destacam a monumental História das Idéias Políticas e Ordem e História, este já traduzido para o português. Um dos seus livros mais conhecidos e que lhe rendeu a perseguição nazista foi exatamente Hitler e os alemães, onde aprofunda as razoes histórico-culturais da suicida aventura nazista. Eric Voegelin passa a construir uma solida obra de reflexão sobre a desrazão das ideologias dominantes no século XX como o nazismo, o comunismo soviético, o fascismo etc. Mas sua maior crítica é sem dúvida a Karl Marx, cuja ideologia denuncia como uma leitura deturpada de Hegel, uma vez que, quando a realidade entra em conflito com Marx, ele descarta a realidade. O panorama da historia das idéias políticas em Voegelin parte das ordens sobre as quais são construídas as sociedades humanas: desde a ordem cosmológica da era dos megalitos, passando pelas ordens antropológica, teológica, de estados nacionais, à nova ordem das poliarquias. Para Voegelin, o momento decisivo é o século VI a.C. quando surgem, nos quatro cantos do planeta, pensadores que transformam a perspectiva cosmológica em antropológica propriamente dita: desde Confúcio, na China, passando por Sidarta, na Índia, por Zaratustra, na Pérsia e os grandes profetas israelitas, até os pensadores da filosofia grega da passagem da mitologia para a epistemologia. Desmistifica, portanto, a tese materialista de que a historia dos conflitos humanos se move pela luta de classes e suas ideologias, quando na verdade são as idéias que fazem mover a marcha da historia pela sua própria manifestação. Para a passagem da ordem teológica para a ordem dos estados nacionais, Voegelin se fixa na passagem do ano de 1516 para 1517, quando surge a reforma protestante de Lutero, na Alemanha, antecedida pela publicação de pelo menos três grandes obras da filosofia política iluminista: O Príncipe de Maquiavel, A Utopia de Thomas More e O Elogio da Loucura de Erasmo de Rotterdam. Todos tratam de pensar a ordem do estado como meio de se alcançar a convivência pacífica e segura entre os homens e a própria democracia como ideal político. Só a democracia é determinada pelas condições históricas e culturais de cada sociedade que a persegue, sendo que Voegelin aponta sempre três fatores para sua manutenção: elites democráticas convictas do valor da liberdade e da dignidade humanas, um sistema eleitoral livre e transparente e programas e propostas de governo claras e verdadeiras. Uma constituição, por exemplo, e como no caso inglês, segundo Voegelin, pode-se escrever em seis meses. Já um sistema político-eleitoral e partidário livre e transparente, pode-se levar seis anos. Já uma elite política verdadeiramente democrática, que não caia na tentação totalitária das tiranias ou oligarquias, pode levar até 60 anos, ou mais de duas gerações para a sua construção. E sua idéia de nação como um conjunto de bens gratuitos como as tradições, a língua, ou a própria idéia de povo e de cidadania, é determinante para a consecução da democracia, para além de uma paródia à tese da inexistência de almoço grátis de Milton Friedman, como a libertação da política do imediatismo da economia. Mas a maior contribuição de Voegelin à filosofia política contemporânea se dá na sua concepção da república enquando politéia. Aliás, a própria República de Platão se intitulava em bom grego antigo de Politéia exatamente por que não tinha esta concepção de ordenamento jurídico institucional que nos foi passada pela tradição romana, onde já se privilegiava a visão governamental sobre a da cidadania, dos legistas e juristas sobre a da assembléia de cidadãos. Politéia neste sentido implica na ação política do cidadão, exatamente o que nos faltou na tradição republicana. O que torna essencial o pensamento da filosofia política de Voegelin para o enriquecimento do debate da cidadania e do seu papel de elite condutora do processo democrático.
Acesse mais em:
http://www.erealizacoes.com.br/default.asp
http://www.voegelinview.com/
http://www.youtube.com/watch?v=M1GtdcD9Ibk
http://www.youtube.com/watch?v=54UyHB2qncY&feature=channel_page%3E%3Ca%20href=

20 outubro 2010

O futuro de uma ilusão, de Sigmund Freud


Editora Delta, Rio de Janeiro, 1959

É o texto sobre as funções da crença religiosa da humanidade depois de sua experiência do abandono edênico, segundo todas as genealogias judaico-cristãs. É a profissão de fé de Freud num futuro de supremacia da razão e da verdade científica como meio de libertar o homem de sua condição originária de desamparo natural. Escrito em 1927, o texto dá continuidade à tese da horda primitiva exposta em Totem e Tabu de 1913 e segue a onda de questionamento usual das religiões típica da tradição romântica. Assim como Marx já havia declarado em 1844, que a religião era o ópio do povo, Freud vai demonstrar que a religião é “a neurose obsessiva universal da humanidade” , que depende de sentimentos infantis não resolvidos de expiação da culpa pela morte do pai primitivo, bem como seus dogmas são apenas uma forma de ilusão de segurança e proteção contra as vicissitudes da vida, uma expressão eloqüente da atrofia intelectual da maior parte dos seres humanos.

Desprezando qualquer diferença entre os conceitos de cultura e civilização, Freud a define como toda sorte de criação e construção material e imaterial da humanidade com o fim de tentar livrá-la do estado de natureza como ameaça perene à sua sobrevivência e fonte maior de seu sofrimento. Tal qual a própria organização religiosa, a fraternidade da coesão social é advinda diretamente da coerção social, da renúncia dos impulsos do instinto individual e da aceitação dos limites da lei como garantia de segurança de todos.

Embora não tenha imaginado a que ponto de agressividade e destrutividade o homem alcançaria com a ascensão do fascismo e do nazismo, Freud já criticava a ilusão comunista da revolução russa de 1917. Independente do estágio civilizatório que até então tenha alcançado, o homem conseguiria sobrepujar os desejos instintivos do incesto e do canibalismo, mas ainda não os da ânsia de matar e de roubar seus semelhantes. As religiões teriam um importante papel de frear tais instintos, mas com relativos graus de sucesso em diferentes épocas e lugares. Freud aponta, ao lado das religiões, as próprias artes como forma de alívio e de compensação simbólica pelas pesadas renúncias instintivas que o homem se impõe fazer para manter a vida civilizatória.

Neste sentido, liberal que é, e seguidor do contratualismo hobesiano, Freud é mais iluminista do que a tradição socialista de Rousseau e Marx. Pois não acredita na construção ideal do Estado como Deus possível e pai sublimado, nem tampouco na sua futura eliminação quando do alcance do estágio mais avançado da fraternidade comunista, mas o toma como amargo paliativo de coerção e coesão social, o chamado mal necessário. Ao contrário de uma tradição positivista, por exemplo, Freud afirma que a ciência é o último estágio de desenvolvimento da humanidade, ultrapassando os estágios primitivos da religião e da metafísica. No lugar da ferramenta da crença religiosa e da especulação filosófica vai propor a psicanálise como método imparcial de investigação humana e um novo campo de saber para a compreensão da alma humana e de suas relações com a própria vida social. Mas a função do direito enquanto método de busca da justiça entre os homens não compreende a prática religiosa, que Freud alude. Direito este que busca em Deus ou no testemunho sagrado, senão o próprio sentido ou inspiração da justiça, pelo menos a fonte de expressão da coerção legal. É o que Freud irá explorar em outro texto polêmico e o último de sua vida Moisés e o monoteísmo, de 1938.

Mas um dos momentos altos do Futuro de uma Ilusão é quando Freud recorre a um diálogo consigo mesmo, tratando-se na terceira pessoa, como a se questionar com mais rigor sobre os fundamentos de sua crença racionalista de que a ciência, enfim, superará a religião na explicação e superação do desamparo humano.

Acesse o texto completo em:
http://www.scribd.com/doc/31041716/Sigmund-Freud-O-Futuro-de-uma-Ilusao-O-mal-estar-na-civilizacao-e-outros-trabalhos-rtf

31 agosto 2010

Vincere, o filme


Vincere, de Marco Bellocchio
Uma superprodução filmada como uma verdadeira ópera dramática e extremamente moderna e romântica. Quando histórias afetivas e políticas se encontram na biografia de um líder carismático. Assim como cenas atuais e produzidas com requinte realista são entremeadas de cenas de documentários de época com maravilhosos detalhes de tratamento de direção de arte modernista e futurista. Vide por exemplo a tipologia usada nos letreiros, os adereços das bandeiras e panfletos de propaganda e agitação políticas, a trilha sonora grandiosa e as citações da arte e do manifesto futurista de Marinetti.
Sinopse: a narrativa revela um segredo na vida de Benito Mussolini (Filippo Timi): uma mulher, Ida Dalser (Giovanna Mezzogiorno), e um filho, Benito Albino, que nasceu, foi reconhecido, e em seguida renegado. É uma página negada e ignorada da história da Itália e na biografia oficial do Duce. Quando Ida conhece Mussolini em Milão, ele é um fervoroso socialista que pretende conduzir as massas contra a Igreja e a monarquia. Ela acredita nele e em suas ideias e vende tudo o que tem para financiar Il Popolo d`Italia, um jornal que Mussolini funda e que servirá como núcleo do futuro Partido Fascista. Quando a Primeira Guerra Mundial irrompe, ele se alista no Exército e desaparece. Ao reencontrá-lo algum tempo mais tarde casado com outra mulher, Ida exige seus direitos como verdadeira esposa e mãe de seu filho primogênito. Levada à força, fica trancada por mais de 11 anos em um asilo de loucos, onde é amarrada e torturada, e nunca mais verá seu filho.
Célebre é a citação de Mussolini sobre a dupla negação da Igreja Católica e da aristocracia industrial italiana: “Com as tripas do último papa iremos estrangular o último rei.” Assim como a raiz anarquista do próprio fascismo na célebre divisa de Blanqui: - Quem tem arma, tem pão!
Na verdade o enredo do filme é a convergência histórica do socialismo com o romantismo, não pelo seu fim, uma vez que o socialismo se trata de uma concepção política e o romantismo essencialmente estética. Mas não podemos descuidar da semelhante natureza de ambas visões-de-mundo voluntaristas, egocêntricas, emocionalmente exacerbadas, apaixonadas e comprometidas mais com os movimentos de rupturas e contraposições do que o equilibrado e harmonioso classicismo. Nesta época estão a surgir os elementos essenciais das revoluções políticas e culturais: a imprensa independente, o cinema (ainda que mudo) com imensa força expressiva, a extrema audácia da música atonal, o desassombro da pintura abstrata e as exposições de artes plásticas, as sociedades filarmônicas e o comércio das galerias; o voto universal, o anticlericalismo e a emancipação feminista. Uma menção importante também é o avanço da psiquiatria e a denúncia de seu uso como arma política. Tudo contribui para a emergência do republicanismo e do surgimento da consciência de cidadania na sua expressão política a mais independente. Vale a pena se deliciar com o exuberante painel dos mais variados elementos de uma produção de época que há muito não se via.

Site oficial e trailers: http://www.ifcfilms.com/films/vincere
http://www.youtube.com/watch?v=JPHj_pp3a48
http://www.youtube.com/watch?v=XeaRJxJcp7E&NR=1&feature=fvwp

09 agosto 2010

Freud y su concepción político-social, Paul Roazen


Pensador também se dedicou ao dilema da liberdade e da lei

Este ensaio do pensador e historiador norte-americano da psicanálise Paul Roazen (1936 – 2005) aborda tópicos da filosofia política presentes nas obras culturais do criador da psicanálise, tais como religião e religiosidade, agressão e agressividade, autoridade e poder, penas, castigos e coesão social, bem como o dilema da liberdade e da lei, o que nos leva a indagar do que teria Freud realmente extraído da tradição contratualista da filosofia política de autores como Rousseau e John Locke para quem inexistia contradição entre a liberdade e a lei. Mas muito pelo contrário, a lei seria a própria garantia das liberdades individuais.

Os ensaios sobre a agressividade humana são elaborados a partir de uma troca de correspondência entre Freud e o cientista Einstein em ambos os momentos do impacto de ocorrência da primeira e segunda guerras mundiais. Neste particular, inclusive, Freud chega a prever a necessidade de criação de uma autoridade supra-nacional para arbitrar os conflitos inter-nacionais, como uma ONU que seria fundada apenas em 1945. As referências aos mitos da horda original do Totem e Tabu e do sentimento de culpa pelo parricídio do Mal-estar na civilização dão conta das origens da lei e coesão social. É a resposta de Freud à indagação de Gustave Le Bom sobre a deterioração da ação social humana em face mesmo da sua ação individual. Para Freud se trata de uma regressão infantil da vida em sociedade pela dolorosa experiência da horda original que não permitirá – pela instituição do remorso e da proibição do incesto e do assassinato – que o lugar do pai possa ser ocupado por um indivíduo tentado a usurpar o gozo do poder sobre os demais. De uma concepção genealógica sobre a coesão social em Totem e Tabu e Mal-estar na civilização, Freud vai evoluir para uma concepção propriamente psicanalítica da vida social em Psicologia das massas e análise do eu, onde a relação política básica consistia numa relação erótica, da massa com a autoridade, dos filhos disputando com o pai o amor da mãe.

Mas o evento político que definiu propriamente a concepção política de Freud foi a Revolução Russa, uma vez que os revolucionários foram intransigentes para com a psicanálise enquanto uma visão enfática da subjetividade humana. A partir da perseguição da psicanálise em 1929, Freud declara o comunismo incompatível com seu pensamento. Se no Futuro de uma ilusão Freud vai assinalar as crenças religiosas como uma deliberada recusa ao amadurecimento do homem, e mesmo de seu equilíbrio psíquico, não deixará de incluir nessas crenças as ideologias políticas que galvanizaram os corações europeus dos anos 20 e 30. O que torna sua visão política surpreendente ao se imaginar que, embora morte em 1939, ainda viveríamos mais sessenta anos (até 1989) para o convencimento geral da insustentabilidade de um muro de Berlim e, junto com ele, das bases podres de um estado Leviatã.

Sobre a vida de Freud veja:
http://www.youtube.com/watch?v=yrbHMI3yshI&feature=related

09 julho 2010

Angelo de Aquino, três anos de morte


Em 27 de junho de 2007 era publicado nos jornais do Rio de Janeiro o anúncio de uma missa de 7º dia de morte do artista plástico mineiro-carioca Angelo de Aquino (1945 – 2007), por iniciativa de seus inúmeros amigos, e em cujo cabeçalho estampava a figura em silhueta do cachorro Rex, ocupando justamente o lugar tradicional do crucifixo. Mas o que nos chamou a atenção não foi apenas a figura do cachorro Rex, uma espécie de marca-símbolo da obra do pintor, ocupando tal lugar. Afinal, nada mais natural que o fizesse, uma vez que esteve presente em inúmeras de suas telas pelo menos nos últimos 20 anos, metade da vida artística de Angelo de Aquino, quando não foi o tema central de várias, e também o seu próprio alter-ego, como a ele se referia o próprio artista. O que é de se ressaltar é o valor da liberdade como condição sem a qual não pode haver a própria expressão da arte. Pois o artista reivindica da sociedade exatamente o direito de quebrar expectativas, romper códigos e sistemas de significação, ir contra a corrente, afirmar singularidades e até mesmo sua excentricidade. O que deve ser garantido pelo Estado como meio de afirmação da cidadania em última instância. E este é o caso aqui.

Angelo de Aquino marcou a sua obra com a figura do cachorro Rex quando o distinguiu meio a um projeto de representação de um completo bestiário brasileiro. A partir daí, tal qual no cotidiano da vida urbano do Rio de Janeiro, Rex passou a visitar cotidianamente a obra do artista. Por que não o visitaria no seu anúncio de morte? Como na lenda do cachorro da raça terrier Greyfriars Bobby, que ficou conhecido em Edimburgo, Escócia, no século XIX, por acompanhar e permanecer no túmulo de seu dono até a sua própria morte, 14 anos depois. Rex não é apenas um símbolo de lealdade, mas de fidelidade na obra de Angelo de Aquino. Fidelidade como marca de procedência, garantia de originalidade, presença do cotidiano urbano sempre constante em cada peça da obra do artista, um elemento a mais da paisagem de uma cidade grande destacado com capricho e ironia pelo autor. Num país em que o pensamento dominante é de um Estado provedor e tutelador de todas as demandas dos cidadãos, é muito oportuno assinalar a sua verdadeira missão de se limitar a garantir a liberdade maior de se contrariar a opinião geral. Pois entre seus maiores direitos cabe ao cidadão digno deste nome o direito a ser excêntrico, assim como a expressão do verdadeiro artista sempre será destoante do senso comum.

Veja mais no site do artista: http://www.angelodeaquino.com.br/
Acesse a história de Bobby: http://www.youtube.com/watch?v=yPWBi_kM8tI

30 junho 2010

O mal-estar na civilização, de Sigmund Freud


O mal-estar na civilização, de Sigmund Freud
Edição Standard, volume XXI, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1969

Durante os anos vinte e trinta, entre a Primeira e Segunda Grande Guerra, o advogado e militante do Partido Liberal (entenda-se, de esquerda) inglês William Beveridge esteve envolvido na mobilização e controle social de uma política pública de seguridade, o que viria a ser chamado de Welfare State a partir de 1945, com a fundação do NHS - National Health Service em 1948. Mas o tema acadêmico e o foco político do trabalho de Beveridge já eram conhecidos desde 1919 quando se tornou diretor da LSE – London School of Economics e onde permaneceu até 1937. Em 1941, o gabinete liberal de Churchill encomenda o relatório sobre a situação social inglesa durante a Segunda Grande Guerra com as recomendações para a erradicação dos chamados Cinco Grandes Demônios da fome, doença, ignorância, insalubridade e desemprego da população.
Mas o que Beveridge buscava, na verdade, não se limitava a um Estado de bem-estar social, senão uma sociedade de bem-estar em si mesma. Em pleno esforço de guerra do governo Churchill, o Welfare State não estabelecia seus programas apenas às custas do déficit das contas públicas, mas às custas de contribuições negociadas entre os próprios sindicatos, e como meio de garantia de um nível básico de subsistência, sem ingerência na liberdade de gestão da renda do cidadão, essência de sua autonomia. Era o reconhecimento do governo inglês de sua responsabilidade em cuidar do cidadão “do berço ao túmulo” (do slogan original, ”from craddle to grave” ou “from womb to tomb”).
Este é o contexto em que Sigmund Freud (1856-1939) se encontra em Londres quando de seu exílio voluntário e fuga do nazismo que tomava conta da Europa continental. Um pensador revolucionário indo ao encontro da experiência política democrática mais arrojada da Europa.
A questão que nos provoca, todavia, são as relações que podemos estabelecer com o surgimento da idéia e da política pública do Welfare State e, no contraponto, da doutrina freudiana do Mal-estar na civilização. Pois à primeira vista parece que Freud não vislumbra na nova organização do Estado um instrumento de mitigação das três grandes fontes de mal estar e infelicidades humanas: a debilidade e envelhecimento do corpo, as catástrofes da natureza e a vida social e política dos homens. Ou seja: a inequívoca mitigação, senão a extinção de pelo menos parte, das três fontes de infortúnio do homem com a evolução das instituições organizadas do Estado, num ambiente de crescente participação democrática do cidadão, não está evidenciada, se quer mencionada, no texto de Mal-estar na civilização (só há uma única citação da palavra Estado no capítulo final do livro). Costumamos, inclusive, e não apenas em português, a grafar a palavra Estado com e maiúsculo, como se o tomássemos como um Deus moderno. Todavia, esta nova forma de “religião” se trata de uma nova esperança na eterna busca humana da felicidade. Se a instituição da família patriarcal, assim como as religiões em si estão em declínio, estão também em declínio suas funções de educação e formação do cidadão, suas funções de julgar e arbitrar os naturais conflitos da vida em sociedade e, sobretudo, seu papel político de mediar a dominação e o poder entre os cidadãos e seus governantes. Curioso o fato de que o mesmo Freud, que já havia retomado em sua obra fontes históricas tão primárias como o Totem e Tabu, ou mesmo mais recentes como Moisés e o berço da civilização monoteísta judaica, não tenha dado relevo a um evento contemporâneo e tão vizinho quanto à ampliação das funções do Estado do Bem-estar e a extensão de suas atribuições clássicas judiciárias e de segurança para as atribuições de provisão de educação e saúde. Sobretudo como nova iniciativa de mitigação da infelicidade humana. O que o torna uma nova tentação de ente onisciente, onipotente e onipresente, tal qual o slogan do Welfare State, uma vez que de fato induz ao progresso concreto da ciência médica e da pesquisa científica, traduzidos por resultados quantificáveis de longevidade humana e qualidade de vida. Se Freud aponta a sociedade e suas leis como fonte do mal-estar, afirma também que “a primeira exigência da civilização é a justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo.” Mas nos parece que não vê com clareza que o Estado, para além de se constituir como instituição judiciária criada pelo homem para a aplicação das leis, é também a garantia maior da igualdade dos homens perante estas mesmas leis, suas liberdades civis e políticas e, sobretudo, a da busca de sua felicidade. Embora deixe claro o seu credo cético liberal quanto à natureza do home homini lúpus hobesiano, Freud não toma partido no debate político que se travava entre conservadores e liberais ingleses, ou entre social-democratas e socialistas e comunistas europeus. Afirma taxativamente: “não estou interessado em nenhuma crítica econômica do sistema comunista; não posso investigar se a abolição da propriedade privada é conveniente ou vantajosa. Mas sou capaz de reconhecer que as premissas psicológicas em que o sistema se baseia são uma ilusão insustentável”. E conclui, questionando a premissa do socialista anarquista Proudhon: “a agressividade não foi criada pela propriedade”. Quando afirma que o homem civilizado vive o mal-estar de haver trocado a parcela de sua felicidade por segurança, quer afirmar que trocou a busca da felicidade pela segurança, como resultante da supremacia da pulsão de vida sobre a pulsão de morte. A civilização mesma se ergue sob o peso do sentimento de culpa de todos os mitos genealógicos. Não importa se pelo tabu de assassinato do pai despótico pelos irmãos em bando, se pelo roubo da chama do saber de Prometeu ou se pelo pecado original de ter comido do fruto da árvore do bem e do mal do paraíso judaico-cristão. O que importa é que a civilização resulta da severa introjeção do sentimento de culpa em superego contra o princípio do prazer que anima o ego. E a luta entre as forças da vida e da morte prosseguem sob novos pares de dualidades, como segurança e liberdade, hedonismo e ascetismo, egoísmo e altruísmo, que não deixam de ser uma evolução diante do maniqueísmo entre conservadores e progressistas, direita ou esquerda ou mesmo as forças do bem e do mal.

Sobre a obra acesse: http://www.imagoeditora.com.br/product_info.php?products_id=678
Veja um dos raros vídeos com gravação original da voz de Freud:
http://www.youtube.com/watch?v=WutYCooUvEQ
http://www.youtube.com/watch?v=o-UuyIXtRi0
E sobre a Inglaterra como exílio de Freud:
http://www.youtube.com/watch?v=vG9wCSrTbXs
http://www.youtube.com/watch?v=weYttywhYbs&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=Tymq5CefW-E&NR=1

Goya y Las Pinturas Negras


Goya y Las Pinturas Negras,
Valeriano Bozal, Museo Nacional del Prado, 2009

Esta série de pinturas, originalmente murais, decoraram a casa de Francisco de Goya (1746 – 1828) conhecida como Quinta Del Sordo e foram transpostas para tela pelo Barão Émile d´Erlanger que adquiriu a quinta em 1873 e as doou ao Museo Del Prado. Ficaram conhecidas pelo título de Las Pinturas Negras pelo uso recorrente de pigmentos negros, pelo próprio sombrio dos temas ligados à morte e os enigmas que a cercam. Todavia, são o auge de um antecipado expressionismo uma vez que, por se tratar de uma obra feita na intimidade de sua própria casa, o pintor deixa totalmente livre sua fértil imaginação. A ponto de os críticos se perderem num imenso e contraditório universo simbólico de interpretações as mais estapafúrdias. Resta apenas uma unanimidade sobre Las Pinturas Negras como um marco da modernidade estética e da superação do academicismo neoclássico e do romantismo idealista que dominavam a cena artística à época em que foram realizadas por Goya. A última das quatorze pinturas, a única em que não prevalece os tenebrosos fundos negros, O cão semi-afogado, foi descrita por Antonio Saura como v“uma das imagens mais belas do mundo”.

Depois de uma vida dedicada à pintura de câmara do rei Fernando VII, que se resumia a um retratismo oficial e repetitivo na sua falsa imponência, Goya se retira da vida de pintor oficial do rei para a mais livre e pura expressão de sua individualidade, sua visão de mundo libertária, anti-inquisitorial e anticlerical, denunciando com paixão e vigor o clima de violência e perseguição do Santo Ofício. Quando a crítica vai designar o movimento expressionista propriamente dito, fora da Alemanha no início do século XX, se refere a Goya avant-la-letre, no seu final de carreira a um século antes. São derivados dele, portanto, a escola expressionista alemã de Munch, Kirchner e Paul Klee, como os pós-impressionistas franceses Cèzane, Gauguin e Van Gogh, e até mesmo os expressionistas contemporâneos como Francis Bacon e Lucien Freud.

É neste período das duas primeiras décadas do século XIX, em que Goya se retira para executar Las Pinturas Negras, que chega à Espanha os ventos liberais das revoluções americana e francesa, tendo Fernando VII chegado a jurar e governar durante três anos sob uma constituição monárquico-parlamentarista (o chamado triênio liberal), a partir de 1820, quando se proliferam periódicos, manifestos e panfletos pregando as liberdades civis de crença, associação e de imprensa e denunciando os crimes da Inquisição.

Las Pinturas Negras, portanto, expressam com vigor e maestria este movimento de denúncia e catarse sobre até que ponto pode chegar a bestialidade humana. E, para além de artistas plásticos de todo o mundo, inspiraram cineastas como Milos Forman que em 2006 realizou um belíssimo filme sobre a vida de Francisco de Goya, que aqui mesmo nesta Agenda já foi resenhado.

Vale a pena revisitar em:

http://www.museodelprado.es/en
http://pt.wikipedia.org/wiki/Francisco_de_Goya
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pinturas_negras
http://www.imdb.com/title/tt0455957/
http://www.avozdocidadao.com.br/detailAgendaCidadania.asp?ID=1071
http://wwws.warnerbros.es/goyasghost/

31 maio 2010


Citizenship, Richard Bellamy
A very short introduction, Oxford, 2008

O problema do desentendimento da cidadania não é exclusivo de nossa cultura. Mesmo na Inglaterra, onde se cunhou o termo desde a guerra civil de meados do século XVII, se multiplicam as dimensões éticas, morais, legais e sociais do conceito de cidadania em detrimento de sua essencial dimensão política. Também lá, como aqui, podemos dizer se tratar de um termo-ônibus onde cabe de tudo um pouco. Mas sua afirmação enquanto um conteúdo de engajamento e participação na vida política da sociedade contemporânea só tem a ficar cada dia mais claro. Até mesmo pelo surgimento dos fenômenos do multiculturalismo e da globalização. Num mundo onde coabitam mais de 5.000 culturas distintas, num espectro de 200 países territorialmente demarcados, 64% ou cerca de 120 países vivem sob o regime da democracia, onde a cidadania política desempenha um papel essencial. Apesar de o autor se referir ao conceito moderno de cidadania enquanto “titularidade de direitos e deveres”, ao mencionar a expressão universal de cidadania enquanto “direito de ter direitos”, não cita a autora Hannah Arendt. Mas afirma um paradoxo e enfoca uma cidadania essencialmente clássica em suas raízes liberais, como na excelente definição dos liberais de que o homem é o que é, ao contrário dos socialistas que definem o homem pelo que deveria ser. Poucos atentam para o indispensável complemento da máxima de Arendt que também afirma a cidadania como o dever de ter deveres, sobretudo o dever político de controlar os governantes para que seus direitos sejam garantidos de fato e não apenas de direito. Mas o paradoxo permanece no que se refere à motivação de participação quando a maioria dos cidadãos pagadores de impostos sabem que uma minoria “pega carona” em bens públicos de alcance geral como iluminação pública, saneamento, segurança pública, infraestrutura de transportes etc Portanto, para além dos deveres de pagar impostos, alistar-se na junta militar e eleitoral e prestar serviços eventuais à justiça e à defesa civil, é essencial à cidadania o exercício do controle social sobre mandatos, governos e orçamentos públicos. Embora cidadania tenha sido sempre definida enquanto status de igualdade perante a lei, desde o império romano, a partir do advento do welfare state tem-se desvirtuado para a noção de direitos humanos. Num regime de plena democracia, cidadania é: aquele indivíduo proprietário de seu próprio destino e de suas escolhas; aquele que divide deveres civis diante dos demais; que está sobre a proteção de leis de igual aplicação para todos os demais; e que exerce seus deveres políticos de fiscalizar os governantes para que nunca deixem de priorizar o interesse público. Tais direitos e deveres de cidadania são consagrados nos famosos Putney Debates, de 1647, quando em plena guerra civil inglesa, se especificam os princípios de um homem, um voto, dos direitos de expressão (através dos pamphleteers) e o direito de petição ao parlamento. A partir daí, a própria noção de cidadania supera a conquista de igualdade perante a lei para o protagonismo político diante dos governantes, o que os gregos denominavam como politès, os que superaram o estágio de idiotes que se preocupavam apenas com seus interesses privados.
Por conclusão, o autor estabelece como essência da citizenship a liberdade de escolhas do cidadão comum e, sobretudo, de sua capacidade de influir nas políticas públicas, ao contrário da guardianship, como a arrogância da tutela do cidadão pelos governantes.

Veja e compre no site oficial:
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Acesse o vídeo com o próprio autor:
http://www.meettheauthor.co.uk/bookbites/1745.html

12 abril 2010

História da Inteligência Brasileira


Editora Cultrix, São Paulo, 1977
Morreu no início do ano em Curitiba o crítico literário Wilson Martins, que se dizia "o último crítico literário em atividade". Wilson Martins nasceu em São Paulo em 1921. Formou-se em Direito, mas resolveu especializar-se em Letras, atingindo o título de doutor. Tornou-se professor de literatura francesa na UFPR e deu aulas de literatura brasileira em universidades dos Estados Unidos. Em terras americanas, sua passagem mais marcante foi pela Universidade de Nova York, que durou 26 anos e onde se tornou professor emérito, tendo se aposentado em 1992. Desta experiência pedagógica, aliás, é que surge a necessidade e oportunidade de escrever a História da Inteligência Brasileira. Distanciado das fontes físicas de sua pesquisa mas próximo do isolamento exigido de grupos e correntes literárias para uma construção imparcial da nossa história literária e intelectual.

Paralelamente à atividade acadêmica, durante anos mais de meio século, Martins publicou críticas em alguns dos mais importantes periódicos brasileiros, como o Jornal do Brasil, O Globo e a Gazeta do Povo. O crítico recebeu prêmios como o Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, por duas vezes, por volumes do livro História da Inteligência Brasileira, e o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em 2002, pelo conjunto de sua obra. Nos útimos anos de sua vida lamentava com ironia a possível extinção do mister da crítica pela falta de espaço que lhe dedicavam os editores dos modernos jornais impressos, cada vez mais cheio de imagens e infogramas, com textos em pílulas e de certa forma avessos ao estilo prolixo da critica. Wilson Martins escreveu a monumental “História da Inteligência Brasileira” quando o país estava imerso na ditadura militar de 1964. São sete volumes (cada um de 700 páginas), que nasceram do desejo do crítico de pensar e ligar tudo, absolutamente tudo, o que foi escrito, publicado e pensado no Brasil desde 1550 até 1960. Neste aspecto, trata-se de mais do que uma crítica literária, mas verdadeiramente uma critica da cultura brasileira. Segundo o jornalista Luiz Nassif, foi com essa obra que aprendeu mais sobre o Brasil do que quase todos os livros que já tinha lido antes. O fato de sermos “palco morto” em relação ao Renascimento que explodia na Europa, o que nos atravancou para o Humanismo, foi um desses achados que Wilson Martins nos ensinou. A natureza e raiz de um país autoritário (quem tem o mínimo de conhecimento sobre a nossa historia sabe disso) são explicadas didaticamente por Wilson nessa obra monumental. E como critico literário foi singular e brilhante quase que permanentemente. Quando completou 80 anos, a editora Top Books lançou um volume em sua homenagem, significativamente intitulado Mestre da Crítica. Nele, escrevem colegas ilustres como Affonso Romano de Sant’Anna, Moacyr Scliar, Edson Nery da Fonseca, Antonio Candido e outros, tendo por tema a carreira do crítico Wilson Martins ou assuntos literários em geral. Mas o melhor dos ensaios do livro é assinado pelo próprio homenageado. Com o título de O Crítico por Ele Mesmo, Martins faz um resumo de sua vida profissional.

Pontos altos da leitura e da interpretação do Brasil são enunciados logo no primeiro dos sete volumes publicados, até mesmo pela riqueza da documentação e das revelações sobre a história da inteligência brasileira no período colonial (de 1550 a 1794). Destaque-se a raiz de nossa tradição de solidariedade fincada na missão jesuítica a partir de 1549, que traz também a nossa conhecida limitação iluminista e política. Nossos primeiros autores, Manuel da Nóbrega, José de Anchieta e Antonio Vieira, discípulos diretos de Inácio de Loyola, fundador da ordem Companhia de Jesus, são dignos representantes da mais ortodoxa ordem da Contra-reforma católica. Afinal é no Concilio de Trento que se institui a censura do Index e a retomada da inquisição, censura que, como vemos, surge com a própria imprensa. Em 1711 surge a obra Cultura de opulência no Brasil,do jesuíta André João Antonil que alguns afirmam ser mesmo mais avançada nos conceitos sobre mercantilismo e nos conselhos sobre empreendedorismo do que a própria História das riquezas das nações, que o iluminista escocês Adam Smith só publicará em 1776. Já na metade do século XVII se faz publicar em Lisboa O Valeroso Lucideno e triunfo da liberdade, de frei Manoel Calado, sobre a epopéia e resistência portuguesa às invasões holandesas de 1624 a 1654. Outro ponto alto, que antecipa o experimento lúdico do concretismo do século XX é o poema visual do barroco baiano Anastacyo Ayres de Penhafiel, "Labirinto Cúbico”, de 1736. Época em que a Real Mesa Censória da metrópole proíbe a circulação do Ensaio sobre o entendimento humano, de John Locke, e em qualquer língua que fosse dentro do território e colônias portuguesas a partir de 1768. É de se notar que os autores do iluminismo escocês e inglês é que se tornam fonte inspiradora dos founding fathers norte-americanos e dos próprios inconfidentes mineiros. Outro marco é a epopéia Caramuru, poema épico do descobrimento da Bahia, do frei agostiniano José de Santa Rita Durão, publicado em 1781, primeira ocorrência do indígena brasileiro na literatura, mesmo que seguindo o modelo épico dos Lusíadas, de Luiz de Camões. Por fim, o mais interessante é a citação da biblioteca deixada pelos inconfidentes em 1797. A obra original de 1758, Des Droits et des Devoirs des Citoyens, do Abade Mably (1709 – 1785), foi traduzida tão somente como Direitos do Cidadão. O autor, muito lido na época pré-revolucionária, defensor da convocação dos Estados Gerais e da separação entre os poderes legislativo e executivo, refletindo as idéias de Montesquieu e de Rousseau, defende um governo representativo, mas que exclua do sufrágio os que dependem economicamente de outros. Parece que não evoluímos muito de lá pra cá...

Conheça mais em:
http://www.revista.agulha.nom.br/wilso.html
http://rascunho.rpc.com.br/index.php

31 março 2010

Democracy, de Robert Cavalier

For Beginners Books, USA, 2009

Ao contrário do que muita gente pensa, a educação política americana é levada muito a sério por parte de governos, instituições educacionais e editoras. E esta coleção é um bom exemplo de uma vasta série de livros didáticos ilustrados para estudantes com temas os mais variados: de filosofia e ciência política, biografia, história, movimentos sociais, ecologia etc.

Mas o que é de se salientar é este exemplar sobre a democracia que cobre a história desta tão falada e às vezes tão mal compreendida forma universal de governo. Desde o berço helênico até o fenômeno de Barack Obama e a chamada e-democracy. Desde a excelente interpretação do julgamento de Sócrates, que questiona o juízo da maioria, até a concepção de Karl Popper que questiona o idealismo platônico da sabedoria como atributo do rei justo. Com Santo Agostinho, apresenta a idéia da justiça como bem comum e meio de convivência dos cidadãos. Com São Tomás de Aquino, a observância da lei divina, a qual se subordina a natural que, por sua vez, subordina a lei dos homens. Com Maquiavel, a grande ruptura com as concepções idealistas, com a pragmática e realista visão do poder do príncipe. Com Hobbes, Locke e Rousseau, nos apresenta as teorias contratualistas do Estado como mal necessário na relação desigual entre cidadãos e governantes. “Onde não há lei, não há liberdade”, diz John Locke, principal inspirador de Thomas Jefferson na redação da Declaração de Independência americana.

A constituição do Estado e da República é a chave para a estabilidade política, a segurança jurídica e a para a própria revolução industrial. Interessante a observação de um autor americano sobre a substituição que Jefferson faz, na introdução da Declaração, do termo propriedade pelo da busca da felicidade. Com Kant, apresenta o valor da dignidade que caracteriza o ser humano como um fim em si mesmo, que nunca pode ser meio para outros se não para si mesmo. Com os utilitaristas como Jeremy Bentham, apresenta a idéia de que “não é necessário que todo homem saiba fazer sapatos para saber quais ficam confortáveis em seus pés” (princípio da ação social do bem-estar máximo). Com John Stuart Mill, a idéia fundamental da liberdade negativa, antecipando Isaiah Berlin, de que só não podemos fazer o que possa vir a causar mal a outrem. Com John Dewey, se alarga a idéia da democracia como forma de governo para filosofia de vida, com ênfase na formação política para o exercício da cidadania desde o ensino fundamental público. Com Ross Harrison, se destacam os valores da liberdade e da igualdade (de oportunidades) como valores fundamentais da vida democrática. Com John Rawls, a democracia é garantida pelo exercício da justiça enquanto sentimento natural de equidade entre cidadãos conscientes e o reconhecimento da limitação da liberdade pela necessidade, o que vai implicar na exigência do welfare state.

Mas a verdade democrática nunca está nos extremos, entre os valores da liberdade e da equidade, senão na sua eqüidistância. Com Will Kymlicka, na sua teoria da cidadania, “a saúde e estabilidade de uma moderna democracia não depende apenas da justiça e de suas instituições básicas, mas também das qualidades e das atitudes de seus cidadãos”. Democracia é mais do que a Constituição, não apenas eleitoral mas também deliberativa. Neste sentido, a democracia resulta não apenas de um ambiente político de pluralismo, ou dos valores morais de seus cidadãos, seu senso de equidade e concepção do bem comum, mas na sua capacidade e disposição de influir em políticas públicas, tanto através do voto como da deliberação direta através de consultas, pesquisas, referenduns, plebiscitos, fóruns etc.

Países que adotam uma democracia constitucional, sem cultivar o senso de cidadania de seu povo, frequentemente fracassam em alcançar uma sociedade viável. Na America, várias organizações não-governamentais tem surgido para estimular o engajamento do cidadão no debate público, como a National Issues Forum, a Public Voice, a AmericanSpeaks, Coro – Center for Civic Leadership etc. Paralelamente, a chamada E-Democracy se desenvolve através de projetos como o Picola – Public Informed Citizen Online Assembly e programas como Vox Populi e o Adobe Connect.

Mas, qualquer que seja a sua forma, como a citação que encerra o livro: a Constituição é menos a planta de uma casa do que um lar para a conversação. A democracia começa com você!

Veja mais em
http://www.forbeginnersbooks.com/catalog_5.htm
http://www.americaspeaks.org/
http://www.nifi.org/
http://thepublicvoice.org/
http://www.coro.org/site/c.geJNIUOzErH/b.2083541/k.ED76/CORO_Home.htm

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08 março 2010

Entre o passado e o futuro, Hannah Arendt


Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher!


A grande pensadora e ensaísta da filosofia política moderna, judia de origem alemã (1906 – 1975), estabeleceu um dos maiores postulados sobre o conceito de cidadania no século XX: cidadania é o direito de ter direitos.

Todavia, o preceito tem sido usado pela metade, como demagogia de viés socialista, pois à garantia de qualquer direito deve corresponder sempre uma “obrigação política”, qual seja a de o cidadão oferecer resistência à opressão e à tentação totalitária dos governantes, através de sua ação de oposição, participação e até mesmo da desobediência civil.

Este livro, de 1968, e que aprofunda conceitos essenciais de sua opera maxima “As origens do totalitarismo”, de 1951, é na verdade uma coletânea de oito ensaios sobre os valores fundamentais das práticas políticas entre o passado e o futuro, onde a filósofa e historiadora discorre sobre a diluição da tradição, o necessário testamento moral que as gerações anteriores legam às posteriores, como único liame ou fio condutor da própria história. E, em conclusão do trágico desfecho da política na modernidade com a diluição da tradição, se soma o declínio da autoridade e a crise da religião, não apenas enquanto crença em doutrinas, mas como fé numa origem maior (de pater, sênior, autoritas, major) da experiência vivida e registrada como testemunho aos pósteros. Para além da tradição, outros temas abordados nos ensaios são a história, a autoridade, a liberdade, a educação, a cultura, a verdade e a dignidade humana.

Desde Hegel, a filosofia da história deixa de ser apenas a compreensão do passado para se tornar uma reflexão sobre modelos de ação política futura. Se Marx avançou na restauração do trabalho como concepção determinante do próprio homem (não apenas um animal rationale, mas sobretudo um animal laborans, aliás já prevista na condenação do Gênese “ganharás a vida com o suor de teu rosto”), comprometeu o valor da liberdade na sua concepção do Estado limitado a instrumento de dominação de classe. Como já dissemos, a propriedade primeira do cidadão é a do seu próprio corpo e mente na forma de livre pertencimento de sua força de trabalho física e intelectual, o que só se realiza pela conquista da liberdade de escolha (a “busca da felicidade” da constituição americana).

Se, como afirma James Madison, ”All governments rest on opinion”, a autoridade política, como a ontologia da lei, se originam na crença da “boa moral” por parte da sociedade. Arendt assinala que até o século XIX “parecia escandaloso aos tribunais ingleses aceitar o testemunho de um cidadão que não acreditasse numa existência para além da vida terrena, pois na verdade não acreditaria na possibilidade da própria justiça” (como na possibilidade de se pagar por erros cometidos). Se a civilização romana funda Roma como a cidade eterna, diferentemente da tradição grega que separava a polis do Olimpo, a funda como morada dos deuses. Santo Agostinho, portanto, constituirá na Cidade de Deus, o fundamento de autoridade dos governantes da cidade dos homens, o fundamento da própria lei que, segundo Platão, “é o déspota dos governantes, pois os governantes são os escravos da lei” ou “só aqueles que sabem se governar têm o direito de governar os outros e se livrarem da obrigação da obediência” (Das Leis). Todas as revoluções advindas da modernidade, da inglesa de 1688, passando pela francesa de 1789, e as revoluções na Alemanha, Itália e França de 1848, marcam o declínio do Ocidente e da trindade romana da religião, tradição e autoridade. Some-se a isto o vaticínio de Walter Benjamin – contemporâneo e amigo singular de Hannah Arendt - sobre a estetização da política e politização da arte. Se a política sempre esteve próxima das artes de realização, como literatura, arquitetura, escultura e pintura, estará também de seus opostos como as artes de desempenho da música, da dança/coreografia e do teatro, pela via da revolução tecnológica dos equipamentos de registro do desempenho como as câmeras de fotografia, de filmar e de gravar.

No ensaio sobre a liberdade, em que cita Aristóteles (“a liberdade significa fazer o homem o que deseja”), cita também Kant (“a liberdade é a própria razão de ser da política e o seu domínio de experiência é a ação”), e Hobbes (“a condição da liberdade é a liberação do medo”); cita também Montesquieu (“a liberdade é o direito de fazer o que a legislação permite”), mas não cita John Locke (“onde não há lei, não há liberdade”).

A partir da publicação de As origens do totalitarismo, em 1951, até a sua morte em 1975, Arendt se dedica a ensinar na Nova Escola de Pesquisa Social, de Nova York, uma dissidência da Universidade de Columbia fundada em 1919 por um grupo de intelectuais norte-americanos independentes e militantes contra a primeira guerra mundial, e que vai receber a partir de 1933 os intelectuais e pensadores oriundos da Escola de Frankfurt, perseguidos pelo nazismo e sob a denominação de Universidade do Exílio. A partir da teoria crítica de Horkheimer, Adorno, Habermas, Benjamin, Marcuse e outros, Arendt vai explorar e desenvolver conceitos fundamentais para a moderna filosofia política, como a origem do totalitarismo, o anti-semitismo, a condição humana, o poder, a liberdade, a cultura de massa, a banalidade do mal, a ação da cidadania na sociedade, suas faculdades de juízo e vontade, as diferenças das esferas “privada” e “pública”, o significado do “oikos” e da “polis” etc.

Para conhecer mais, acesse:

http://www.newschool.edu/nssr/subpage.aspx?id=18664

http://www.hannaharendt.org/

http://www.youtube.com/watch?v=FZ1iqqcunsg&feature=PlayList&p=3DAE83D7101836E3&index=39

http://www.scielo.br/pdf/ea/v11n30/v11n30a05.pdf

30 janeiro 2010

Lula, o filho do Brasil


Lula, o filho do Brasil, de Fábio Barreto

Embora Dom Pedro I já tivesse feito a consagração do Brasil a Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida do Norte, logo após a Independência, entendeu que o Brasil precisava ter um santo padroeiro oficialmente autorizado pelo Papa. Assim, devoto que era de São Pedro de Alcântara – santo espanhol do século XVI, solicitou ao Papa que fizesse do mesmo o Santo Padroeiro do Brasil, tendo o Papa concordado. Todavia, por ter talvez o mesmo nome do imperador que abdicou do trono brasileiro pelo de Portugal, mas sobretudo pela imensa popularidade da lendária história do surgimento de Nossa Senhora Aparecida, a partir da República, cai no gosto do povo a preferência pela santa padroeira. Assim, é que poucos sabem do padroeiro real enquanto todos reconhecem em Nossa Senhora Aparecida a padroeira eleita pelo povo. E, como muito já se comentou sobre a bravura emblemática da mulher brasileira, uma vez que assume de fato a função de chefe de família, muito se tem comentado sobre a tradição de abandono dos filhos pela irresponsabilidade civil da figura paterna, sendo que se aponta como filhos sem registro e reconhecimento paterno quase 30% dos brasileiros segundo recentes pesquisas demográficas.
O filme sobre a história de vida de nosso presidente, na verdade pretende tratar da história de vida da maioria dos brasileiros. Como dizem seus produtores, é um filme de drama familiar e não político, muito embora toda a polêmica sobre arte autônoma ou mera propaganda político-eleitoral tenha ofuscado a apreciação do filme em si.
O filme foi superestimado na mídia como veículo de mitificação dos segmentos mais baixos da população, que não tem tanto acesso a cinemas, e subestimado pelas classes mais altas que têm todo acesso possível. A questão que está a ser respondida, portanto, é se a popularidade da figura do presidente pode de fato ser transferida, se não para um filme, pelo menos para sua candidata, e em que grau de sucesso. O que nos parece curioso é o pouco caso que as elites brasileiras dão às escolhas do povo. Se não a seus santos prediletos, pelo menos a seus heróis civis e políticos. Quando heróis são absolutamente necessários ao sentimento de patriotismo, civismo e de pertencimento a uma cultura. Heróis são símbolos de identidade cultural, como língua, costumes, crenças e valores. E Lula, filho do Brasil, é filho de uma mãe abandonada e ciosa de seus deveres. É filho sem pai, de um todo um Brasil órfão da figura protetora de um pai responsável, um grande líder que lhe aponte caminhos, um estadista da envergadura de D. Pedro II ou Getúlio Vargas, que deram suas vidas pelo bem da maioria e por ela são reconhecidos no imaginário político popular. Se agora só temos companheirada, isto só confirma a ausência paterna, simbolizada pela Justiça na tradição ocidental, a omissão das elites em participar da vida política. O que confirma também o déficit de cidadania. Visite
http://www.lulaofilhodobrasil.com.br/
http://www.youtube.com/lulaofilhodobrasil?gl=BR&hl=pt