29 dezembro 2009

Máximas de um país mínimo, de Reinaldo Azevedo


Num país onde todos os políticos se dizem de esquerda ou, no mínimo, socialdemocratas, onde são raros os que se assumem como conservadores, é mais do que saudável ter alguém que desafine com toda esta burra e pseudo-unanimidade. Pela sua vasta cultura geral, pela vivacidade de seu texto, pela sua afiada inteligência e cortante senso crítico, só não posso concordar que seja mínimo o país que produz um jornalista do porte de Reinaldo Azevedo.

Um ponto central no pensamento sob a forma de aforismos do autor é a legalidade que deve prevalecer na prática política brasileira. Mas, como vimos defendendo aqui, para além da prática política de nossos governantes e legisladores, temos forçosamente de ressaltar este mesmo aspecto no âmbito de nossa cultura de cidadania política. E aí a crítica pode se estender a toda a nossa cultura, dos paradigmas do tempo histórico aos complexos dados de nossa formação social. O que torna provinciano o olhar sobre nossa identidade cultural em comparação com os modelos do primeiro mundo. Quando o que é destacável no pensamento de Reinaldo Azevedo é exatamente a sua corrosiva crítica à miserabilidade de nossa vida política, aspecto, aliás, que não faz jus ao que o país já alcançou nos mais variados campos de sua expressão e identidade culturais. O aforismo “O Brasil entrou em decadência sem ter conhecido o esplendor” é aceitável apenas pela sua expressão política, uma vez que não é verdade em outros campos das atividades brasileiras.

Mas a defesa veemente que o autor empreende da democracia é insofismável, sobretudo quando nossas instituições se apresentam tão claudicantes e ainda submissas à sanha corporativa dos governantes. Se a democracia tem de ser protegida de uma minoria totalitária, com muito mais razão deve ser protegida de uma maioria totalitária. Pois democracia é aquele regime que garante os direitos fundamentais do homem, dos quais o mais fundamental é o direito de dissentir dos poderosos. A alerta sobre a omissão de nossas elites quanto à urgência de defesa aberta e contundente dos valores humanistas é mais do que pertinente. É urgente dado a hesitação geral das elites em todo o continente latino-americano. Embora possamos discordar de vez em quando, não na essência, mas meramente na forma, quando o autor afirma que “esquerdistas acreditam na história enquanto sujeito e no sujeito enquanto objeto”. Se os liberais são clássicos, eivados de romantismo serão exatamente os primeiros socialistas utópicos, que acreditavam piamente no voluntarismo da ação individual. Se a esquerda se deteriorou em esquerdismo, esta crítica é de autoria do próprio Karl Marx quando se refere à doença infantil do comunismo. Quando o que falta de fato na formação de nossa elite política é exatamente o componente do liberalismo clássico. Ou por vício da mentira política, da nossa recorrente compulsão pela quebra de palavra, ou por mera ignorância.

Nada mais preciso do que a sua exortação para que os juízes voltem a julgar inspirados mais no espírito das leis do que no espírito das ruas. Muito embora saibamos que o motor da justiça é exatamente o clamor público. Muito embora devamos restaurar a cegueira da justiça enquanto princípio de equidade e sabedoria, enquanto atributo dos grandes oráculos, os que viam para além dos olhos e eram justos por que sábios. Mas, para além de quaisquer dissensos ideológicos, o que nos une aos brasileiros mais lúcidos, na quadra decisiva de nosso futuro político, é o esforço de todos pelo resgate da qualidade de nossa representação política, é o combate justo e de todos contra a corrupção da vida pública brasileira. Quando Reinaldo Azevedo define a política como “a arte de hierarquizar as mentiras e distinguir as aceitáveis das inaceitáveis”, nos leva a questionar o que existiria fora da política como forma de luta possível contra a própria mentira política. No mais, é sempre instigante e enriquecedor saborear esse estilo destemido e límpido de um de nossos mais lúcidos e argutos jornalistas e cidadãos brasileiros.

Veja o blog do autor

http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/


Sua editora

http://www.record.com.br/novidades_cada.asp?id_novidade=266


E entrevistado por Jô Soares

http://www.youtube.com/watch?v=IRozWuhA0Pk


http://www.youtube.com/watch?v=0ILbbZJ_Y6A


http://www.youtube.com/watch?v=bwtexTiXQLs

30 novembro 2009

A cidadania como guardiã das instituições do Estado


Numa cultura de licenciosidade como a brasileira, o valor da liberdade perde um pouco de sua importância. Assim como numa cultura de violação legal e violência social a preservação da própria vida se torna uma coisa de menor importância e não um valor universal do legado civilizatório da humanidade.

Por fim, num país dominado pela tradição romântica e socialista do meio acadêmico e dos operadores da mídia, o valor da propriedade se torna irrelevante. As investidas de dominação das oligarquias políticas sobre o Estado e as conseqüentes distorções que provocam no livro funcionamento dos mercados resultaram num pacto com o diabo que comprometem os fundamentos do próprio Estado Democrático de Direito.

Em recentes reflexões dedicadas ao liberalismo e a responsabilidade política empresarial, procuro reposicionar o liberalismo como empoderamento das organizações da sociedade civil. Neste caso, temos que pensar e difundir as idéias de defesa do mercado, não apenas como espaço de trocas mercantis (concretas), mas, sobretudo, de trocas culturais (simbólicas). Pois não há possibilidade de desenvolvimento de mercados fora de um contexto cultural maior.

E não vale a pena discutir aqui o sexo dos anjos: o que determina o que, entre os espaços do mercado e os espaços da cultura. Assim como o cinismo dos que gracejam que o povo tem o governo que merece, quando na verdade somos nós enquanto elites que o merecemos pela nossa omissão política.

Urge, portanto, a tarefa essencialmente liberal de fortalecer a consciência de cidadania tanto dos indivíduos quanto das organizações. Para além de centros de estudo, urge mobilizar toda uma rede de organizações, movimentos e iniciativas convergentes, através da própria mídia e resgatar seus compromissos de responsabilidade política, assim como aglutinar as empresas comprometidas com a defesa do livre mercado e o retorno do Estado às suas funções precípuas.

Trata-se de resgatar uma guerra no campo da argumentação que foi perdida pela excessiva ênfase liberal no seu compromisso histórico com o racionalismo, e o seu conseqüente descaso para com o aparelho da propaganda, exemplarmente utilizado pelos socialistas. Desde os expedientes de manifestos e panfletos dos socialistas utópicos alemães e franceses, passando pelos comunistas marxistas-leninistas, até a agitprop stalinista e o esgotamento da mentira que não podia enganar a todos durante todo o tempo.

Em nossas terras, urge enfrentar a retardada utopia brasileira de um Estado de bem-estar social, de uma Estado provedor perigosamente onipotente pela nossa tradição sebastianista, na sua versão tupiniquim da social-democracia, que nada mais é do que um socialismo envergonhado, no dizer genial de Roberto Campos.

São mais de 500 anos em que está entranhado no nosso imaginário o providencialismo religioso, o paternalismo estatal e todas as fantasias românticas sucedâneas desta imagem-símbolo de nossa cultura de cordialidade, jeitinho e impunidade. Da crença no sebastianismo até os golpes de estado de nossa história recente, estamos sempre esperando por um salvador da pátria, um milagre da Providência, a fezinha numa loteria qualquer, ou a tentação por alguma medida heterodoxa.

No que toca à nossa organização social e política, somos resultado de uma combinação original das mais diferentes mazelas culturais: do nepotismo, corporativismo e burocratismo ibérico-português, ao cunhadismo tupi-guarani e o fetichismo africano.

Introduzir uma pauta de reforma do Estado, de modernização da administração pública, do destravamento da economia, da prosperidade do país e de uma cidadania plena e autônoma, diante desta herança cultural, é tarefa de grande magnitude e que requer persistência, objetividade, tolerância para a convergência de idéias básicas e, sobretudo, união de forças.

Não basta uma campanha de propaganda de uma iniciativa isolada, qualquer que sejam as boas intenções de seus titulares institucionais.

Temos de coordenar campanhas cívicas de uma vasta rede de atores institucionais, sobretudo corporações empresariais que assumam sua quota-parte de responsabilidade política empresarial e para além de seus programas de responsabilidade social empresarial, como também empresas do setor psico-social, de serviços e de comunicação, que poderão fazer toda a diferença. A exemplo do extraordinário esforço de reconstrução das instituições civis, jurídicas e políticas americanas no famoso episódio do crime doesn´t pay.

Se as instituições da religião e da família estão em crise mundial, arrastando com elas os três clássicos sistemas de reprodução simbólica de valores culturais, os sistemas jurídico-político e o de educação, que também se apresentam comprometidos com a dominante cultura de impunidade brasileira, nos resta exatamente o melhor deles, pelo menos do ponto de vista técnico, que é a mídia, para que concentremos esforços tanto para abrir espaços para nossas mensagens como para recuperar recursos conceituais, valores humanistas e novas estratégias de argumentação visando a missão cívica de superar vaidades e arregimentar corações e mentes.

Podemos apreciar as complexas relações da sociedade com o Estado sob várias óticas. A mais explorada, todavia, tem sido a ótica estritamente econômica da relação do Estado com os cidadãos pagadores de impostos. E não as dimensões históricas da cidadania enquanto titular de direitos civis à segurança e à justiça, como tampouco a cidadania política que intitula o cidadão eleitor de efetivo poder político mandatório.

Se de um lado os próprios cidadãos não se reconhecem como tais, aceitando a sutil e dissimulada figura de “contribuintes” que a própria burocracia fiscal lhes impôs, de outro lado, as iniciativas de combate aos desmandos dos governantes, conduzidas sempre pela parte do empresariado mais independente, se limitam às questões fiscais com campanhas ingênuas contra a carga tributária.

E tais argumentos não conseguem a adesão dos demais setores da sociedade, como pequenos e médios comerciantes, prestadores de serviços, profissionais liberais, meio acadêmico, artistas, estudantes, produtores rurais etc, mas sobretudo os operadores da mídia e da justiça como reprodutores argumentativos. Como se todos acabassem sendo cooptados pela tradição arraigada do mito do Estado providencialista e paternal.

A própria tradição do pensamento liberal, por seu compromisso histórico com o iluminismo, desdenha da retórica socialista com relação à onipotência do Estado. Quando nele repousa na verdade a esperança ontológica da humanidade por justiça, valor universal pelo qual muitos liberais passam desatentos de sua essencial importância como instituto garantidor da vida, da liberdade e da própria propriedade. Pois fora a falha justiça dos homens só resta mesmo a justiça das próprias mãos ou das mãos de Deus...

Quando a relação do Estado com os cidadãos pagadores de impostos não pode ser entendida apenas na dimensão econômica como cidadãos consumidores, mas, sobretudo, nas dimensões civil e política dos cidadãos moradores e eleitores (residents & voters). Trata-se, ao fim e ao cabo, de uma relação jurídico-política, onde o Estado, como contratado dos cidadãos para o provimento prioritário dos serviços da justiça, das garantias constitucionais da segurança, da vida, da liberdade e da propriedade, não tem cumprido a sua parte.

Quando, se formos aprofundar a análise semiológica do conteúdo de toda a opinião pública brasileira, através dos mais variados temas gritados pela mídia, como segurança, miséria, corrupção, violência, desigualdade, esperteza, desordem, prepotência, privilégios, impunidade, etc, poderíamos sintetizar no final num único e verdadeiro tema: a omissão da justiça. Portanto, para além de bater nos excessos de poder do Estado, urge mostrar que o rei está nu, que ele não tem cumprido com seu dever de casa, seu contrato básico de agente de segurança e árbitro dos conflitos da sociedade. Urge, portanto, empoderar a cidadania!

Desde nosso convívio acadêmico com Mario Guerreiro, lá se vão mais de vinte anos, nas dependências do IFCS da UFRJ, onde era o único docente assumidamente liberal, já nos perguntávamos por que nossas elites não assumiam uma estratégia de argumentação política baseada na afirmação da cidadania a partir de valores universais da civilização ocidental, através das idéias e princípios legados pelo pensamento liberal, que se tem sido no correr da história convincente sob o ponto de vista puramente racional, tem sido pouco persuasivo sob o ponto de vista de sua argumentação retórica.

Com sua histórica dificuldade, pela aparente dicotomia entre seu compromisso racional-iluminista e o recurso, se não da mera agitação política, pelo menos da propaganda, dos quatro valores universais, clássicos e intrinsecamente liberais, como a vida (enquanto segurança de vida), a liberdade (diante da opressão dos governos), a propriedade (enquanto extensão do indivíduo e sua própria identidade social) e a honra (enquanto justiça e respeito a contratos), três deles acabaram aberrantemente deturpados como condições de vida, liberdades sem limites e propriedade coletiva pela propaganda socialista.

Por esta razão, temos preferido disputar no campo da argumentação social-democrata o valor da honra, do respeito aos contratos, o que significa rigorosa e tão somente a justiça enquanto função-limite do Estado e serviço indelegável de garantia da segurança de vida, da inviolabilidade dos contratos da propriedade (que nada mais são do que títulos), das liberdades civis, enfim, da própria cidadania, que, se corretamente entendida, é em última instância a melhor trincheira da luta contra o Leviatã.

Nossa proposta institucional, não enquanto think tank, mas enquanto talk tank, tem sido a de colher idéias em estado de argumento, ou seja, mais do que convincentes para um auditório racional específico, persuasivas para uma audiência emocional geral e trabalhá-las editorialmente na mídia de massa.

Assim é que entre empresários, acadêmicos e profissionais liberais, temos percebido que todos, embora com a predisposição de focar seus argumentos contra a carga tributária do Estado, têm tido imensa dificuldade em obter adesão entre os demais atores sociais e cidadãos comuns de modo geral. Isto por que a questão da carga tributária no Brasil, por não ser destacada do preço dos bens transacionados, acaba não percebida pelos consumidores e considerada questão de interesse exclusivo do empresariado.

Algumas outras campanhas sobre a qualidade da educação pública, e mesmo originais soluções como o voucher educação, idéia brilhante, mas de cunho setorial, tem sido insuficientes para proporcionar maior identidade da causa liberal na opinião pública nacional. Isso pra não falar no comprometimento do próprio label pelos péssimos costumes políticos brasileiros, quando um certo partido chega a trocar sua identidade liberal por democrata...

Nossa experiência profissional, nos leva a convicção de que a justiça, como valor central do liberalismo, e entendida como instância maior da garantia e honra dos contratos, e a cidadania, como trincheira da sociedade civil organizada, podem vir a ser uma nova e original frente da luta argumentativa e se constituir na melhor e mais eficaz estratégia de argumentação liberal no país.

Contra este imaginário de cultura estatista-providencialista, temos de mobilizar recursos financeiros a curto prazo e recursos de comunicação a médio e longo prazos, junto a empresários de visão histórica, para:

• Produção de campanhas de responsabilidade política empresarial assinadas pelas mais variadas entidades e associações civis e empresariais em espaços mal utilizados para campanhas de filantropia, comunitárias ou de responsabilidade social das empresas de mídia;
• Constituição de um banco de espaços formado por bonificações de volumes extras da publicidade comercial paga pelas grandes empresas varejistas e anunciantes das empresas de mídia;
• Constituição de um fundo financeiro para aquisição de serviços e recursos conceituais e técnicos de comunicação como pesquisas, papers, consultorias, criação e produção de materiais;
• Desenvolvimento de um programa de monitoramento dos conteúdos do jornalismo e do entretenimento da mídia nacional, sobretudo em função da reprodução do imaginário estatista-providencialista, da legitimação da impunidade, dos preconceitos culturais e bloqueios mentais dos quadros gerenciais públicos e privados, da desmobilização da cidadania e da demanda generalizada (e equivocada por que sem a necessária contrapartida de deveres civis e políticos) pela demagogia de direitos sociais ilimitados;
• Organização de programas de oficinas, fóruns e seminários específicos junto a jornalistas editores e produtores culturais e de entretenimento para discussão dos valores humanistas e sua distorção na produção de conteúdos da mídia;
• Organização dos mesmos programas para demais segmentos formadores de opinião como operadores da justiça, entidades e associações empresariais e profissionais;
• Explicitar o imaginário preconceituoso da cultura brasileira criado, reproduzido e projetado pela mídia como as figuras caricatas do empresário ganancioso e transgressor, do político fisiológico e desonesto e do cidadão cúmplice e omisso;
• E também o imaginário preconceituoso da cultura brasileira criado, reproduzido e projetado pela mídia para os valores da justiça que não funciona (mais vale um mau acordo do que uma boa demanda), da liberdade enquanto licenciosidade, do lucro como cobiça e pecado, dos direitos sociais ilimitados, universalizados e sem custos aparentes, da falta das contrapartidas dos deveres de cidadania; enfim, da democracia enquanto desordem e da demagogia como fatalidade e outros fenômenos da cultura de impunidade nacional;
• Além da flexibilização dos papéis sociais da polícia e do bandido; contraventores e benfeitores; Estado e providência paterna para órfãos de cidadania; tesouro e teta da viúva; magistrados e sinecuras; administradores públicos e burocratas; empresários e delinqüentes econômicos; mulheres como guerreiras e paternidade irresponsável; responsabilidade social empresarial e filantropia como cidadania etc;
• Apenas a título de exemplo, temos desenvolvido atenção especial monitorando os conteúdos produzidos pela teledramaturgia brasileira e por programas jornalísticos de entretenimento, que justamente reúnem a ficção e a realidade numa mesma argumentação, reproduzindo a um só tempo, não apenas a ilusão do Estado provedor onipotente, como também uma cidadania desmobilizada e mendicante.

Por fim, se o conceito da própria propriedade é inapropriadamente desentendido no Brasil como desapropriação da propriedade privada pela sua apropriação como propriedade coletiva, de maneira ilegal, autoritária e boçal, uma vez que para a sua própria condição de possibilidade é o consentimento do cidadão titular da propriedade privada para a existência da própria propriedade coletiva, quando o valor que se impõe urgentemente é o da própria Justiça que a própria propriedade, juntamente com a vida e a liberdade, institui através do Estado.

Com isso, poderemos desmanchar o imbroglio cultural brasileiro que toma o público, que deveria ser de propriedade de todos, como sendo de ninguém ou, no máximo de quem dele se apropria e o privatiza pela força e de forma vil. Nossa causa, portanto, é a de privatizar tudo que possa ser privatizado, menos o próprio Estado, que deve ser resgatado urgentemente como bem público.

Esta é a estratégia de argumentação de uma cultura de cidadania, que, para além de entendida como urbanidade, solidariedade, caridade, civilidade, direitos sociais ilimitados, e responsabilidade sócio-ambiental, deve ser entendida como direitos e deveres civis e políticos, responsabilidade política empresarial, como consciência e exercício de controle social sobre mandatos políticos, planos de governos e aplicação dos orçamentos públicos.

Para que se cesse no Brasil o que já chamamos de desordem e regresso de nossa cultura de governantes patrimonialistas, falsos provedores de insaciáveis demandas por direitos sociais e omissos na defesa da vida, da liberdade e dos contratos.

24 setembro 2009

Inimá de Paula, um dialeto cromático


Inimá de Paula, um dialeto cromático
Júlio Martins, Museu Inimá de Paula, abril de 2008

Tido como o maior pintor moderno mineiro, Inimá de Paula (1918-1998) era chamado de “o mestre das cores” ou “o maior fauve brasileiro”, segundo o crítico Frederico de Moraes, tamanha a importância do elemento cromático em sua linguagem artística essencialmente expressionista. Expressionismo do final do século XIX que responde ao impressionismo que lhe antecede como a representação pictórica, não do que é, ou parece ser, ou mesmo como vemos ou temos a impressão de ver, mas como efetivamente sentimos o que vemos. Como o próprio expressionismo, o fauvismo foi a ponte do impressionismo do século XIX para a arte moderna, sobretudo para o cubismo que nasce em 1907. Como diria o fundador do fauvismo Matisse e do cubismo Picasso, “Cézanne era o pai de todos nós”. Pois neste expressionista fauve (que significa fera, besta selvagem) é que se começa a notar a explosão das cores puras e sem contornos como recurso de superação do próprio desenho, os traços firmes, os riscos espontâneos e a distorção da própria perspectiva como expressão estética e exacerbação dos sentimentos do pintor. E não só Henri Matisse foi chamado de “fauve”, como também Paul Cézanne, Paul Gauguin, George Braque, André Derain e todos aqueles que exorbitavam da expressão dos sentimentos segundo a crítica francesa do início do século XX. Este aspecto se torna particularmente importante para nosso imaginário a partir do movimento modernista de 22 que ressalta os traços selvagens e de cores explosivas da própria cultura brasileira.
Outro aspecto de suma importância na arte de Inimá de Paula para a contribuição brasileira é sua definitiva opção pelo figurativismo, depois de um breve período abstracionista, num contexto das décadas de 50/60 em que o primeiro era trincheira ideológica de uma arte engajada nas causas populares e o segundo seria a inserção da arte brasileira no debate estético das vanguardas mundiais. Neste debate de nacionalismo versus internacionalismo, Inimá se decide definitivamente pela afirmação dos temas de nossa cultura, como, e principalmente, a favelização das cidades e a devastação das florestas, temas os mais recorrentes de um grande ciclo de obras deste período. Foi, portanto, ambientalista avant-la-lettre. Mas estas opções jamais significaram adesão incondicional ao realismo, tão em voga no populismo das esquerdas da época, sequer o abandono de suas convicções expressionistas. Muito pelo contrário, só exacerbou ainda mais o traço inconfundível de seu estilo. Assim como figurativismo não significa necessariamente provincianismo, abstracionismo não significa necessariamente modernismo. As opções temáticas de Inimá significam também o seu melhor engajamento nas grandes questões nacionais, sobretudo em época de desenvolvimentismo desenfreado e às custas da sustentabilidade ambiental, controvérsia, aliás, que persiste até os dias de hoje. E pauta obrigatória da cidadania mais consciente.
Conheça mais em http://www.inima.org.br/index.html

11 julho 2009

Retrato do Brasil

Ensaio sobre a tristeza brasileira
de Paulo Prado

Publicado em dezembro de 1928, Retrato do Brasil e um pequeno livro que vai marcar definitivamente a reflexão sobre a identidade nacional e o caráter de nosso povo. Logo na primeira frase, Paulo Prado evoca seu contemporâneo Monteiro Lobato no conto Urupês (1918): “Numa terra radiosa vive um povo triste”. E na década em que acontece a Semana de Arte Moderna, financiada em parte por ele, rico cafeicultor que é, Paulo Prado precede as duas mais importantes obras da antropologia brasileira, de Gilberto Freyre e de Sergio Buarque de Hollanda, de 1933 e 1936 respectivamente. A intenção de Paulo Prado (1869-1943) era a de prospectar as eventuais razões históricas da crise nacional e denunciar a estagnação em que vivia mergulhado o país, prenunciando o fim violento da Primeira República, diagnóstico que seria confirmado com a revolução de outubro de 1930. Escrito numa prosa sóbria, Retrato do Brasil expõe cruamente as mazelas dos brasileiros e nos leva a refletir sobre os defeitos de formação de nossas elites e a tendência para a retórica na política, que adia o enfrentamento da questão social.
Composto de quatro curtos capítulos e um post-scriptum, Retrato do Brasil sintetiza o caráter nacional em dois pecados – luxúria e cobiça – e dois sentimentos – tristeza e romantismo. A cobiça do ouro e do enriquecimento fácil dos primeiros colonizadores que não chegam a merecer este nome diante do espírito animal da depredação da terra. A luxúria implícita na súmula papal “não existe pecado abaixo da linha do Equador” que também não deixa de caracterizar como depravada a relação com o povo gentio. O que tornará definitiva a interpretação comparativa entre as duas grandes colonizações americanas pelas diferentes naturezas culturais dos povos saxões e ibero-portugueses. Paulo Prado é o primeiro brasilianista a enaltecer as virtudes de nossa mestiçagem e a constatar as diferentes relações com a escravatura entre as colonizações inglesa e ibero-portuguesa. É importante lembrar que Eduardo Prado, tio de Paulo Prado, foi quem o levou a conhecer a Europa e os Estados Unidos, tendo sido um grande crítico da cultura americana. Mas podemos resumir as grandes diferenças culturais em três dimensões de natureza moral-religiosa, política e psico-social. Na dimensão moral-religiosa o que marca as diferentes visões de mundo, decorre das tradições católicas e anglicanas, onde os portugueses, motivados pelo saque, não se faziam acompanhar de suas famílias, enquanto os primeiros 120 colonos ingleses do Mayflower eram compostos de famílias de colonos, onde o moralismo era atávico e não de fachada. Na dimensão política a diferença se dá a partir de uma casa real como a inglesa que era chefe da igreja, enquanto a portuguesa era vassala do papa. Se a inglesa colocava o interesse dos cidadãos acima dos clérigos, a portuguesa se submetia aos tribunais da Santa Inquisição. A dimensão de natureza psico-social se dá pela própria motivação da colonização, quando as famílias de lavradores de Southampton deixava seu país de origem na perspectiva de criação de uma Nova Inglaterra, longe e independente da antiga nobreza, tradição que remontava ao século13, com a edição da Carta Magna. Tratava-se pois da perspectiva de criação de um paraíso. Enquanto os donatários portugueses, egressos de uma classe de comerciantes, estavam a serviço do rei na exploração dos fins da terra.
Por fim a marca da tristeza ou da melancolia, que pode ser entendida como o sentimento maior do romantismo, decorre do próprio fastio da luxúria e da cobiça, uma vez a permanência da falta de propósito político, da crença numa nova perspectiva de vida e da construção de uma sociedade melhor. Sobretudo num cenário de exuberância natural em que se evidencia ainda mais o fracasso do projeto cultural.
Mas Paulo Prado nos reconforta no final de seu livro nos alertando que a confiança no futuro não pode ser pior do que o seu conhecimento de nosso passado.

Veja http://www.companhiadasletras.com.br/
http://www.ichs.ufop.br/memorial/trab/h9_4.doc

17 maio 2009

De Cive, Thomas Hobbes

Numa conjuntura onde se discute cada dia mais a função, importância e tamanho do Estado, enquanto instrumento de afirmação da cidadania, e não como fator de sua alienação política ou mesmo opressão, é fundamental nos voltarmos para os clássicos pensadores do iluminismo. “There is no word without sword”, segundo Hobbes (1588-1679), é a lei fundamental do contrato social. O que o coloca como precursor do próprio Rousseau (1712-1778), na medida em que o Estado, enquanto armado do poder da espada, é o único meio que o homem tem como garantia dos contratos, de sua palavra, e manutenção da paz pela espontânea abdicação de sua liberdade natural. Embora sua obra mais conhecida tenha sido O Leviatã, de 1651, já nesta obra De Cive (Do cidadão), de 1640, Hobbes, fugindo da República de Cromwell, fundamenta sua concepção monarquista do poder político na medida em que a legitimidade do monarca está na vontade do povo, fonte de sua soberania, e não na vontade de todos os cidadãos, que ele chama de simples habitantes da cidade, multidão, sem o necessário compromisso com a autoridade do rei e os destinos da nação. Com relação a John Locke (1632-1704) que o sucede, Hobbes lhe prenuncia a idéia de governo pelo consentimento, embora Locke limite o contrato do rei pela preservação das liberdades civis, da vida e da propriedade individuais. Mas é com Hobbes que se inaugura o iluminismo inglês e alemão dos séculos XVI e XVII, em resposta ao Renascimento italiano dos séculos XIV e XV e do vindouro iluminismo francês dos séculos XVII e XVIII. Nunca é demais nos lembrar que a Revolução Gloriosa inglesa, que depõe e limita o poder absoluto da monarquia no século XVII, só terá seu equivalente francês um século depois, em 1789, com a Revolução Francesa, enquanto a Alemanha jamais será unificada por um regime monárquico absoluto. Se a lei natural do homem é a autopreservação, é o contrato social feito através do Estado forte que evita a guerra de todos contra todos. Mas Hobbes vai mais longe e explica inclusive a diligência do trabalho e a emergente acumulação da riqueza capitalista com o ambiente pacífico criado pela força da espada e da lei do Estado monárquico. Como precursor do liberalismo, Hobbes também contradiz este poder do Estado monárquico quando define que os motivos do homem na vida em sociedade é o lucro ou a glória; não propriamente o amor ao próximo, mas sobretudo o amor por si mesmo: vivemos em sociedade, não por amor aos demais, mas por medo de todos. No De Cive, Hobbes estabelece as leis relativas ao contrato social e as próprias leis da natureza. Fundamenta a tradição da lei civil tanto no direito romano, a partir da lei das 12 tábuas, como na lei mosaica da Torá judaica; tanto o “não faças ao próximo aquilo que não queres que te façam a ti”, do código civil romano, como o “amarás o teu Deus acima de todas as coisas” (entendendo-se Deus como a própria “palavra de Deus” ou a própria Justiça do primeiro mandamento judaico que marca a Antiga Aliança) e, por fim, o “amarás o teu próximo como a ti mesmo” da Nova Aliança cristã. Hobbes também é o primeiro pensador político a nos alertar quanto aos perigos de deterioração das três formas de governo: a monarquia que pode degringolar para a tirania, a aristocracia que pode se degradar para oligarquia, e a própria democracia que pode se deturpar para anarquia ou demagogia. Antes de Montesquieu (1689-1755) pregar a separação dos poderes, podemos pressentir em Hobbes as próprias tendências monárquica, oligárquica e demagógica, respectivamente dos poderes executivo, judiciário e legislativo. Pois cabe à monarquia sobretudo a manutenção da espada, dos exércitos e da segurança dos cidadãos, como última palavra sobre a guerra. Como cabe a aristocracia judiciária a manutenção da paz pela arbitragem dos conflitos, quebra de contratos e transgressões legais. E finalmente às assembléias legislativas, a administração dos governos que é essencialmente a gestão da economia, a arrecadação dos impostos e a destinação das riquezas.
Por fim, vale remarcar que Hobbes inaugura o iluminismo na filosofia inglesa pois, apesar de fundamentar a lei civil à lei natural ditada pela religiões da tradição judaico-cristã, não subordina o poder monárquico ao direito divino dos reis, mas sim na soberania do povo pela manutenção consentida do contrato social.
Veja mais em http://www.martinclaret.com.br/home/mostra.asp
http://en.wikipedia.org/wiki/Thomas_Hobbes
http://www.youtube.com/watch?v=BCvTq5Dgd7o&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=jNj0VhK19QU&feature=related

06 abril 2009

Óidipous, filho de Laios

A história de Édipo Rei pelo avesso, De Antonio Quinet A verdade às vezes cega porque ofusca. E a chamada crítica teatral da grande mídia não tem aberto bem os olhos para uma dramaturgia que tenta superar o espaço cênico com múltiplas linguagens artísticas e com um texto, por exemplo, transcriado da clássica peça de Sófocles, como afirma o próprio autor Antonio Quinet. Como o próprio oráculo Tirésias, cego e, por isso mesmo, portador da verdade, da decifração dos enigmas. Pois neste caso é vantagem combinar o olhar do psicanalista com as mãos do diretor de cena teatral, como é o caso de Quinet. Por que ele sabe que Tirésias é cego para melhor “ver” a verdade na sua dimensão essencialmente ideal, como de sorte, todo o pensamento idealista-platônico daquela época. No seu louco afã de se limitar ao texto antigo, muita vez a crítica é míope, conservadora e intolerante para fruir a abertura e polissemia de verdadeira obra-de-arte. Como diz o autor na apresentação de seu trabalho, se trata de revirar o mito de Óidipous pelo avesso pois o texto de Sófocles e suas interpretações e encenações se limitam ao parricídio e o incesto quando, pelo avesso, está na verdade o filicídio de Laios contra Óidipous. Como na diferença que marca o De’s misericordioso de Israel que segura a mão de Jacó no momento em que este tenta sacrificar Isac e o Deus cristão que não ouve a súplica de Cristo na cruz quando lhe pergunta por que o abandonou. A maldição para tamanha transgressão será a peste de todo um povo no vaticínio de Pélops a Laios que teria raptado seu filho Crísipo: - terás um filho que te matará. E Óidipous herdará a mesma maldição da esfinge: - farás sexo com tua mãe e matarás teu pai! Ou seja, o parricídio de Óidipous está justificado pela tentativa de filicídio de Laios. E a maldição se perpetua. Mas Óidipous sobrevive ao filicídio de Laios, ao seu triplo equívoco de nascer amaldiçoado, ao de matar o pai e se casar com a mãe, gerado e gerador, saindo e entrando pelos mesmos quadris de Iokaste. O preço é não querer saber e se cegar, pela inevitável herança da maldição lançada contra o pai. Mas para além da ação dramática e dos conceitos psicanalíticos, o que chama a atenção e está na origem da polêmica crítica, é a transgressão do autor ao próprio universo sagrado do teatro grego. Quinet se apropria dos textos de Sófocles e Ésquilo para recriar, ou transcriar, o drama de uma pulsão de morte, da relação de Óidipous com Laios. E mais transgride quando aproxima o universo da cultura grega com o universo da cultura Xingu. E aí a minha grata surpresa: o que pensava ser apenas uma citação de nossas origens, é mais do que isso, uma aproximação antropofágica de ambas as mitologias, onde a indígena digere a européia para a produção de uma terceira cultura. Como definiu o próprio autor: - em ambas a lei da hospitalidade é sagrada, ambos os povos da Grécia e do Xingu são panteístas e andam nus, para além do significado de Óidipous, como pés inchados, tal qual o Abaporu de Tarsila do Amaral, que marca a passagem de nosso modernismo e foi a própria inspiração de Oswald de Andrade para o manifesto antropofágico, onde deciframos nossas origens tanto gregas quanto indígenas. Resta saber se a crítica enxergou a essência do trabalho de Quinet: a necessária afirmação e transgressão de nosso olhar nacional e singular diante da farta mesa da mitologia grega. Ou será que não podemos mesmo participar do banquete mitológico universal? Confira você mesmo! http://oidipousfilhodelaios.blogspot.com/http://www.youtube.com/watch?v=M1PXrzr95OU

01 março 2009

Intérpretes do Brasil - Ensaios de cultura e identidade


Intérpretes do Brasil – Ensaios de cultura e identidade
Günter Axt e Fernando Schüller, organizadores
Artes e Ofícios Editora, Porto Alegre, 2004

São 14 dos maiores intérpretes da cultura e identidades brasileiras, resenhados por notórios especialistas. No período colonial (final de século XVIII), para além de Tiradentes e o grupo de inconfidentes, são destacados os intelectuais do movimento como o poeta Cláudio Manuel da Costa, o poeta e ouvidor de Vila Rica Tomás Antônio Gonzaga, o cônego Luis Vieira da Silva e o clérigo Carlos Correia de Toledo, possuidores de uma das maiores bibliotecas da colônia, onde se lia vários dos enciclopedistas como Descartes, Montesquieu, Voltaire e Condorcet, além de Rousseau. Portanto, embora a maioria fosse de proprietários de terras e escravagistas, concebiam uma república parlamentarista com a criação de uma universidade em Vila Rica, que seria a capital de uma Nova América (do Sul). Já no período do Reino Unido de Portugal, Brazil e Açores (1808 – 1822), o grande intérprete escolhido é Hipólito José da Costa (1774 – 1823), discípulo do liberalismo inglês e suas conquistas políticas dos direitos civis de expressão, livre iniciativa, opinião e propriedade. Editor do primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense (1808 – 1822), cria pela primeira vez a própria representação de um país diferente do Reino de Portugal, prevendo por assim dizer a própria independência de 1822. A partir da independência, todavia, nos surpreendemos num ato falho relativo à nossa própria denominação de origem, quando o termo brasileiro, que, na língua portuguesa, não se trata do sufixo gentílico relativo à pátria de procedência, como braziliense, senão do sufixo designativo de ofício (de explorador), como mineiro, vaqueiro, pedreiro etc, veio a superar este último como nosso principal gentílico e, portanto, referente aos portugueses que exploravam o pau brasil e não propriamente aos nativos da nova nação chamada Brasil. O terceiro grande intérprete é Joaquim Nabuco (1849 – 1910), monarquista parlamentarista e responsável pelo movimento abolicionista, foi autor e parlamentar de grande destaque na transição do império para a república. A Sociedade Brasileira contra a Escravidão, que fundou em 1880, dirigia seu esforço argumentativo sobretudo aos cidadãos seus iguais, e não aos próprios escravos, que poderiam ser dizimados se incitados à rebeldia. Foi o primeiro grande estadista a empreender uma reforma social que se iniciasse pelas elites para lhes convencer das superioridades da doutrina liberal, pois esta, sim, seria a verdadeira emancipação social, econômica e política nacional. De certa forma, seu livro Minha formação, em que relata sua biografia iniciada no engenho da família e a convivência com os escravos africanos, prenuncia Casa Grande & senzala de Gilberto Freyre.
Outro pernambucano que nos legou uma grande obra de interpretação de nossa identidade cultural foi Oliveira Lima (1867 – 1928), jornalista, escritor e diplomata que, em grande parte sob a gestão do Barão de Rio Branco na chancelaria brasileira, criticou exaustivamente a permanência do domínio das oligarquias imperiais sobre a república brasileira. Foi autor de grandes obras sobre nossa história imperial e do clássico Pan-Americanismo em que fazia reservas sobre a doutrina Monroe de defesa da influência norte-americana sobre os países do continente sul-americano.
O quinto intérprete é o grande Euclydes da Cunha (1866 – 1909), autor do célebre Os Sertões, de 1902, obra em que apresenta a realidade social do interior do país, em grande parte desconhecida pela consciência intelectual brasileira, republicana, racialista e positivista. Engenheiro e jornalista, ao ser enviado pelo O Estado de São Paulo para relatar a guerra de Canudos no sertão da Bahia em 1897, apresenta o sertanejo como homem antes de tudo forte no contexto de um meio-ambiente natural e político-social gravemente hostil, quando esta era uma surpreendente novidade para uma intelectualidade que à época justificava o atraso cultural do país pelos maus costumes coloniais da mestiçagem, segundo um dos autores da então em voga teoria da eugenia das raças, o Conde de Gobineau que visitou o Rio de Janeiro em 1896. Ruy Barbosa, por exemplo, taxou os seguidores do místico Antônio Conselheiro como idiotas, quando Canudos já contava com 25 mil habitantes, era a segunda maior cidade da Bahia, depois de Salvador, não faltava empregos, havia escola, e rígidos costumes morais.
O sexto intérprete é Monteiro Lobato (1882 – 1948), escritor, político, diplomata, empresário, reformador social e editor dos mais afirmativos da genuína identidade cultural brasileira. Quando em 1917 publica um conto sobre o caipira brasileiro, o personagem que nomeia de Jeca Tatu, dando margem à publicação no ano seguinte de sua mais polêmica obra, Urupês, reunindo quatorze outros contos sobre costumes e casos de caipiras do interior do Brasil, Monteiro Lobato inaugura um consistente debate sobre a nossa identidade e as causas de nosso atraso cultural, uma vez que ainda estávamos cativos das idealizações do romantismo indigenista nacional, a meio caminho de um Peri de José de Alencar e o futuro herói sem nenhum caráter Macunaíma, de Mario de Andrade. Ou o país era inviável para a construção de uma verdadeira democracia representativa, pela má qualidade da formação cultural e política de seu povo, ou o seu abandono na verdade nada mais era do que a intencional omissão e irresponsabilidade política das próprias elites, beneficiárias em última instância do statu quo vigente. A partir da denúncia e da polêmica, Monteiro Lobato começa a erigir uma das maiores obras de literatura infantil totalmente positiva e presa às tradições folclóricas nacionais. Como forma de responsabilização política pelo descaso dos governos, meio de difusão de nossos valores autóctones, propaganda social de nossas tradições e educação de massa das gerações vindouras: “Escrevo para as crianças porque depois de amanhã elas construirão o Brasil com que sonhamos”. O sétimo intérprete é Oliveira Viana (1883 – 1951), na sua máxima obra Populações meridionais, de 1920, o jurista, historiador, sociólogo e professor se propõe a estudar os três tipos sociais brasileiros: o matuto agricultor dos platôs e montanhas de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, o gaúcho pastor dos pampas e o sertanejo pastor das caatingas do nordeste. A que anos mais tarde outro grande intérprete nacional, o antropólogo Darci Ribeiro, acrescentaria o caboclo da Amazônia e o crioulo dos litorais do sudeste e nordeste. Sua contribuição se dá pela superação definitiva da determinante racial como causa de nosso atraso, substituindo-a pela determinante político-fundiária: o latifúndio era nosso maior obstáculo de desenvolvimento e a solidariedade parental no interior dos engenhos e fazendas inibia a formação de consciência política liberal e independente de self-government. Desde o constituição do Vice-reino e do império, o poder central se curva aos ditames dos barões e coronéis herdeiros das sesmarias coloniais. Retoma o vaticínio de Frei Vicente desde inícios do século XVII: “nenhum homem nesta terra é republico”.
Outro grande pernambucano Gilberto Freyre (1900 – 1987) é o nosso oitavo intérprete quando em 1933 publica Casa Grande & senzala, obra-prima de nossa identidade cultural onde examina as relações de convivência e influência que sobredeterminaram as relações de dominação dos senhores de engenho sobre os negros africanos – note-se o símbolo associativo & provocativamente colocado pelo autor. Desde o pessimismo de Paulo Prado sobre o futuro do país, na obra Retrato do Brasil, de 1928, ou o Manifesto antropofágico, de Oswald de Andrade, do mesmo ano, metáfora e glosa ao desentendimento europeu sobre o sentido dos costumes antropofágicos dos “povos primitivos” que, para além do aniquilamento do inimigo, o homenageava pela absorção e incorporação de suas virtudes e qualidades, não nos era oferecida uma crítica antropológica tão refinada na sua arguta percepção de nosso sincretismo cultural e superação de nosso puritanismo hipócrita. Trata-se da definitiva superação da antinomia entre raça e cultura que Gilberto Freyre teve a chance de absorver nas escolas de antropologia cultural inglesas e americanas quando se formou na Universidade de Columbia na década de 20. Obra de rara genialidade, como veio a se referir sobre ela Darci Ribeiro, não escapou de ser desqualificada por nacionalistas e esquerdistas extremados que a viam como mistificadora das relações de dominação escravocratas. Na quadra de afirmação xenófoba nacional com a radicalização doutrinária entre comunistas, integralistas e trabalhistas, Getúlio Vargas ditando os destinos do país com a implantação do Estado Novo em 1937, proibição de ensino de línguas estrangeiras nas escolas públicas, introdução das disciplinas de Moral e Cívica, criação do DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda, da censura e exaltação dos símbolos nacionais, do populismo desenfreado e das virtudes do trabalho, é de se surpreender mesmo que Gilberto Freyre tenha sobrevivido e sua obra resgatada como um grande marco de nosso autoconhecimento. O nono grande intérprete é Sérgio Buarque de Holanda (1902 – 1982), cuja obra-prima “Raízes do Brasil”, de 1936, vem a investigar de forma definitiva os diferentes tipos de colonização espanhola e portuguesa nos países da América do Sul, Central e Caribe. Onde, no caso brasileiro, a consciência de auto-determinação e cidadania é substituída pela cordialidade das relações paternalistas entre classes sociais tão distantes entre si como donos de engenho e escravaria, mascarando preconceitos de raça e recalcando impulsos de revolta.
O décimo intérprete, Antônio Cândido (1918), professor emérito da USP e grande crítico literário brasileiro, autor de Formação da Literatura Brasileira, de 1957, faz parte do grupo de intérpretes que escreveu obras sobre as várias formações históricas brasileiras, como Celso Furtado, com Formação econômica do Brasil, de 1958, Caio Prado Junior com Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942, Nelson Werneck Sodré, com Formação da Sociedade brasileira, de 1944, e ainda Raymundo Faoro, com Os donos do Poder – formação do patronato político brasileiro, de 1958.
O décimo primeiro intérprete, Raymundo Faoro (1925 - 2003), introduzindo o pensamento do filósofo político alemão Max Weber no Brasil, investiga o tipo de dominação política estabelecida na relação Estado-cidadão no Brasil, onde se prefere a relação carismática à racional-legal ou tradicional, onde a primeira o dominador é escolhido pelas suas pretensas qualidades superiores e pelo carisma que irradia, o segundo tipo de dominação é sempre discutido e em seguida consentido, e o terceiro porque faz parte da tradição e não se questiona. Mesmo tendo sido criticado como liberal, Faoro insiste em priorizar a busca pela liberdade política acima da busca pela igualdade econômica. O décimo segundo intérprete é Nelson Werneck Sodré (1911 – 1999), um dos fundadores do ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros, juntamente com Helio Jaguaribe, Roland Corbisier, Cândido Mendes, Celso Furtado, Roberto Campos, Anísio Teixeira, entre outros, um verdadeiro think tank do nacionalismo brasileiro, eclético doutrinariamente mas focado na defesa da soberania nacional brasileira e de seu papel de liderança no continente, a partir dos anos 50. Além de escritor, militar e historiador, Nelson Weneck lutou por reformas dos sistemas político e econômico brasileiros, cujo protagonismo achava que deveria ser exercido pelas classes operárias, comunista que sempre foi, cassado pelo golpe militar de 64, enquanto que para outros isebianos, como Helio Jaguaribe e Roberto Campos, de estirpe socialdemocrata ou liberal respectivamente, achavam que deveria ser protagonizado pela classe industrial. O décimo terceiro intérprete é Caio Prado Junior (1907 – 1990), que através de sua obra Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942, também de orientação comunista, denuncia a dependência econômica, política e cultural da colônia brasileira em face de sua metrópole portuguesa.
O décimo quarto e último intérprete da coletânea é Roberto Campos (1917 – 2001), embaixador de carreira, escritor, professor, político e estadista diferenciado do contexto dominante de esquerda de toda uma geração de intelectuais brasileiros do século XX, pois foi um dos poucos que assumiu uma posição doutrinária francamente liberal, tendo sido fiel seguidor da Escola Austríaca de economia, de Von Mises e Friedrich Hayek, até então quase desconhecida nos meios acadêmicos brasileiros. Escola que se notabilizou pela oposição franca à tendência de intervencionismo estatal na ordem econômica a partir da solução de Lord Keynes para a derrocada de 1929 e da guerra fria a partir dos anos 40/50. A teoria da completa proteção do cidadão pelo advento do Welfare State onipresente (“From womb to tomb”) passa a ser questionada como paternalismo disfarçado, demagogia, aceleração inflacionária, restrição à iniciativa, burocratismo exacerbado e inibição do exercício da verdadeira função da cidadania que é o exercício do controle social sobre os governantes. Foi extremamente crítico em relação à Constituição de 1988, denunciando como demagogia o que deveria ser a consolidação das instituições do Estado democrático de direito e o fortalecimento da cidadania, denunciando-a como um perigoso expediente de ingovernabilidade do país, na medida em que oferece intitulamentos sem as correspondentes provisões e o termo direitos é citado 76 vezes contra apenas 4 vezes é citado o termo deveres. Ficou emblemática, todavia, no final de sua vida, já em cadeiras de rodas, a sua decisão de comparecer à sessão de votação do impeachment de Collor, demonstrando com seu exemplo que a cidadania está acima de quaisquer interesses.
Cidadania, aliás, cuja consciência não é separada da atuação política, como demonstram todos estes grandes intérpretes da identidade cultural brasileira desta belíssima coletânea.
Vale à pena ler! http://www.arteseoficios.com.br/obras_det.php?id=156

31 janeiro 2009

Documentário do "Taking liberties" integral na internet

Como o direito à liberdade foi ameaçado na Inglaterra

Taking liberties, o documentário
Roteiro e direção de Chris Atkins

Trata-se de um vexaminoso inventário do legado anti-terror deixado por Tony Blair para a sociedade inglesa: sob o lema “nothing to hide, nothing to fear, um dos fundamentos dos direitos civis universais, o direito à privacidade, foi brutalmente violado. Para além dos demais como o direito de protesto e da livre expressão, de não ser preso sem acusação de crime previamente descrito em lei (o famoso instituto jurídico do habeas corpus já prescrito na Magna Carta, desde 1215), o direito de ser inocente até prova em contrário, o direito de não ser torturado para não confessar o que não se praticou, são os fundamentos da convenção européia sobre os direitos humanos assinada pelo próprio ministro Winston Churchill, ao fim da segunda guerra em 1945. Taking liberties é documentário chocante, hilariante e polêmico que detalha a destruição de nossas liberdades civis elementares durante os dez anos de governo do “novo trabalhismo” de Tony Blair (1997 – 2007). Lançado exatamente no mês de despedida do mandato do líder trabalhista, o filme e o livro cobrem as estórias de cidadãos comuns vítimas de abuso de poder da polícia, de prisões injustificáveis e de constrangimentos durante o processo legal etc, cenas que não vemos normalmente nos jornais e nas TVs, o que nos faz levantar suspeitas inclusive de controle dos governos sobre a liberdade de imprensa, na medida mesma em que a cidadania não exerce controle social sobre as ações governamentais e tudo pode ter o pretexto de ser “top secret” , “oficial staff only” ou “prohibited for security reasons” . O documentário tenta responder por que logo os ingleses, os criadores modernos da sagrada liberdade e dos direitos civis, adotaram o Prevenction of terrorism Act de 2005 sob a alegação de que o terrorismo ameaçava as instituições da democracia e do Estado dito liberal. Por que um país sacrifica um valor universal que lhe foi tão caro conquistar? Por conta de uma guerra no Iraque que até mesmo seu promotor, o presidente americano George Bush, acabou por confessar que foi um erro ter entrado e permanecido? Quais são realmente as causas das ações terroristas de fundamentalistas muçulmanos se não a falta das garantias da democracia em seus países de origem? Como as estórias de Bryan Haw que manteve um protesto contra a guerra do Iraque em frente ao parlamento britânico, até provocar uma lei (The serious organized crime and Police Act 2005) específica contra protestos nos arredores do parlamento, o que terminou por inflamar manifestações em toda a Inglaterra; as avós militantes pacifistas que foram protestar contra uma base militar norte-americana em Yorkshire e foram presas por invadir área se segurança militar: ou as irmãs Ellen e Rose que foram presas por obstruir estradas com manifestação pacífica contra a guerra, etc. No segundo segmento deste excelente documentário, o locutor nos dá as boas vindas para o mundo do contra-terror (40:50min): uma feira mundial de indústrias de tecnologia de segurança capitalizando o pânico produzido por governos e a mídia menos responsável. O mesmo Blair que se manifestava totalmente contra a política de controle dos cidadãos, através da criação de carteiras de identidade com mais dados (inclusive histórico escolar, profissional e civil, prontuário policial e até mesmo caracteres de DNA), vai ao parlamento justificar a medida como imprescindível no meio de seu governo e depois do atentado de 11 de setembro. Quando a tradição liberal inglesa sempre rejeitou esta legislação como invasão da privacidade e comum apenas em países autoritários (como a França de Napoleão que inaugurou a medida). É o caso do herói nacional inglês Harry Willcock que, em 1950, se recusou a mostrar sua identidade, foi preso, recorreu e obrigou a Suprema Corte a se pronunciar contra a medida instaurada temporariamente durante a segunda guerra, abolindo a exigência de carteira de identidade e devolvendo seu direito à privacidade. Além do que não se pode provar que seja uma medida eficaz, uma vez que vários dos terroristas presos neste período possuíam fichas na polícia inglesa. O documentário revela também que Tony Blair, assim como George Bush, foram informados por relatórios secretos que a invasão do Iraque apenas provocaria uma onda maior de terrorismo. Assim como denuncia a maior violação aos direitos humanos que foi a tortura denunciada pela Anistia Internacional como método de extração forçada de informações contra terrorismo na prisão da base naval de Guantánamo. A alegoria final sob a forma de um spot publicitário de uma companhia aérea Rendair é hilário (1:25m). E a citação final de Thomas Jefferson é a síntese deste documentário e uma das melhores definições da plena cidadania: quando o povo teme seu governo, temos a tirania; quando os governos temem o povo, temos a liberdade. Veja em http://video.google.com/videoplay?docid=-3351275215846218544

Philosophy, a graphic guide to the history of thinking De Dave Robinson & Judy GrovesIcon Books, Cambridge, 2007

Um campo tão abstrato e complexo como as idéias filosóficas visto pela linguagem tão concreta e didática como os quadrinhos. Só isto é de chamar a atenção de qualquer leitor. A começar pela delimitação do campo da filosofia enquanto especulação sobre as razões primeiras e últimas das coisas até as mirabolantes teorias do conhecimento da idade moderna. Muito embora o texto não considere a delimitação clássica da passagem da especulação mitológica pré-socrática para a propriamente filosófica da era dourada dos gregos, quando da questão de saber do que era feita a realidade se passou para a questão do próprio saber e do próprio ser.A partir de Sócrates a questão maior da filosofia será a natureza do próprio homem enquanto ser que conhece. Se, à primeira vista, os atenienses produziram os modelos da filosofia ocidental, como a poesia, o drama, a astronomia, a matemática, a política etc, o fizeram graças à superação da contradição entre o exercício da democracia dentro de uma estrutura social escravocrata, uma vez que se intitulavam como cidadãos apenas os senhores de escravos ou no máximo os homens livres. À “grande questão” sobre a natureza da realidade, como a questão que explicaria todas as demais, seria substituída pela questão sobre a natureza do próprio homem. O homem passa a ser a medida de todas as coisas, como preceituava Pitágoras.Após Platão, discípulo de Sócrates, e a sua alegoria da caverna, a filosofia permanecerá idealista por mais de dois mil anos, até o advento do empirismo de Hume e Locke. Prevalece a idéia de dois mundos, mito babilônico, egípcio e judaico-cristão: o mundo imperfeito dos homens e o mundo perfeito das idéias. Apenas com Aristóteles, se retomará a idéia do realismo filosófico da integridade da natureza e do homem. E até o advento da filosofia cristã a partir de Constantino (séculos III e IV d.C.) sucedem-se escolas hedonistas e epicuristas, voltadas para a busca da fruição da vida e do prazer, os racionalistas estoicistas que lhes opõem a razão contra os sentidos, até os céticos e cínicos relativistas cujo método de conhecimento era não acreditar em nada para se verem livres de todas as preocupações.Com Santo Agostinho, à fé viria se unir a razão, que é da natureza do homem pela própria vontade de Deus. E estava justificado o livre arbítrio. Sucedem-se as questões medievais a cerca da natureza de Deus como o primeiro motor, a causa de todas as causas, até que no século XIII São Tomás de Aquino identifica Deus como a própria natureza. A busca pelo conhecimento humano não pode ser tomada como uma tentação herética de se igualar a Deus, uma vez que mesmo as leis humanas estão sempre submissas às leis de Deus. Está justificado o direito divino dos reis, até o advento do renascimento humanista de Lutero.A Reforma do século XV abre caminho para a retomada das teorias políticas clássicas, com Maquiavel (século XVI) e Hobbes (século XVII) e seu conceito de contrato social, onde a instância governamental é o terceiro excluído do contrato para lhe garantir a arbitragem de eventuais conflitos, ao mesmo tempo que é incluído para considerar os efeitos exteriores ao próprio contrato. Moralidade é o mesmo que uma cínica obediência às leis de homens essencialmente vis. É também nos fins do século XVII que surge a dúvida metódica de Descartes, reinaugurando o estoicismo e ceticismo modernos através da teoria do conhecimento dedutivo-idealista. Quando John Locke, iluminista inglês, irá se opor às idéias inatas desta tradição retomando o empiricismo indutivo pré-socrático. É o apogeu do iluminismo humanista dos enciclopedistas franceses como Voltaire e Diderot na passagem do século XVII para XVIII que possibilita o iluminismo escocês de David Hume e seu empirismo ceticista. O princípio do contrato social hobbesiano de caráter cético e realista é questionado pelo romantismo idealista-coletivista de Jean-Jacques Rousseau com a defesa da natureza inocente do homem em estado de vida natural e do princípio da vontade geral.Enquanto isso, Kant se contrapõe a Hume demonstrando que o conhecimento não pode ser fruto apenas da experiência, mas existe a priori a ela sob a forma de intuição; ou seja, retoma a idéia de duas dimensões do mundo, a sua essência (nomos) e sua aparência (fenômeno). A idéia kantiana do imperativo categórico (só posso fazer aquilo que todos podem fazer) é a retomada da idéia de Locke de liberdade dentro da lei, para que a liberdade de todos possa ser de fato garantida; ao mesmo tempo em que antecipa a idéia do “no harm to others” de Stuart Mill. Já na passagem para o século XIX, Hegel retoma a idéia da realidade enquanto processo histórico dialético, onde sínteses são realizadas a partir de teses e antíteses. Embora se oponha a esta possibilidade, Schopenhauer deixará herdeiros de uma severa crítica à tradição racionalista ocidental, como o próprio Nietzsche. Se Marx é produto do idealismo alemão de Hegel, da economia política inglesa de Adam Smith e do socialismo utópico francês, Nietzsche é fruto da crítica do determinismo histórico de Fichte e Schopenhauer. Sucedem-se as críticas da história como produto da consciência em Hegel (ao contrário da consciência como resultante da história de Marx), da divisão do trabalho e da teoria da mais-valia de David Ricardo e Adam Smith e da utopia socialista de Feuerbach. As idéias-força de Marx ofuscam no mesmo momento histórico as idéias utilitaristas de John Stuart Mill, que afirma que a maior missão de um governo é a garantia da maior felicidade para a maioria dos cidadãos. Esta cultura de liberdade é que fundará a organização social norte-americana desde a independência até o transcurso do século XIX, com Thomas Jefferson, Thoreau e Tocqueville.Mas a partir do aprofundamento da crítica da razão nietzscheana, chegamos enfim à pós-modernidade com a filosofia se estilhaçando entre existencialismos, fenomenologias, filosofias da história pós-marxistas, filosofias da linguagem, estruturalismos, filosofia analítica, psicanálise, inúmeras teorias para as filosofias da ciência, da arte e da cultura. Ao mesmo tempo em que a convergência tecnológica parece tramar um retorno do ideal de cidadania de um homem livre, autônomo e senhor de seu destino.