30 dezembro 2008

Taking Liberties


Taking Liberties - The Struggle for Britain’s Freedoms and Rights, de Mike Ashley, British Libray, 2008

Publicado em associação com a maior exposição sobre o tema já realizada na Inglaterra pela British Library, aberta desde outubro de 2008 até março de 2009. Vale a pena ir a Londres ver a exposição. Mas quem quiser pode acompanhá-la pela internet, encomendar o livro, ou acessar um documentário com o mesmo título, pois, mais do que a história das liberdades, os eventos querem resgatar o debate sobre este conceito fundamental para a existência da cidadania.

Por séculos o povo britânico lutou pela noção de liberdade, ao contrário do que parece a qualquer cidadão do mundo que pode não dar o devido valor a um bem que usufrui apenas por tradição ou garantia legal. Pois o livro de Mike Ashley expõe e aprofunda de maneira didática todas as etapas da grande exposição sobre a conquista das liberdades civis do povo britânico. Com a cobertura de batalhas, revoluções, ganhadores e perdedores do que foi considerado por Kant como o maior entre todos os valores universais da humanidade: a liberdade.

Trata-se da montagem de um rico painel sobre sua conquista durante 900 anos, desde os antecedentes da celebração da Carta Magna em 1215, passando pela execução de um monarca (Charles I em 1649), até a contribuição individual de cidadãos determinados. E que começa em Runnymede, a meio caminho entre o castelo de Windsor e as propriedades dos barões, com a consagração dos princípios e garantias das liberdades civis e políticas: nem o rei pode se colocar acima das leis, ou todos são iguais perante as leis, ou nenhum homem deve ser obrigado a se ajoelhar diante de outro homem, a não ser de Deus e das próprias leis (o império da lei).

A própria concepção de lei, como garantia de direitos, se origina como limite do poder do rei, como as noções expressas pelos direitos civis básicos de existência autônoma, soberania, justiça e consentimento no uso da força. Somente com a consciência e conquista dos direitos civis é que tem sentido os direitos sociais a serem garantidos pelo Estado, que não pode, no entanto, garantir estes últimos às custas dos primeiros.

O princípio da submissão do Estado aos ditames da lei se origina na submissão do próprio rei ao império da lei (the rules of Law) do Bill of rights, de 1689. Ou seja, desde os primórdios da organização social e política inglesa está claro que a liberdade não se trata apenas de um direito de cidadãos entre cidadãos (liberdades civis) garantidas pelo Estado, mas sobretudo a liberdade econômica e política dos cidadãos governados em face de seus próprios governantes (liberdades políticas).

Basta consultar – pois lamentavelmente o texto do livro passa como se este detalhe não fosse fundamental para o entendimento das diferentes concepções de liberdade entre as culturas inglesa e latina - a etimologia do termo inglês cunhado exatamente nos idos do século X e XI em que estava sendo constituída a nação inglesa: freedom que se opõe a kingdom, onde dom é domain, dominus, domínio, território onde se discute quem exerce ou não, e até que limite, o poder de coletar impostos. Esta riqueza vocabular da língua inglesa, por si mesma, já demonstra a maior riqueza de investimento reflexivo sobre os valores e conceitos relativos à constituição do Estado, diante, por exemplo, da tradição iconográfica renascentista, cuja riqueza, ao contrário, é superior à saxã, o que explica os diferentes graus de liberdade de pensamento concedidos por uma ordem cultural católica e outra protestante.

Aliás, o direito de protesto é um dos seis da própria Convenção européia sobre direitos humanos, de 1950, liderada por Churchill. Uma ordem protestante anglicana que presumia a leitura da Bíblia e sua livre interpretação pelos fiéis, ao contrário da hegemônica igreja católica que reservava este saber e poder aos clérigos, enquanto ilustrava e cativava o imaginário popular iletrado com a riqueza da iconografia renascentista.

É bom que se saiba que a tradução da Bíblia para o inglês, de 1380, antecede à de Lutero, no final do século XV e mesmo a criação da Igreja Anglicana, de 1534. À tradição de liberdade de culto, se somam as tradições de liberdade de expressão e de protesto, como na rica herança das liberdades de imprensa dos pampheteers do iluminismo inglês da Fleet Street (que até hoje é a sede das redações da imprensa inglesa). E, assim como, não se enfatiza as diferentes concepções de liberdade e freedom, não se credita a esta rica tradição inglesa e liberal a propaganda socialista e panfletária do século XIX pelos direitos sociais.

Quando, mesmo a partir dos seis direitos civis fundamentais da Convenção de 1950, ou dos 15 da Declaração Universal da ONU de 1948, confirmados pela Inglaterra pelo Human Rights Act de 1998, não constavam direitos socialistas e demagógicos como garantia de saúde e previdências sociais universais, educação terciária, trabalho, meio-ambiente, habitação etc. Tais eram apenas: o direito de protesto, de expressão, da privacidade, de não ser preso sem acusação formada, de ser considerado inocente até prova em contrário e o banimento da tortura. E evoluíram para 15 outros: o direito à vida, às liberdades (no sentido de ato, conduta e locomoção), a julgamento em tribunais justos, de não ser punido por crime não previsto em lei, à privacidade e vida familiar, à crença e consciência, à expressão, à associação, à união civil, à não ser descriminado, à propriedade privada, à educação básica, de participação em eleições, de não ser submetido a tortura ou tratamento degradante e a trabalho forçado ou escravidão.

É de se notar que não se alude entre os direitos humanos a demagogia dos políticos sobre direitos sociais como saúde universal e pública, educação secundária e terciária, bolsas de assistência social, garantia de emprego e trabalho, meio-ambiente, seguridade social etc. Quando, no campo civil e político ainda temos um longo caminho a percorrer na conquista de direitos ameaçados por tiranias, demagogias, autocracias e burocracias estatais pelo mundo afora, e sob o pretexto da onda terrorista planetária, fundamentalismos religiosos retrógrados e histeria de segurança do mundo contemporâneo, como direitos de soberania sobre nosso próprio corpo (aborto, células, órgãos), sobre nossa vida (eutanásia) e nossos próprios dados pessoais (controle sobre uso de arquivos de segurança) e herança genética (DNA database), assim como defesa da privacidade (cctv).

A crise de representação política – produto da passagem de um modelo de democracia representativa restrita, como a liberal inglesa ou social-democrata dos demais países desenvolvidos, para as democracias de massa dos países emergentes – se dá na medida mesma em que não se priorizam os direitos políticos e civis como pré-condição para a universalização dos direitos sociais.

Se os representantes políticos justificam a baixa qualidade de sua representação como espelho do nível educacional dos próprios cidadãos que os elegeram estão a incorrer numa falácia que urge ser denunciada à opinião pública, pois o princípio fundamental da ética pública é a de que seja exemplar em relação à ética da vida privada. E em nome de qualquer direito social que seja, por mais nobre que seja, não pode nenhum governante suprimir o mínimo que seja dos direitos civis e políticos, pois em nome de uma igualdade social utópica e comprometedora da igualdade perante a lei, não se pode sacrificar a liberdade, essência da cidadania e da justiça, sem incorrermos no risco de não garantir nem uma nem outra. Mesmo o Welfare State, preconizado por William Beveridge em 1942, e que propunha um duro combate às cinco grandes ameaças ao direito à vida, à liberdade e à justiça do cidadão comum inglês (fome, doença, ignorância, saneamento e desemprego), em pleno esforço de guerra do governo Churchill, não estabelecia seus programas às custas do déficit das contas públicas, mas às custas de contribuições negociadas entre os próprios sindicatos, e como meio de garantia de um nível básico de subsistência, sem ingerência na liberdade de gestão da renda do cidadão, essência de sua autonomia.

Você pode obter mais dados sobre a obra de Mike Ashley, a própria exposição e todos os seus conteúdos em: http://www.bl.uk/takingliberties