Intérpretes do Brasil – Ensaios de cultura e identidade
Günter Axt e Fernando Schüller, organizadores
Artes e Ofícios Editora, Porto Alegre, 2004
São 14 dos maiores intérpretes da cultura e identidades brasileiras, resenhados por notórios especialistas. No período colonial (final de século XVIII), para além de Tiradentes e o grupo de inconfidentes, são destacados os intelectuais do movimento como o poeta Cláudio Manuel da Costa, o poeta e ouvidor de Vila Rica Tomás Antônio Gonzaga, o cônego Luis Vieira da Silva e o clérigo Carlos Correia de Toledo, possuidores de uma das maiores bibliotecas da colônia, onde se lia vários dos enciclopedistas como Descartes, Montesquieu, Voltaire e Condorcet, além de Rousseau. Portanto, embora a maioria fosse de proprietários de terras e escravagistas, concebiam uma república parlamentarista com a criação de uma universidade em Vila Rica, que seria a capital de uma Nova América (do Sul). Já no período do Reino Unido de Portugal, Brazil e Açores (1808 – 1822), o grande intérprete escolhido é Hipólito José da Costa (1774 – 1823), discípulo do liberalismo inglês e suas conquistas políticas dos direitos civis de expressão, livre iniciativa, opinião e propriedade. Editor do primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense (1808 – 1822), cria pela primeira vez a própria representação de um país diferente do Reino de Portugal, prevendo por assim dizer a própria independência de 1822. A partir da independência, todavia, nos surpreendemos num ato falho relativo à nossa própria denominação de origem, quando o termo brasileiro, que, na língua portuguesa, não se trata do sufixo gentílico relativo à pátria de procedência, como braziliense, senão do sufixo designativo de ofício (de explorador), como mineiro, vaqueiro, pedreiro etc, veio a superar este último como nosso principal gentílico e, portanto, referente aos portugueses que exploravam o pau brasil e não propriamente aos nativos da nova nação chamada Brasil. O terceiro grande intérprete é Joaquim Nabuco (1849 – 1910), monarquista parlamentarista e responsável pelo movimento abolicionista, foi autor e parlamentar de grande destaque na transição do império para a república. A Sociedade Brasileira contra a Escravidão, que fundou em 1880, dirigia seu esforço argumentativo sobretudo aos cidadãos seus iguais, e não aos próprios escravos, que poderiam ser dizimados se incitados à rebeldia. Foi o primeiro grande estadista a empreender uma reforma social que se iniciasse pelas elites para lhes convencer das superioridades da doutrina liberal, pois esta, sim, seria a verdadeira emancipação social, econômica e política nacional. De certa forma, seu livro Minha formação, em que relata sua biografia iniciada no engenho da família e a convivência com os escravos africanos, prenuncia Casa Grande & senzala de Gilberto Freyre.
Outro pernambucano que nos legou uma grande obra de interpretação de nossa identidade cultural foi Oliveira Lima (1867 – 1928), jornalista, escritor e diplomata que, em grande parte sob a gestão do Barão de Rio Branco na chancelaria brasileira, criticou exaustivamente a permanência do domínio das oligarquias imperiais sobre a república brasileira. Foi autor de grandes obras sobre nossa história imperial e do clássico Pan-Americanismo em que fazia reservas sobre a doutrina Monroe de defesa da influência norte-americana sobre os países do continente sul-americano.
O quinto intérprete é o grande Euclydes da Cunha (1866 – 1909), autor do célebre Os Sertões, de 1902, obra em que apresenta a realidade social do interior do país, em grande parte desconhecida pela consciência intelectual brasileira, republicana, racialista e positivista. Engenheiro e jornalista, ao ser enviado pelo O Estado de São Paulo para relatar a guerra de Canudos no sertão da Bahia em 1897, apresenta o sertanejo como homem antes de tudo forte no contexto de um meio-ambiente natural e político-social gravemente hostil, quando esta era uma surpreendente novidade para uma intelectualidade que à época justificava o atraso cultural do país pelos maus costumes coloniais da mestiçagem, segundo um dos autores da então em voga teoria da eugenia das raças, o Conde de Gobineau que visitou o Rio de Janeiro em 1896. Ruy Barbosa, por exemplo, taxou os seguidores do místico Antônio Conselheiro como idiotas, quando Canudos já contava com 25 mil habitantes, era a segunda maior cidade da Bahia, depois de Salvador, não faltava empregos, havia escola, e rígidos costumes morais.
O sexto intérprete é Monteiro Lobato (1882 – 1948), escritor, político, diplomata, empresário, reformador social e editor dos mais afirmativos da genuína identidade cultural brasileira. Quando em 1917 publica um conto sobre o caipira brasileiro, o personagem que nomeia de Jeca Tatu, dando margem à publicação no ano seguinte de sua mais polêmica obra, Urupês, reunindo quatorze outros contos sobre costumes e casos de caipiras do interior do Brasil, Monteiro Lobato inaugura um consistente debate sobre a nossa identidade e as causas de nosso atraso cultural, uma vez que ainda estávamos cativos das idealizações do romantismo indigenista nacional, a meio caminho de um Peri de José de Alencar e o futuro herói sem nenhum caráter Macunaíma, de Mario de Andrade. Ou o país era inviável para a construção de uma verdadeira democracia representativa, pela má qualidade da formação cultural e política de seu povo, ou o seu abandono na verdade nada mais era do que a intencional omissão e irresponsabilidade política das próprias elites, beneficiárias em última instância do statu quo vigente. A partir da denúncia e da polêmica, Monteiro Lobato começa a erigir uma das maiores obras de literatura infantil totalmente positiva e presa às tradições folclóricas nacionais. Como forma de responsabilização política pelo descaso dos governos, meio de difusão de nossos valores autóctones, propaganda social de nossas tradições e educação de massa das gerações vindouras: “Escrevo para as crianças porque depois de amanhã elas construirão o Brasil com que sonhamos”. O sétimo intérprete é Oliveira Viana (1883 – 1951), na sua máxima obra Populações meridionais, de 1920, o jurista, historiador, sociólogo e professor se propõe a estudar os três tipos sociais brasileiros: o matuto agricultor dos platôs e montanhas de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, o gaúcho pastor dos pampas e o sertanejo pastor das caatingas do nordeste. A que anos mais tarde outro grande intérprete nacional, o antropólogo Darci Ribeiro, acrescentaria o caboclo da Amazônia e o crioulo dos litorais do sudeste e nordeste. Sua contribuição se dá pela superação definitiva da determinante racial como causa de nosso atraso, substituindo-a pela determinante político-fundiária: o latifúndio era nosso maior obstáculo de desenvolvimento e a solidariedade parental no interior dos engenhos e fazendas inibia a formação de consciência política liberal e independente de self-government. Desde o constituição do Vice-reino e do império, o poder central se curva aos ditames dos barões e coronéis herdeiros das sesmarias coloniais. Retoma o vaticínio de Frei Vicente desde inícios do século XVII: “nenhum homem nesta terra é republico”.
Outro grande pernambucano Gilberto Freyre (1900 – 1987) é o nosso oitavo intérprete quando em 1933 publica Casa Grande & senzala, obra-prima de nossa identidade cultural onde examina as relações de convivência e influência que sobredeterminaram as relações de dominação dos senhores de engenho sobre os negros africanos – note-se o símbolo associativo & provocativamente colocado pelo autor. Desde o pessimismo de Paulo Prado sobre o futuro do país, na obra Retrato do Brasil, de 1928, ou o Manifesto antropofágico, de Oswald de Andrade, do mesmo ano, metáfora e glosa ao desentendimento europeu sobre o sentido dos costumes antropofágicos dos “povos primitivos” que, para além do aniquilamento do inimigo, o homenageava pela absorção e incorporação de suas virtudes e qualidades, não nos era oferecida uma crítica antropológica tão refinada na sua arguta percepção de nosso sincretismo cultural e superação de nosso puritanismo hipócrita. Trata-se da definitiva superação da antinomia entre raça e cultura que Gilberto Freyre teve a chance de absorver nas escolas de antropologia cultural inglesas e americanas quando se formou na Universidade de Columbia na década de 20. Obra de rara genialidade, como veio a se referir sobre ela Darci Ribeiro, não escapou de ser desqualificada por nacionalistas e esquerdistas extremados que a viam como mistificadora das relações de dominação escravocratas. Na quadra de afirmação xenófoba nacional com a radicalização doutrinária entre comunistas, integralistas e trabalhistas, Getúlio Vargas ditando os destinos do país com a implantação do Estado Novo em 1937, proibição de ensino de línguas estrangeiras nas escolas públicas, introdução das disciplinas de Moral e Cívica, criação do DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda, da censura e exaltação dos símbolos nacionais, do populismo desenfreado e das virtudes do trabalho, é de se surpreender mesmo que Gilberto Freyre tenha sobrevivido e sua obra resgatada como um grande marco de nosso autoconhecimento. O nono grande intérprete é Sérgio Buarque de Holanda (1902 – 1982), cuja obra-prima “Raízes do Brasil”, de 1936, vem a investigar de forma definitiva os diferentes tipos de colonização espanhola e portuguesa nos países da América do Sul, Central e Caribe. Onde, no caso brasileiro, a consciência de auto-determinação e cidadania é substituída pela cordialidade das relações paternalistas entre classes sociais tão distantes entre si como donos de engenho e escravaria, mascarando preconceitos de raça e recalcando impulsos de revolta.
O décimo intérprete, Antônio Cândido (1918), professor emérito da USP e grande crítico literário brasileiro, autor de Formação da Literatura Brasileira, de 1957, faz parte do grupo de intérpretes que escreveu obras sobre as várias formações históricas brasileiras, como Celso Furtado, com Formação econômica do Brasil, de 1958, Caio Prado Junior com Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942, Nelson Werneck Sodré, com Formação da Sociedade brasileira, de 1944, e ainda Raymundo Faoro, com Os donos do Poder – formação do patronato político brasileiro, de 1958.
O décimo primeiro intérprete, Raymundo Faoro (1925 - 2003), introduzindo o pensamento do filósofo político alemão Max Weber no Brasil, investiga o tipo de dominação política estabelecida na relação Estado-cidadão no Brasil, onde se prefere a relação carismática à racional-legal ou tradicional, onde a primeira o dominador é escolhido pelas suas pretensas qualidades superiores e pelo carisma que irradia, o segundo tipo de dominação é sempre discutido e em seguida consentido, e o terceiro porque faz parte da tradição e não se questiona. Mesmo tendo sido criticado como liberal, Faoro insiste em priorizar a busca pela liberdade política acima da busca pela igualdade econômica. O décimo segundo intérprete é Nelson Werneck Sodré (1911 – 1999), um dos fundadores do ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros, juntamente com Helio Jaguaribe, Roland Corbisier, Cândido Mendes, Celso Furtado, Roberto Campos, Anísio Teixeira, entre outros, um verdadeiro think tank do nacionalismo brasileiro, eclético doutrinariamente mas focado na defesa da soberania nacional brasileira e de seu papel de liderança no continente, a partir dos anos 50. Além de escritor, militar e historiador, Nelson Weneck lutou por reformas dos sistemas político e econômico brasileiros, cujo protagonismo achava que deveria ser exercido pelas classes operárias, comunista que sempre foi, cassado pelo golpe militar de 64, enquanto que para outros isebianos, como Helio Jaguaribe e Roberto Campos, de estirpe socialdemocrata ou liberal respectivamente, achavam que deveria ser protagonizado pela classe industrial. O décimo terceiro intérprete é Caio Prado Junior (1907 – 1990), que através de sua obra Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942, também de orientação comunista, denuncia a dependência econômica, política e cultural da colônia brasileira em face de sua metrópole portuguesa.
O décimo quarto e último intérprete da coletânea é Roberto Campos (1917 – 2001), embaixador de carreira, escritor, professor, político e estadista diferenciado do contexto dominante de esquerda de toda uma geração de intelectuais brasileiros do século XX, pois foi um dos poucos que assumiu uma posição doutrinária francamente liberal, tendo sido fiel seguidor da Escola Austríaca de economia, de Von Mises e Friedrich Hayek, até então quase desconhecida nos meios acadêmicos brasileiros. Escola que se notabilizou pela oposição franca à tendência de intervencionismo estatal na ordem econômica a partir da solução de Lord Keynes para a derrocada de 1929 e da guerra fria a partir dos anos 40/50. A teoria da completa proteção do cidadão pelo advento do Welfare State onipresente (“From womb to tomb”) passa a ser questionada como paternalismo disfarçado, demagogia, aceleração inflacionária, restrição à iniciativa, burocratismo exacerbado e inibição do exercício da verdadeira função da cidadania que é o exercício do controle social sobre os governantes. Foi extremamente crítico em relação à Constituição de 1988, denunciando como demagogia o que deveria ser a consolidação das instituições do Estado democrático de direito e o fortalecimento da cidadania, denunciando-a como um perigoso expediente de ingovernabilidade do país, na medida em que oferece intitulamentos sem as correspondentes provisões e o termo direitos é citado 76 vezes contra apenas 4 vezes é citado o termo deveres. Ficou emblemática, todavia, no final de sua vida, já em cadeiras de rodas, a sua decisão de comparecer à sessão de votação do impeachment de Collor, demonstrando com seu exemplo que a cidadania está acima de quaisquer interesses.
Cidadania, aliás, cuja consciência não é separada da atuação política, como demonstram todos estes grandes intérpretes da identidade cultural brasileira desta belíssima coletânea.
Vale à pena ler! http://www.arteseoficios.com.br/obras_det.php?id=156
Günter Axt e Fernando Schüller, organizadores
Artes e Ofícios Editora, Porto Alegre, 2004
São 14 dos maiores intérpretes da cultura e identidades brasileiras, resenhados por notórios especialistas. No período colonial (final de século XVIII), para além de Tiradentes e o grupo de inconfidentes, são destacados os intelectuais do movimento como o poeta Cláudio Manuel da Costa, o poeta e ouvidor de Vila Rica Tomás Antônio Gonzaga, o cônego Luis Vieira da Silva e o clérigo Carlos Correia de Toledo, possuidores de uma das maiores bibliotecas da colônia, onde se lia vários dos enciclopedistas como Descartes, Montesquieu, Voltaire e Condorcet, além de Rousseau. Portanto, embora a maioria fosse de proprietários de terras e escravagistas, concebiam uma república parlamentarista com a criação de uma universidade em Vila Rica, que seria a capital de uma Nova América (do Sul). Já no período do Reino Unido de Portugal, Brazil e Açores (1808 – 1822), o grande intérprete escolhido é Hipólito José da Costa (1774 – 1823), discípulo do liberalismo inglês e suas conquistas políticas dos direitos civis de expressão, livre iniciativa, opinião e propriedade. Editor do primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense (1808 – 1822), cria pela primeira vez a própria representação de um país diferente do Reino de Portugal, prevendo por assim dizer a própria independência de 1822. A partir da independência, todavia, nos surpreendemos num ato falho relativo à nossa própria denominação de origem, quando o termo brasileiro, que, na língua portuguesa, não se trata do sufixo gentílico relativo à pátria de procedência, como braziliense, senão do sufixo designativo de ofício (de explorador), como mineiro, vaqueiro, pedreiro etc, veio a superar este último como nosso principal gentílico e, portanto, referente aos portugueses que exploravam o pau brasil e não propriamente aos nativos da nova nação chamada Brasil. O terceiro grande intérprete é Joaquim Nabuco (1849 – 1910), monarquista parlamentarista e responsável pelo movimento abolicionista, foi autor e parlamentar de grande destaque na transição do império para a república. A Sociedade Brasileira contra a Escravidão, que fundou em 1880, dirigia seu esforço argumentativo sobretudo aos cidadãos seus iguais, e não aos próprios escravos, que poderiam ser dizimados se incitados à rebeldia. Foi o primeiro grande estadista a empreender uma reforma social que se iniciasse pelas elites para lhes convencer das superioridades da doutrina liberal, pois esta, sim, seria a verdadeira emancipação social, econômica e política nacional. De certa forma, seu livro Minha formação, em que relata sua biografia iniciada no engenho da família e a convivência com os escravos africanos, prenuncia Casa Grande & senzala de Gilberto Freyre.
Outro pernambucano que nos legou uma grande obra de interpretação de nossa identidade cultural foi Oliveira Lima (1867 – 1928), jornalista, escritor e diplomata que, em grande parte sob a gestão do Barão de Rio Branco na chancelaria brasileira, criticou exaustivamente a permanência do domínio das oligarquias imperiais sobre a república brasileira. Foi autor de grandes obras sobre nossa história imperial e do clássico Pan-Americanismo em que fazia reservas sobre a doutrina Monroe de defesa da influência norte-americana sobre os países do continente sul-americano.
O quinto intérprete é o grande Euclydes da Cunha (1866 – 1909), autor do célebre Os Sertões, de 1902, obra em que apresenta a realidade social do interior do país, em grande parte desconhecida pela consciência intelectual brasileira, republicana, racialista e positivista. Engenheiro e jornalista, ao ser enviado pelo O Estado de São Paulo para relatar a guerra de Canudos no sertão da Bahia em 1897, apresenta o sertanejo como homem antes de tudo forte no contexto de um meio-ambiente natural e político-social gravemente hostil, quando esta era uma surpreendente novidade para uma intelectualidade que à época justificava o atraso cultural do país pelos maus costumes coloniais da mestiçagem, segundo um dos autores da então em voga teoria da eugenia das raças, o Conde de Gobineau que visitou o Rio de Janeiro em 1896. Ruy Barbosa, por exemplo, taxou os seguidores do místico Antônio Conselheiro como idiotas, quando Canudos já contava com 25 mil habitantes, era a segunda maior cidade da Bahia, depois de Salvador, não faltava empregos, havia escola, e rígidos costumes morais.
O sexto intérprete é Monteiro Lobato (1882 – 1948), escritor, político, diplomata, empresário, reformador social e editor dos mais afirmativos da genuína identidade cultural brasileira. Quando em 1917 publica um conto sobre o caipira brasileiro, o personagem que nomeia de Jeca Tatu, dando margem à publicação no ano seguinte de sua mais polêmica obra, Urupês, reunindo quatorze outros contos sobre costumes e casos de caipiras do interior do Brasil, Monteiro Lobato inaugura um consistente debate sobre a nossa identidade e as causas de nosso atraso cultural, uma vez que ainda estávamos cativos das idealizações do romantismo indigenista nacional, a meio caminho de um Peri de José de Alencar e o futuro herói sem nenhum caráter Macunaíma, de Mario de Andrade. Ou o país era inviável para a construção de uma verdadeira democracia representativa, pela má qualidade da formação cultural e política de seu povo, ou o seu abandono na verdade nada mais era do que a intencional omissão e irresponsabilidade política das próprias elites, beneficiárias em última instância do statu quo vigente. A partir da denúncia e da polêmica, Monteiro Lobato começa a erigir uma das maiores obras de literatura infantil totalmente positiva e presa às tradições folclóricas nacionais. Como forma de responsabilização política pelo descaso dos governos, meio de difusão de nossos valores autóctones, propaganda social de nossas tradições e educação de massa das gerações vindouras: “Escrevo para as crianças porque depois de amanhã elas construirão o Brasil com que sonhamos”. O sétimo intérprete é Oliveira Viana (1883 – 1951), na sua máxima obra Populações meridionais, de 1920, o jurista, historiador, sociólogo e professor se propõe a estudar os três tipos sociais brasileiros: o matuto agricultor dos platôs e montanhas de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, o gaúcho pastor dos pampas e o sertanejo pastor das caatingas do nordeste. A que anos mais tarde outro grande intérprete nacional, o antropólogo Darci Ribeiro, acrescentaria o caboclo da Amazônia e o crioulo dos litorais do sudeste e nordeste. Sua contribuição se dá pela superação definitiva da determinante racial como causa de nosso atraso, substituindo-a pela determinante político-fundiária: o latifúndio era nosso maior obstáculo de desenvolvimento e a solidariedade parental no interior dos engenhos e fazendas inibia a formação de consciência política liberal e independente de self-government. Desde o constituição do Vice-reino e do império, o poder central se curva aos ditames dos barões e coronéis herdeiros das sesmarias coloniais. Retoma o vaticínio de Frei Vicente desde inícios do século XVII: “nenhum homem nesta terra é republico”.
Outro grande pernambucano Gilberto Freyre (1900 – 1987) é o nosso oitavo intérprete quando em 1933 publica Casa Grande & senzala, obra-prima de nossa identidade cultural onde examina as relações de convivência e influência que sobredeterminaram as relações de dominação dos senhores de engenho sobre os negros africanos – note-se o símbolo associativo & provocativamente colocado pelo autor. Desde o pessimismo de Paulo Prado sobre o futuro do país, na obra Retrato do Brasil, de 1928, ou o Manifesto antropofágico, de Oswald de Andrade, do mesmo ano, metáfora e glosa ao desentendimento europeu sobre o sentido dos costumes antropofágicos dos “povos primitivos” que, para além do aniquilamento do inimigo, o homenageava pela absorção e incorporação de suas virtudes e qualidades, não nos era oferecida uma crítica antropológica tão refinada na sua arguta percepção de nosso sincretismo cultural e superação de nosso puritanismo hipócrita. Trata-se da definitiva superação da antinomia entre raça e cultura que Gilberto Freyre teve a chance de absorver nas escolas de antropologia cultural inglesas e americanas quando se formou na Universidade de Columbia na década de 20. Obra de rara genialidade, como veio a se referir sobre ela Darci Ribeiro, não escapou de ser desqualificada por nacionalistas e esquerdistas extremados que a viam como mistificadora das relações de dominação escravocratas. Na quadra de afirmação xenófoba nacional com a radicalização doutrinária entre comunistas, integralistas e trabalhistas, Getúlio Vargas ditando os destinos do país com a implantação do Estado Novo em 1937, proibição de ensino de línguas estrangeiras nas escolas públicas, introdução das disciplinas de Moral e Cívica, criação do DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda, da censura e exaltação dos símbolos nacionais, do populismo desenfreado e das virtudes do trabalho, é de se surpreender mesmo que Gilberto Freyre tenha sobrevivido e sua obra resgatada como um grande marco de nosso autoconhecimento. O nono grande intérprete é Sérgio Buarque de Holanda (1902 – 1982), cuja obra-prima “Raízes do Brasil”, de 1936, vem a investigar de forma definitiva os diferentes tipos de colonização espanhola e portuguesa nos países da América do Sul, Central e Caribe. Onde, no caso brasileiro, a consciência de auto-determinação e cidadania é substituída pela cordialidade das relações paternalistas entre classes sociais tão distantes entre si como donos de engenho e escravaria, mascarando preconceitos de raça e recalcando impulsos de revolta.
O décimo intérprete, Antônio Cândido (1918), professor emérito da USP e grande crítico literário brasileiro, autor de Formação da Literatura Brasileira, de 1957, faz parte do grupo de intérpretes que escreveu obras sobre as várias formações históricas brasileiras, como Celso Furtado, com Formação econômica do Brasil, de 1958, Caio Prado Junior com Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942, Nelson Werneck Sodré, com Formação da Sociedade brasileira, de 1944, e ainda Raymundo Faoro, com Os donos do Poder – formação do patronato político brasileiro, de 1958.
O décimo primeiro intérprete, Raymundo Faoro (1925 - 2003), introduzindo o pensamento do filósofo político alemão Max Weber no Brasil, investiga o tipo de dominação política estabelecida na relação Estado-cidadão no Brasil, onde se prefere a relação carismática à racional-legal ou tradicional, onde a primeira o dominador é escolhido pelas suas pretensas qualidades superiores e pelo carisma que irradia, o segundo tipo de dominação é sempre discutido e em seguida consentido, e o terceiro porque faz parte da tradição e não se questiona. Mesmo tendo sido criticado como liberal, Faoro insiste em priorizar a busca pela liberdade política acima da busca pela igualdade econômica. O décimo segundo intérprete é Nelson Werneck Sodré (1911 – 1999), um dos fundadores do ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros, juntamente com Helio Jaguaribe, Roland Corbisier, Cândido Mendes, Celso Furtado, Roberto Campos, Anísio Teixeira, entre outros, um verdadeiro think tank do nacionalismo brasileiro, eclético doutrinariamente mas focado na defesa da soberania nacional brasileira e de seu papel de liderança no continente, a partir dos anos 50. Além de escritor, militar e historiador, Nelson Weneck lutou por reformas dos sistemas político e econômico brasileiros, cujo protagonismo achava que deveria ser exercido pelas classes operárias, comunista que sempre foi, cassado pelo golpe militar de 64, enquanto que para outros isebianos, como Helio Jaguaribe e Roberto Campos, de estirpe socialdemocrata ou liberal respectivamente, achavam que deveria ser protagonizado pela classe industrial. O décimo terceiro intérprete é Caio Prado Junior (1907 – 1990), que através de sua obra Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942, também de orientação comunista, denuncia a dependência econômica, política e cultural da colônia brasileira em face de sua metrópole portuguesa.
O décimo quarto e último intérprete da coletânea é Roberto Campos (1917 – 2001), embaixador de carreira, escritor, professor, político e estadista diferenciado do contexto dominante de esquerda de toda uma geração de intelectuais brasileiros do século XX, pois foi um dos poucos que assumiu uma posição doutrinária francamente liberal, tendo sido fiel seguidor da Escola Austríaca de economia, de Von Mises e Friedrich Hayek, até então quase desconhecida nos meios acadêmicos brasileiros. Escola que se notabilizou pela oposição franca à tendência de intervencionismo estatal na ordem econômica a partir da solução de Lord Keynes para a derrocada de 1929 e da guerra fria a partir dos anos 40/50. A teoria da completa proteção do cidadão pelo advento do Welfare State onipresente (“From womb to tomb”) passa a ser questionada como paternalismo disfarçado, demagogia, aceleração inflacionária, restrição à iniciativa, burocratismo exacerbado e inibição do exercício da verdadeira função da cidadania que é o exercício do controle social sobre os governantes. Foi extremamente crítico em relação à Constituição de 1988, denunciando como demagogia o que deveria ser a consolidação das instituições do Estado democrático de direito e o fortalecimento da cidadania, denunciando-a como um perigoso expediente de ingovernabilidade do país, na medida em que oferece intitulamentos sem as correspondentes provisões e o termo direitos é citado 76 vezes contra apenas 4 vezes é citado o termo deveres. Ficou emblemática, todavia, no final de sua vida, já em cadeiras de rodas, a sua decisão de comparecer à sessão de votação do impeachment de Collor, demonstrando com seu exemplo que a cidadania está acima de quaisquer interesses.
Cidadania, aliás, cuja consciência não é separada da atuação política, como demonstram todos estes grandes intérpretes da identidade cultural brasileira desta belíssima coletânea.
Vale à pena ler! http://www.arteseoficios.com.br/obras_det.php?id=156