01 setembro 2012

Na contramão da Avenida Brasil

É perturbador como a mídia de massa percebe o país. De um lado, dramáticos conflitos estão para se suceder nesta nova fase do julgamento do mensalão no STF. Onde baixaram os espíritos de Carminha e Nina se digladiando por entre as togas. Por outro lado, se a Avenida Brasil baixou no Supremo, não há a mais remota hipótese de que qualquer instituição judiciária, sequer uma delegacia de política, ou um promotor público, sequer um juiz de vara criminal, quanto mais o Supremo, venham a visitar o roteiro da novela-fenômeno do Ibope. Na fase das defesas a cobertura do “julgamento da história” andou fraca. Muito juridiquês para poucos tipos penais. Quando na passarela da Avenida Brasil desfilavam quase todos os tipos do Código Penal, do abandono de menor ao atentado a vida, roubo, estelionato, cárcere privado e até estupro.


O drama criado pelo noveleiro-sensação do momento, numa sucessão vertiginosa de embates de vingança, ódio e paixão, reserva para a classe emergente do subúrbio o papel de uma sociedade tribal, detentora apenas do código de Hamurabi das mais priscas eras, onde ainda não havia a instituição da justiça propriamente dita, e sim a da retaliação. E qual o saldo que fica no imaginário do cidadão comum? Se conquistamos nos últimos anos um sistema judiciário, que, apesar de todas as mazelas, está funcionando, temos um imaginário social projetado sem a menor sombra da justiça institucional, relegado à justiça selvagem dos que a fazem com as próprias mãos. Pois se a trama é eletrizante é justamente porque só dá conta dos sentimentos primários da barbárie, da selvageria da vingança e do salve-se quem puder.

A pena de Talião nos eletriza e nos paralisa. Como quando vemos uma vítima estraçalhada por um atropelamento na rodovia e suspiramos aliviados de que escapamos enfim de mais uma trama do destino. A retaliação é o estágio que nos cabe da justiça, o que foi dado ao povo brasileiro cultivar no seu imaginário, a experiência cotidiana da insuficiência das instituições jurídicas, a eloquência de sua ausência! Estas que são a verdadeira função do estado, em prover e distribuir a justiça pros cidadãos em troca do imposto que recolhe. E como o estado falha, a audiência se entrega de corpo e alma aos relatos das grandes vinganças e traições, das retaliações do olho por olho, dente por dente, anterior ao Código Mosaico, que é marco fundador de todos os valores da tradição judaico-cristã. Este é exatamente o salto civilizatório que não conseguimos dar. E, neste sentido, é eloquente o silêncio do autor do folhetim com relação à ausência de qualquer instituição no enredo puro de paixões as mais extremadas. Mesmo ‘Tropa de Elite’, que estourou a audiência há algum tempo atrás, pelo menos havia a polícia onipresente no lugar da ação de promotores e juízes. Mas nessa avenida de agora, não passa sequer uma viatura da polícia! Sequer um guardinha transeunte no alvoroço do centro comercial do Divino.

Mas afirmo: está longe de o Brasil caber nesta avenida, que se limita a uma luta selvagem de classes de patrão com empregado, de vilões endiabrados contra mocinhos quase sempre babacas, crédulos e cornos-mansos como Tufão, Jorginho, Adauto, Monalisa, Tessália e Ivana. Uma perversa redução dos valores da sociedade brasileira a cenas inverossímeis e grotescas, reforçando uma cultura ultrapassada de tolerância para com a impunidade e imoralidade que tem sido repudiada nos últimos anos. Ou cinco milhões de brasileiros lutando pela lei de iniciativa popular da Ficha Limpa, ou 20 milhões de cidadãos votando em ética na última eleição, é delírio? Só se for aos olhos míopes do autor. No plano do real, mesmo que ardendo na fogueira das vaidades togadas pela inflamável cobertura midiática, mesmo exarada a sentença final do julgamento do mensalão, ela não será o clímax, senão a conclusão de uma etapa do processo de lenta afirmação das instituições sobre a tradição de arbítrio dos donos do poder, nossos oligarcas e demagogos de sempre. Pois o show só pode acontecer depois da prévia e diligente “produção” de instituições como a Polícia Federal, a Receita Federal, o Tribunal de Contas, o Ministério Público, todos funcionando como a condição de possibilidade de funcionamento do próprio STF! Mas segue a novela de nossa marcha inexorável para um novo patamar de civilização, a despeito da limitação cultural de nossos produtores de entretenimento, nossos arquitetos de almas, noveleiros de imaginários tão eloquentes de audiência quanto ausentes de valores e instituições de que tanto carecemos. E fica o alerta: o Brasil é bem maior do que a avenida de mesmo nome! Fica também a aposta que no Supremo estamos aprendendo a condenar Rita, Carminha, Max, Leleco, Muricy, Silas, Nilo e tantos outros que fazem pouco de nosso povo, que querem nos convencer de que somos assim mesmo, cidadãos de segunda classe, sem ética política, sem moral definida, sem responsabilidade ou respeito por leis e pelos direitos do próximo, com o fatal traço cultural da carne fraca, dos que não jogam pedra em telhado de vizinho, dos omissos e licenciosos de sempre. Quem viver, verá!