Quanto à série televisiva “Downton Abbey”, transmitida no Brasil pela GNT, que teve neste mês de julho a sua terceira temporada lançada em DVD, temos uma excelente oportunidade de refletir sobre a questão da moralidade pública na vida política nacional. A série conta a saga de uma família aristocrática inglesa desde o final do século XIX, passando pela Primeira Guerra Mundial, e seus esforços para defender seus valores num mundo abalado por conflitos. Mas, ao contrário do que poderia parecer a princípio, o forte da série não é a luta por sobrevivência de uma classe social enfraquecida contra outra em ascensão, como somos levados a interpretar precipitadamente pelo viés da luta de classes da propaganda socialista. O que conta em Downton Abbey são as relações intra-classes, e como os preconceitos, ambições e o mal intrínseco ao homem pela busca de poder podem ser vistos tanto nas classes abastadas como nos andares mais baixos da pirâmide social. E algumas vezes com tintas ainda mais pesadas. Ou seja, os vícios não são privativos da aristocracia, nem as virtudes são cativas das classes emergentes, sejam média ou proletária. Vícios e virtudes são humanos! Num mundo que estava mudando com rapidez, assim como o nosso hoje, é interessante perceber como a série vai focar os verdadeiros conflitos morais que fundam o próprio sentido da vida política.
Quanto ao documentário “Hannah Arendt”, ainda em cartaz nos cinemas, trata-se de outra excelente oportunidade de reflexão sobre o momento político nacional. Uma das mais importantes pensadoras do século XX, a filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt, foi testemunha ocular das várias atrocidades patrocinadas pelo regime nazista dos anos 30 e 40, o que influenciou todo o seu trabalho ao longo da vida. Sua obra mais importante, “As origens do totalitarismo”, é usada até hoje para o estudo das motivações e dos processos que levam à distorção do que ela acreditava ser o maior bem do indivíduo, sua liberdade de escolha e a aceitação das responsabilidades dela decorrentes. Aliás, valor fundamental de toda a tradição judaico-cristã, através do conceito de livre-arbítrio que nasce já no livro do Gênesis. Quando o totalitarismo político tem a mesma origem na tradição do esteticismo alemão e seu ápice conceitual da “obra de arte total” wagneriano, origem romântica da ascensão do novo deus Estado sobre nossas liberdades. Quando em 1961 teve início o julgamento de um dos carrascos nazistas, Adolf Eichmann, Hannah, na qualidade de repórter da revista The New Yorker, relatou como sinceras as suas declarações de inocência a cerca dos crimes que lhe imputavam. Para ele, estava apenas cumprindo ordens superiores, o que não lhe conferia culpa alguma. E os cinco artigos históricos escandalizaram a opinião pública com a afirmação de que nem todos que praticaram os crimes de guerra eram monstros; eles tinham vidas bastante comuns e não viam seus atos como um crime em si, apenas como parte de um processo maior. Arendt também denunciou o envolvimento de alguns judeus que ajudaram na matança dos seus iguais, o que veio a demonstrar o conceito de “banalidade do mal”, base do seu pensamento sobre sistemas totalitaristas, nos quais não existe o espaço para contestação, sufocado através de um ataque à pluralidade de ideias que nos torna cidadãos senhores de nosso próprio destino. Pois o Estado não pode nunca ser forte demais a ponto de não nos permitir fazer escolhas individuais e por elas responder civil e criminalmente, como adultos conscientes das consequências de nossas livres-escolhas. Para a filósofa, a recuperação da cidadania no mundo moderno depende do resgate da moralidade pública, sempre acima da questão legal.
Quanto à cobertura da visita do Papa Francisco ao Brasil, tomado como “O papa dos pobres” pelos shows de apelos da mídia de massa, mas de rasa capacidade de interpretação, vale a pena o comentário do professor e filósofo cristão Nivaldo Cordeiro. Como todos sabem, o atual pontífice é oriundo da ordem dos jesuítas, mas franciscano de coração. Por isso, assim que foi entronizado Papa, Francisco vem recusando sistematicamente diversos símbolos da ostentação papal. A cruz que está em seu peito é de metal, o trono talhado em ouro foi trocado por uma cadeira de madeira, os sapatos vermelhos de grife agora são calçados pretos comuns, e por aí vai.
Mas cabe aqui uma reflexão mais profunda sobre as preferências do Papa Francisco, na medida em que elas podem ser interpretadas erroneamente como um incentivo à chamada “opção preferencial pelos pobres”. Ou, simplesmente “pobrismo”, como observa o professor Nivaldo Cordeiro em recente vídeo divulgado pela internet. Ele comenta que é preciso cuidado ao se confundir o incentivo à busca por melhores condições de vida com um possível tratamento preferencial da Santa Igreja pelos mais pobres. E alerta: “a Igreja não é dos pobres. Ela é de todos. A Igreja foi feita para proteger a humanidade do mal. Ou seja, o princípio que norteia a Igreja é o amor ao próximo, e não a sua condição social”. Análise mais do que correta, sobretudo num país de conservadores como apurou uma pesquisa recente do Datafolha sobre a sociedade brasileira: ao contrário do que se diz por aí, 58% dos brasileiros acreditam que a motivação dos crimes tem origem na maldade das pessoas, e apenas 39% dos entrevistados acreditam que os atos são originados na desigualdade social. É óbvio. Na pobreza ou na riqueza, sempre existe a possibilidade de se escolher ou recusar uma vida de crimes. É uma questão de cidadãos adultos e responsáveis por sua livre conduta.
Um bom momento para refletirmos sobre os valores da cidadania que estão bem acima de qualquer condição social ou mesmo luta de classes.
Veja o comentário na íntegra: http://www.avozdocidadao.com.br/detailAgendaCidadania.asp?ID=4251
* Jorge Maranhão é diretor do Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão. Email jorge@avozdocidadao.com.br