01 agosto 2013

Balanço do recesso ou uma oportunidade para refletir

No balanço do recesso do mês de julho, pelo menos quatro eventos convidam à reflexão dos que acompanham a o estado da cidadania no Brasil: a publicação dos resultados da pesquisa Barômetro da Corrupção, o lançamento da nova temporada da série inglesa Downton Abbey, o documentário ainda em cartaz Hannah Arendt, e uma crítica sobre a cobertura da mídia à visita do Papa. Passadas as manifestações de junho, as pesquisas de opinião pública que detectam a queda geral de credibilidade dos políticos tupiniquins não apresentam nenhuma novidade para os cidadãos atuantes, que fiscalizam os governantes, discutem novas pautas de políticas públicas e, principalmente, procuram sempre mobilizar outros cidadãos a fazer o mesmo. A pesquisa do Barômetro da Corrupção, da Transparência Internacional, revela um dado animador: aumentou o percentual de cidadãos que acredita poder fazer alguma coisa contra a corrupção: de 77% em 2010 para 81% em 2012.
 
Quanto à série televisiva “Downton Abbey”, transmitida no Brasil pela GNT, que teve neste mês de julho a sua terceira temporada lançada em DVD, temos uma excelente oportunidade de refletir sobre a questão da moralidade pública na vida política nacional. A série conta a saga de uma família aristocrática inglesa desde o final do século XIX, passando pela Primeira Guerra Mundial, e seus esforços para defender seus valores num mundo abalado por conflitos. Mas, ao contrário do que poderia parecer a princípio, o forte da série não é a luta por sobrevivência de uma classe social enfraquecida contra outra em ascensão, como somos levados a interpretar precipitadamente pelo viés da luta de classes da propaganda socialista. O que conta em Downton Abbey são as relações intra-classes, e como os preconceitos, ambições e o mal intrínseco ao homem pela busca de poder podem ser vistos tanto nas classes abastadas como nos andares mais baixos da pirâmide social. E algumas vezes com tintas ainda mais pesadas. Ou seja, os vícios não são privativos da aristocracia, nem as virtudes são cativas das classes emergentes, sejam média ou proletária. Vícios e virtudes são humanos! Num mundo que estava mudando com rapidez, assim como o nosso hoje, é interessante perceber como a série vai focar os verdadeiros conflitos morais que fundam o próprio sentido da vida política. 
 
Quanto ao documentário “Hannah Arendt”, ainda em cartaz nos cinemas, trata-se de outra excelente oportunidade de reflexão sobre o momento político nacional. Uma das mais importantes pensadoras do século XX, a filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt, foi testemunha ocular das várias atrocidades patrocinadas pelo regime nazista dos anos 30 e 40, o que influenciou todo o seu trabalho ao longo da vida. Sua obra mais importante, “As origens do totalitarismo”, é usada até hoje para o estudo das motivações e dos processos que levam à distorção do que ela acreditava ser o maior bem do indivíduo, sua liberdade de escolha e a aceitação das responsabilidades dela decorrentes. Aliás, valor fundamental de toda a tradição judaico-cristã, através do conceito de livre-arbítrio que nasce já no livro do Gênesis. Quando o totalitarismo político tem a mesma origem na tradição do esteticismo alemão e seu ápice conceitual da “obra de arte total” wagneriano, origem romântica da ascensão do novo deus Estado sobre nossas liberdades. Quando em 1961 teve início o julgamento de um dos carrascos nazistas, Adolf Eichmann, Hannah, na qualidade de repórter da revista The New Yorker, relatou como sinceras as suas declarações de inocência a cerca dos crimes que lhe imputavam. Para ele, estava apenas cumprindo ordens superiores, o que não lhe conferia culpa alguma. E os cinco artigos históricos escandalizaram a opinião pública com a afirmação de que nem todos que praticaram os crimes de guerra eram monstros; eles tinham vidas bastante comuns e não viam seus atos como um crime em si, apenas como parte de um processo maior. Arendt também denunciou o envolvimento de alguns judeus que ajudaram na matança dos seus iguais, o que veio a demonstrar o conceito de “banalidade do mal”, base do seu pensamento sobre sistemas totalitaristas, nos quais não existe o espaço para contestação, sufocado através de um ataque à pluralidade de ideias que nos torna cidadãos senhores de nosso próprio destino. Pois o Estado não pode nunca ser forte demais a ponto de não nos permitir fazer escolhas individuais e por elas responder civil e criminalmente, como adultos conscientes das consequências de nossas livres-escolhas. Para a filósofa, a recuperação da cidadania no mundo moderno depende do resgate da moralidade pública, sempre acima da questão legal. 
 
Quanto à cobertura da visita do Papa Francisco ao Brasil, tomado como “O papa dos pobres” pelos shows de apelos da mídia de massa, mas de rasa capacidade de interpretação, vale a pena o comentário do professor e filósofo cristão Nivaldo Cordeiro. Como todos sabem, o atual pontífice é oriundo da ordem dos jesuítas, mas franciscano de coração. Por isso, assim que foi entronizado Papa, Francisco vem recusando sistematicamente diversos símbolos da ostentação papal. A cruz que está em seu peito é de metal, o trono talhado em ouro foi trocado por uma cadeira de madeira, os sapatos vermelhos de grife agora são calçados pretos comuns, e por aí vai.
 
Mas cabe aqui uma reflexão mais profunda sobre as preferências do Papa Francisco, na medida em que elas podem ser interpretadas erroneamente como um incentivo à chamada “opção preferencial pelos pobres”. Ou, simplesmente “pobrismo”, como observa o professor Nivaldo Cordeiro em recente vídeo divulgado pela internet. Ele comenta que é preciso cuidado ao se confundir o incentivo à busca por melhores condições de vida com um possível tratamento preferencial da Santa Igreja pelos mais pobres. E alerta: “a Igreja não é dos pobres. Ela é de todos. A Igreja foi feita para proteger a humanidade do mal. Ou seja, o princípio que norteia a Igreja é o amor ao próximo, e não a sua condição social”. Análise mais do que correta, sobretudo num país de conservadores como apurou uma pesquisa recente do Datafolha sobre a sociedade brasileira: ao contrário do que se diz por aí, 58% dos brasileiros acreditam que a motivação dos crimes tem origem na maldade das pessoas, e apenas 39% dos entrevistados acreditam que os atos são originados na desigualdade social. É óbvio. Na pobreza ou na riqueza, sempre existe a possibilidade de se escolher ou recusar uma vida de crimes. É uma questão de cidadãos adultos e responsáveis por sua livre conduta.
 
Um bom momento para refletirmos sobre os valores da cidadania que estão bem acima de qualquer condição social ou mesmo luta de classes.
 
 
* Jorge Maranhão é diretor do Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão. Email jorge@avozdocidadao.com.br