23 outubro 2006

Lições da derrota


Logo que acabou a Copa do Mundo de Futebol, iria publicar um artigo sobre o que teria o Brasil realmente perdido. Acabei por não mandá-lo pro Globo, mas, vendo agora o que o Brasil poderia eventualmente perder com a eleição deste ou daquele candidato, achei por bem revisitar o artigo.
O Brasil não perdeu nada. O Brasil ganhou. Quem perdeu foi a seleção de futebol. O Brasil é maior do que a sua seleção de futebol. E mais rico e diversificado do que há algumas décadas passadas em que fazia sentido se chamar a seleção de “a pátria de chuteiras”. Graças ao povo brasileiro temos outros símbolos, até mesmo no esporte. Temos sido campeões de modalidades esportivas nas últimas décadas que nem mesmo a perspicácia de um Nelson Rodrigues poderia supor. Fora tantos outros campos de nossa já complexa expressão cultural, como artes, medicinas, engenharias, gestão empresarial, indústrias de alta tecnologia, pesquisa científica, entretenimento e tantos outros. Cavuque um pouquinho o leitor e verá que temos excelência em muito mais campos do que sonha nossa compulsiva auto-comiseração. Só em um único campo não temos mesmo excelência, estamos abaixo da crítica: a cultura política e a gestão pública. Pois vivo dizendo que nosso maior déficit é o da cultura de cidadania, da educação política, não do povo, que é covardia lhe exigir o que não teve oportunidade de aprender, mas de nossas elites que só por alienação, cinismo ou interesses inconfessáveis, seguem sustentando essa quadrilha de sanguessugas do Estado, irresponsáveis traidores dos valores fundamentais da democracia.
Mas jogo que segue, bola que rola, o Brasil ganhou com esta derrota. Pois temos uma oportunidade histórica de passar a limpo nossos costumes políticos nessas próximas eleições e não teremos candidatos explorando o circo do futebol para enganar a arquibancada. O Brasil ganhou por que, para além de escolher esse ou aquele fulano para esse ou aquele cargo público, teremos a chance de banir de nossa cultura política essa farsa de representatividade, corporativismo, demagogia e assistencialismo barato. O Brasil ganhou porque temos a oportunidade de arrancar o maior compromisso público de um representante político, e que determinará todos os demais: o compromisso por uma reforma política radical, no sentido em que, tomada pela raiz da palavra, defenda mais os interesses políticos dos cidadãos eleitores do que a ganância ilimitada dos eleitos.
O Brasil ganhou por que muitas lições podemos extrair desse fracasso simbólico de nosso futebol que, ao contrário de não nos representar como povo, tão bem representa a miséria política de nossas lideranças sociais. Pois não temos mais como acreditar em almoço grátis, bem-aventuranças divinas, maná de novas manhãs de um porvir promissor. Estamos aprendendo a duras penas que não cabe messianismo na vida política, nem mesmo a genialidade individual de um herói. Atuações individuais não decidem partidas pois não sobrevive nenhum talento individual, por maior que seja, num coletivo medíocre! E lamentar um herói é o mesmo que lamentar um vilão. O Brasil ganhou pois estamos aprendendo a lição de que não podemos esquecer a pobreza, produto de uma desigualdade cruel entre os camarotes dos cartolas e o lugar do povão na geral. A pobreza do próximo que está mais próxima do que nossa vã tentativa de tampar o sol com a peneira, fingir que a violência social e a violação legal não são faces da mesma moeda e não nos atinge. O Brasil ganhou por que não poderemos mais nos enganar com ações isoladas quando o conjunto emperra e não consegue transformar o ciclo vicioso em virtuoso. Não poderemos mais mascarar o aprendizado de nossa história recente, o despreparo de nossos representantes, a omissão da ação política responsável e conseqüente das nossas lideranças sociais. O Brasil ganhou por que não vai dar mais para jogar nossa sujeira política para debaixo do tapete do jeitinho e da impunidade. Todos sabemos que não há progresso econômico que se sustente num quadro de instabilidade institucional, num ambiente de insegurança jurídica e irresponsabilidade política. Todos sabemos que não há possibilidade de empresa bem sucedida em sociedade fracassada.
O Brasil ganhou por que aprende que a maior lição dessa derrota é admitir definitivamente que o espetáculo, mais do que a habilidade desse ou daquele craque, é a visão do jogo dos líderes, e deve servir mais à arquibancada dos torcedores do que à máscara dos jogadores. Aprende, enfim, que não se opõem a arte do improviso individual à racionalidade de uma ação coordenada. E que, para além da lição do conhecido aforisma, de que triste o povo que precisa de heróis ou vilões, estejamos, enfim, aprendendo que não existe mágica, nem no quadrado do campo, nem tampouco no da bandeira. O que existe é aprendermos definitivamente que, daqui a quatro anos, poderemos estar de quatro outra vez, se não entendermos definitivamente que a plena cidadania é feita também de quatro faces. E que se deve exigir sobretudo dos mais afortunados a iniciativa cidadã de mudar o paradigma de nossa cultura política. O Brasil ganhou pois, se já estamos conscientes da dimensão econômica dos cidadãos enquanto consumidores, da dimensão social enquanto cidadãos contribuintes, da dimensão civil enquanto cidadãos titulares de direitos, muito ainda nos falta de consciência de cidadania política, enquanto cidadãos eleitores e responsáveis por este fracasso concreto da vida política de nosso país, cujo futebol representa apenas um fracasso simbólico.

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