07 novembro 2006


O povo não é bobo! Salve a rede Globo!

A democracia sem cidadania é como Denorex, lembram? Parece que é mas não é. É demagogia, palavra que tem a mesma raiz demos, povo, mas com a fatal diferença do sentido ativo do sufixo cratia, governo, que se reduz ao sentido passivo de agoein, conduzir. Muito já se comentou na mídia sobre as razões da vitória do presidente Lula, mas avaliar a derrota do PSDB pode qualificar o debate político da cidadania. O PSDB perdeu a eleição por que ficou cativo da demagogia e não conseguiu argumentar com credibilidade e coerência suas diferenças doutrinárias e seu compromisso democrático. Não foram apenas as suas hesitações internas na demora de definição do candidato, que nunca teve a hegemonia de apoio cabal entre seus próprios quadros, aspecto fatal num embate em que se confrontam apenas duas estratégias argumentativas majoritárias, em que Lula é um símbolo de consenso maior acima de quaisquer correntes partidárias. Mas o transbordamento desta divisão para o espaço público chega à reta final da campanha com a decisão catastrófica de se publicar um manifesto de apoio à candidatura de Alckmin assinado pelos próceres do próprio partido, como se ainda pairasse dúvida quanto ao apoio sincero de todos os seus membros. Por outro lado, a decisão marqueteira de trocar o nome político do candidato pelo apelido falsamente íntimo e popular de Geraldo transparece um preconceito arrogante de achar que o povo teria dificuldades com a prosódia estrangeira de seu sobrenome. A partir daí, sucederam-se os equívocos da tentação demagógica que entra em clara contradição com os próprios argumentos programáticos do partido. Geraldo está sempre na defensiva para negar que não cortará o orçamento dos programas sociais, que não privatizará estatais, que não cortará custos da máquina governamental, ao mesmo tempo em que não defende de maneira inequívoca os avanços palpáveis dos governos do PSDB. O que mostra em sua campanha de jingles e spots de falso apelo popular são justamente as iniciativas assistencialistas que seu programa de governo condena, como restaurantes populares, cestas básicas, de medicamentos, cheques de habitação popular etc. E aí transparece a contradição fatal entre a racionalidade e eficiência do choque de gestão prometido e a demagogia concedida.
Justamente o grupo político que se acha titular da modernidade dos costumes políticos nacionais perdeu a oportunidade única de qualificar o debate político nacional em torno de questões cruciais como os programas de privatização. E caiu na armadilha do preconceito e da arrogância quando julgou que o Brasil se resume ao eleitorado de classe média dos grandes centros urbanos, confundindo baixo nível de escolaridade com o aumento considerável da percepção política das grandes massas de cidadãos comuns, dada inclusive pela própria mídia de massa brasileira. Muito embora a cobrança implacável por ética por parte da maioria dos colunistas políticos dos grandes veículos da imprensa, ficou claro que o debate democrático popular não se limita mais aos discursos da razão dos postulantes, mas também à boa arte e estilo de como apresentam as suas idéias, não apenas em torno do que, logos, ou de quem, ethos, mas em torno do como, pathos. Se o Brasil possui uma das maiores democracias de massa do mundo, uma maioria de cidadãos que cultiva valores e tradições muito fortes de justiça, tolerância, liberdade e propriedade e que percebe perfeitamente o jogo de hipocrisia de políticos que querem se passar por mais honestos do que outros ao invés de discutir propostas de governo concretas, nunca foi tão verdadeira a máxima de que não se pode enganar todos durante todo o tempo. Sobretudo uma massa de tele-eleitores acostumados com o alto padrão global da teledramaturgia que lhe é servido diariamente através de nossas telenovelas. Podem não saber acompanhar com mais profundidade os grandes debates programáticos da política mundial entre as funções do Estado, a estabilidade institucional, os sentidos e resultados de programas de privatizações, o controle social sobre a administração pública etc, que os colunistas da grande imprensa tentam lhes oferecer na sua olímpica pretensão de isenção e neutralidade, mas sabem como ninguém o que diferencia um político sonso e boquirroto de um político empenhado e sincero. Pois o modelo de confronto não se limita ao discurso racional dos próprios políticos que nos querem convencer de suas verdades, mas os imbatíveis atores das novelas globais empenhados na persuasão cotidiana do verossímel. Pois neste planeta de nosso imaginário não há nada que escape à pedagogia (outra vez agoein, conduzir + pedos, criança) política de cortante didática de nossos Cassetas, um tele-curso intensivo a treinar diariamente a percepção das diferenças entre o grotesco da representação teatral e a sinceridade da representatividade política, sempre a serviço da cultura de plena cidadania do tele-eleitor brasileiro.

06 novembro 2006


Teatro Musical
Carlos Machado - O rei da noite.

Atores, cantores e bailarinos revivem a vida do produtor Carlos Machado, desde os anos 30 em Porto Alegre até seu início no Cassino da Urca e a década de 60.
Com Marcelo Augusto, Elisabeth Gasper, Márcio Gomes e outros.
Tex. e dir.: Paulo Afonso de Lima.
Teatro Glória.
R. do Russel, 632, Glória. Tel.: 2555 7262.
Horário: De qui a sáb, às 20h; dom, às 19h;
Preço: R$25.
Período: Até 26 de novembro.

Entre tantos agradecimentos da abertura do espetáculo, é citada a dupla de produtor e diretor Cláudio Botelho e Charles Muller, com justa razão, pois se trata dos responsáveis pelo revival da qualidade primorosa e da tradição do teatro musical brasileiro. Havia décadas que nosso musical estava em decadência, como demonstra a história de Carlos Machado levada ao palco por um belo e ágil roteiro e direção de Paulo Afonso de Lima. Coincidência ou não com a rebordosa geral da ditadura militar, o fato é que só agora com a redemocratização do país de vinte anos pra cá, é que retomamos uma tradição que vem da década de 30. Vale a pena conferir mais esta manifestação de busca incessante de nossa identidade cultural para o resgate de nossa auto-estima.

03 novembro 2006


Eu me lembro, filme de Edgard Navarro

Longa que ganhou o primeiro prêmio do 38º Festival de Cinema de Brasília do ano passado, entra agora em circuito comercial nas principais capitais do país. Dirigindo seu primeiro longa aos 56 anos, apesar de ser um premiado curta e média-metragista há 30 anos, Edgard Navarro escreve também o roteiro de um filme autobiográfico, mas com fatos e vivências de toda uma geração de brasileiros nascidos e crescidos sob os anos de chumbo da ditadura militar. O filme é uma espécie de Amarcord baiano. Um inventário dos grandes movimentos que mudaram a face do país de meados da década de 50 até a década de 70.
Guiga, o protagonista, aparece, criança, numa Salvador provinciana. No contato com a mãe, Aurora, descobre a sexualidade e seus limites. Com o pai, Guilherme, temível, austero e puritano exacerbado, viverá muitos conflitos. O garoto cresce movido por culpa católica. Sexo e Deus são tabus. A morte da mãe, quando ele era pré-adolescente, o marcará profundamente.
Jovem, nutrirá raiva muda pelo pai. Um dia, este sentimento explodirá em episódio dramático. A literatura e o cinema lhe darão acesso ao mundo dos poetas e visionários. A Ditadura Militar, a universidade, a guerrilha urbana, novas experiências de vida, o desbunde, quando "tudo explode colorido no sol dos cinco sentidos".
Há que se ressaltar a deliciosa e impecável pesquisa de produção com cenários, adereços, mobiliário, impressos e músicas de época, inclusive os mais famosos jingles de rádio e televisão da nascente indústria da publicidade brasileira. Um belo panorama de nossa história recente dentro da linha de nossa atual compulsão pelo auto-conhecimento no cinema, na literatura, na história política e em tantos outros campos da expressão cultural brasileira. Fenômeno de busca de nossa auto-estima perdida como temos nos referido aqui na Voz do Cidadão.

2/6/06