05 dezembro 2007

Jogo de cena



Fui ver Jogo de cena, o novo filme do mestre Eduardo Coutinho, diretor de outras obras-primas como Cabra marcado pra morrer e Edifício Master. Lançado em novembro, o filme/documentário mostra de maneira clara como funciona o atributo maior da grande arte de fundir realidade e fantasia, verdade e simulação, através de depoimentos reais de várias mulheres e a representação desses mesmos depoimentos por atrizes célebres como Andréia Beltrão, Marília Pera e Fernanda Torres.
Mas a cena-chave do filme é a de um depoimento de uma mãe que tem o filho assassinado e que é interpretado por uma atriz desconhecida. A sucessão das narrativas absolutamente iguais, de uma mãe que resolvera abrir sua dor diante das câmaras, nos leva a nos sentir quase que traídos por não sabermos distinguir qual o verdadeiro e o falso entre os dois pungentes relatos. Qual seria a autora real da narrativa e qual seria a intérprete? Os dois registros de uma depoente real e sua desconhecida intérprete, trabalhados pelo diretor-entrevistador, nos tira do sério, mobiliza, e nos expõe à trama infernal da grande arte enquanto dimensão supra-real. Vejo esta obra-prima de Eduardo Coutinho como uma grande e definitiva alegoria da cena brasileira, pois a pergunta que Jogo de Cena levanta é a mesma que pode ser feita em relação à performance de nossa classe política: como detectar a diferença entre uma conduta verdadeira e uma simulação para esconder intenções inconfessáveis? Ao nos perguntarmos “O que é verdade e o que é simulação?” nos vemos diante da questão fundamental do jogo político: “O que é democracia e o que é demagogia?”
Como bem já se disse muitas vezes a respeito da vida política, que as idas e vindas de opiniões, intenções de votos, acordos e desacordos, mentiras e traições, seguem padrões que lembram os de um verdadeiro jogo de cena, onde os cidadãos eleitores se sentem como meros espectadores de uma imensa e passiva platéia e não como os principais protagonistas da ação política, os sujeitos ativos da ação de eleger e se fazer representar pelos políticos. Como os grandes dribladores do futebol, que se arriscam a perder um gol feito, mas não a chance de enfeitar a finta mais desconcertante jogando para a arquibancada, fazendo a torcida se revoltar, desestimulando o eleitorado no exercício da plena cidadania de vigiar os mandatos e os governos que é a base da democracia.
Jogo de Cena é a comprovação de que, se a cultura brasileira é setorialmente competitiva com qualquer cultura de primeiro mundo, lamentavelmente, no setor cultural que perpassa todos os demais setores, que é a cultura política propriamente dita, e que estrutura a identidade cultural de um país como um todo, estamos abaixo da crítica.
Vale a pena conferir este clímax da expressão cultural do cinema brasileiro e a decisiva contribuição que as artes e a mídia podem dar ao desenvolvimento de uma cultura de plena cidadania. Sobretudo num momento em que só resta à cidadania mais consciente a missão histórica de resgatar da miséria cultural a nossa representação política, onde se finge, se engana, simula e dissimula mais do que o mais talentoso dos atores! Onde o jogo de cena é falar para a platéia, mas fazer diferente na hora de votar apenas por interesse privado ou corporativo. Principalmente nos casos das demagogias de cortes de impostos e aumento do custeio do Estado, fiscalização de repasses da União e aprovação de emendas de obras em redutos eleitorais, apoio a privatizações e nomeações de apaniguados em cargos de estatais, atendimento de demandas e privilégios do funcionalismo público, ampliação de políticas assistencialistas e muitas outras, que servem apenas para onerar os tributos de setores produtivos.
Prova inconteste de que não distinguimos ainda a função de representação política da função da representação teatral, a realidade da fantasia! E se lançarmos uma enquete - quem joga mais para platéia? O ator, o jogador ou o político? - daria este último sem dúvida alguma!