30 dezembro 2007

Hairspray

Cinema e cidadania

Fui ao cinema da sessão da tarde ver um filme de adolescentes para esfriar a cabeça: Hairspray. Mais um musical de sucesso da Broadway levado pela telona aos quatro cantos do mundo e em grande estilo. A história se passa nos anos sessenta, em Baltimore, no apogeu da luta contra o apartheid da sociedade americana. E o que mais me impressionou, para além do filme em si, foram as manifestações da platéia de adolescentes. Mais do que uma platéia de cinema, parecia o próprio auditório do “The Cornie Collins Show”. Adolescentes, na sua grande maioria meninas da mesma faixa etária da principal protagonista do filme, de quinze a dezoito anos, celulares a postos, óculos de grau, aparelhos ortodônticos na boca gritando lindo, lindo! para o galã Link Larkin com seu inigualável topete. A produção é esmerada, tanto na direção de arte que resgata em planos generosamente abertos todos os detalhes da década de sessenta numa cidade de interior americana, quanto na magistral trilha musical que levava as meninas a se levantarem para dançar em pleno cinema. O diretor e coreógrafo Adam Shankman, já indicado cinco vezes ao Oscar, constrói uma trama que é um primor do american way of life: uma adolescente gordinha chamada Tracy adora um programa de auditório da televisão local de Baltimore que, através de um concurso de dança, escolhe a Miss Teenage Hairspray do ano. Só que no programa não entram dançarinos negros, enquanto que na escola pública, Tracy tem grandes amigos dançarinos negros, até que uma seqüência de eventos a envolve numa passeata contra a discriminação racial em direção aos estúdios da televisão. Aqui vale atentar para o detalhe de dirigirem exatamente para a mídia a denúncia de um delito contra a ordem legal, para além da exposição de várias outras contradições sobre os bastidores do programa de maior audiência da TV de Baltimore e as tramas entre a diretora do programa, sua filha candidata a coroa de Miss, o dono da empresa de laquê que patrocina o programa e as relações entre os demais participantes. Vale atentar sobretudo na maneira como a sociedade civil americana usa a mídia para consolidar nas mentes e corações, principalmente dos mais jovens, os valores universais e perenes da democracia: o direito à busca da felicidade, a livre expressão da opinião, a fé na recompensa pelo esforço do talento individual, a igualdade perante a lei e a fé inabalável na ação coletiva e na justiça. Sempre com a exigência de tratamento entre cidadãos adultos, emancipados e independentes e não os coitadinhos de nossa tradição demagoga. Desde as campanhas da reconstrução da América a partir da grande depressão dos anos trinta – que precedem a própria mídia de massa - nunca mais a sociedade americana interrompeu sua missão de reproduzir os valores universais do legado humanista, não apenas nos sistemas clássicos de produção simbólica, como a educação e a justiça, mas sobretudo na mídia de entretenimento como o teatro musical, as revistas em quadrinhos, os programas de auditório e o próprio cinema. Assim é que ganha especial especial sentido para o cidadão comum americano, não apenas a clássica legenda do “crime doesn´t pay” mas, no caso deste Hairspray, o “Go for it! ´cause you´ve got to think big to be big! com que o pai de Tracy a incentiva a perseguir seu sonho. Não se trata apenas do combate a toda gama de preconceitos contra os diferentes, sejam negros ou gordinhos. Trata-se de não confundir a plena democracia da igualdade civil e política, diante do império da lei, com a mistificação da demagogia da igualdade social provida pelo mistificador de plantão.
Numa América Latina que oscila entre a consolidação da democracia e a recidiva da demagogia, cabe sem dúvida nenhuma ao Brasil, que detém o mais competente empresariado continental e o mais competente grupo de mídia da região, assumir sem hesitação sua responsabilidade política na reprodução dos valores universais da democracia. E talvez resida exatamente aí a emoção daquelas meninas brasileiras diante do espetáculo de Hairspray!

05 dezembro 2007

Jogo de cena



Fui ver Jogo de cena, o novo filme do mestre Eduardo Coutinho, diretor de outras obras-primas como Cabra marcado pra morrer e Edifício Master. Lançado em novembro, o filme/documentário mostra de maneira clara como funciona o atributo maior da grande arte de fundir realidade e fantasia, verdade e simulação, através de depoimentos reais de várias mulheres e a representação desses mesmos depoimentos por atrizes célebres como Andréia Beltrão, Marília Pera e Fernanda Torres.
Mas a cena-chave do filme é a de um depoimento de uma mãe que tem o filho assassinado e que é interpretado por uma atriz desconhecida. A sucessão das narrativas absolutamente iguais, de uma mãe que resolvera abrir sua dor diante das câmaras, nos leva a nos sentir quase que traídos por não sabermos distinguir qual o verdadeiro e o falso entre os dois pungentes relatos. Qual seria a autora real da narrativa e qual seria a intérprete? Os dois registros de uma depoente real e sua desconhecida intérprete, trabalhados pelo diretor-entrevistador, nos tira do sério, mobiliza, e nos expõe à trama infernal da grande arte enquanto dimensão supra-real. Vejo esta obra-prima de Eduardo Coutinho como uma grande e definitiva alegoria da cena brasileira, pois a pergunta que Jogo de Cena levanta é a mesma que pode ser feita em relação à performance de nossa classe política: como detectar a diferença entre uma conduta verdadeira e uma simulação para esconder intenções inconfessáveis? Ao nos perguntarmos “O que é verdade e o que é simulação?” nos vemos diante da questão fundamental do jogo político: “O que é democracia e o que é demagogia?”
Como bem já se disse muitas vezes a respeito da vida política, que as idas e vindas de opiniões, intenções de votos, acordos e desacordos, mentiras e traições, seguem padrões que lembram os de um verdadeiro jogo de cena, onde os cidadãos eleitores se sentem como meros espectadores de uma imensa e passiva platéia e não como os principais protagonistas da ação política, os sujeitos ativos da ação de eleger e se fazer representar pelos políticos. Como os grandes dribladores do futebol, que se arriscam a perder um gol feito, mas não a chance de enfeitar a finta mais desconcertante jogando para a arquibancada, fazendo a torcida se revoltar, desestimulando o eleitorado no exercício da plena cidadania de vigiar os mandatos e os governos que é a base da democracia.
Jogo de Cena é a comprovação de que, se a cultura brasileira é setorialmente competitiva com qualquer cultura de primeiro mundo, lamentavelmente, no setor cultural que perpassa todos os demais setores, que é a cultura política propriamente dita, e que estrutura a identidade cultural de um país como um todo, estamos abaixo da crítica.
Vale a pena conferir este clímax da expressão cultural do cinema brasileiro e a decisiva contribuição que as artes e a mídia podem dar ao desenvolvimento de uma cultura de plena cidadania. Sobretudo num momento em que só resta à cidadania mais consciente a missão histórica de resgatar da miséria cultural a nossa representação política, onde se finge, se engana, simula e dissimula mais do que o mais talentoso dos atores! Onde o jogo de cena é falar para a platéia, mas fazer diferente na hora de votar apenas por interesse privado ou corporativo. Principalmente nos casos das demagogias de cortes de impostos e aumento do custeio do Estado, fiscalização de repasses da União e aprovação de emendas de obras em redutos eleitorais, apoio a privatizações e nomeações de apaniguados em cargos de estatais, atendimento de demandas e privilégios do funcionalismo público, ampliação de políticas assistencialistas e muitas outras, que servem apenas para onerar os tributos de setores produtivos.
Prova inconteste de que não distinguimos ainda a função de representação política da função da representação teatral, a realidade da fantasia! E se lançarmos uma enquete - quem joga mais para platéia? O ator, o jogador ou o político? - daria este último sem dúvida alguma!