30 dezembro 2008

Taking Liberties


Taking Liberties - The Struggle for Britain’s Freedoms and Rights, de Mike Ashley, British Libray, 2008

Publicado em associação com a maior exposição sobre o tema já realizada na Inglaterra pela British Library, aberta desde outubro de 2008 até março de 2009. Vale a pena ir a Londres ver a exposição. Mas quem quiser pode acompanhá-la pela internet, encomendar o livro, ou acessar um documentário com o mesmo título, pois, mais do que a história das liberdades, os eventos querem resgatar o debate sobre este conceito fundamental para a existência da cidadania.

Por séculos o povo britânico lutou pela noção de liberdade, ao contrário do que parece a qualquer cidadão do mundo que pode não dar o devido valor a um bem que usufrui apenas por tradição ou garantia legal. Pois o livro de Mike Ashley expõe e aprofunda de maneira didática todas as etapas da grande exposição sobre a conquista das liberdades civis do povo britânico. Com a cobertura de batalhas, revoluções, ganhadores e perdedores do que foi considerado por Kant como o maior entre todos os valores universais da humanidade: a liberdade.

Trata-se da montagem de um rico painel sobre sua conquista durante 900 anos, desde os antecedentes da celebração da Carta Magna em 1215, passando pela execução de um monarca (Charles I em 1649), até a contribuição individual de cidadãos determinados. E que começa em Runnymede, a meio caminho entre o castelo de Windsor e as propriedades dos barões, com a consagração dos princípios e garantias das liberdades civis e políticas: nem o rei pode se colocar acima das leis, ou todos são iguais perante as leis, ou nenhum homem deve ser obrigado a se ajoelhar diante de outro homem, a não ser de Deus e das próprias leis (o império da lei).

A própria concepção de lei, como garantia de direitos, se origina como limite do poder do rei, como as noções expressas pelos direitos civis básicos de existência autônoma, soberania, justiça e consentimento no uso da força. Somente com a consciência e conquista dos direitos civis é que tem sentido os direitos sociais a serem garantidos pelo Estado, que não pode, no entanto, garantir estes últimos às custas dos primeiros.

O princípio da submissão do Estado aos ditames da lei se origina na submissão do próprio rei ao império da lei (the rules of Law) do Bill of rights, de 1689. Ou seja, desde os primórdios da organização social e política inglesa está claro que a liberdade não se trata apenas de um direito de cidadãos entre cidadãos (liberdades civis) garantidas pelo Estado, mas sobretudo a liberdade econômica e política dos cidadãos governados em face de seus próprios governantes (liberdades políticas).

Basta consultar – pois lamentavelmente o texto do livro passa como se este detalhe não fosse fundamental para o entendimento das diferentes concepções de liberdade entre as culturas inglesa e latina - a etimologia do termo inglês cunhado exatamente nos idos do século X e XI em que estava sendo constituída a nação inglesa: freedom que se opõe a kingdom, onde dom é domain, dominus, domínio, território onde se discute quem exerce ou não, e até que limite, o poder de coletar impostos. Esta riqueza vocabular da língua inglesa, por si mesma, já demonstra a maior riqueza de investimento reflexivo sobre os valores e conceitos relativos à constituição do Estado, diante, por exemplo, da tradição iconográfica renascentista, cuja riqueza, ao contrário, é superior à saxã, o que explica os diferentes graus de liberdade de pensamento concedidos por uma ordem cultural católica e outra protestante.

Aliás, o direito de protesto é um dos seis da própria Convenção européia sobre direitos humanos, de 1950, liderada por Churchill. Uma ordem protestante anglicana que presumia a leitura da Bíblia e sua livre interpretação pelos fiéis, ao contrário da hegemônica igreja católica que reservava este saber e poder aos clérigos, enquanto ilustrava e cativava o imaginário popular iletrado com a riqueza da iconografia renascentista.

É bom que se saiba que a tradução da Bíblia para o inglês, de 1380, antecede à de Lutero, no final do século XV e mesmo a criação da Igreja Anglicana, de 1534. À tradição de liberdade de culto, se somam as tradições de liberdade de expressão e de protesto, como na rica herança das liberdades de imprensa dos pampheteers do iluminismo inglês da Fleet Street (que até hoje é a sede das redações da imprensa inglesa). E, assim como, não se enfatiza as diferentes concepções de liberdade e freedom, não se credita a esta rica tradição inglesa e liberal a propaganda socialista e panfletária do século XIX pelos direitos sociais.

Quando, mesmo a partir dos seis direitos civis fundamentais da Convenção de 1950, ou dos 15 da Declaração Universal da ONU de 1948, confirmados pela Inglaterra pelo Human Rights Act de 1998, não constavam direitos socialistas e demagógicos como garantia de saúde e previdências sociais universais, educação terciária, trabalho, meio-ambiente, habitação etc. Tais eram apenas: o direito de protesto, de expressão, da privacidade, de não ser preso sem acusação formada, de ser considerado inocente até prova em contrário e o banimento da tortura. E evoluíram para 15 outros: o direito à vida, às liberdades (no sentido de ato, conduta e locomoção), a julgamento em tribunais justos, de não ser punido por crime não previsto em lei, à privacidade e vida familiar, à crença e consciência, à expressão, à associação, à união civil, à não ser descriminado, à propriedade privada, à educação básica, de participação em eleições, de não ser submetido a tortura ou tratamento degradante e a trabalho forçado ou escravidão.

É de se notar que não se alude entre os direitos humanos a demagogia dos políticos sobre direitos sociais como saúde universal e pública, educação secundária e terciária, bolsas de assistência social, garantia de emprego e trabalho, meio-ambiente, seguridade social etc. Quando, no campo civil e político ainda temos um longo caminho a percorrer na conquista de direitos ameaçados por tiranias, demagogias, autocracias e burocracias estatais pelo mundo afora, e sob o pretexto da onda terrorista planetária, fundamentalismos religiosos retrógrados e histeria de segurança do mundo contemporâneo, como direitos de soberania sobre nosso próprio corpo (aborto, células, órgãos), sobre nossa vida (eutanásia) e nossos próprios dados pessoais (controle sobre uso de arquivos de segurança) e herança genética (DNA database), assim como defesa da privacidade (cctv).

A crise de representação política – produto da passagem de um modelo de democracia representativa restrita, como a liberal inglesa ou social-democrata dos demais países desenvolvidos, para as democracias de massa dos países emergentes – se dá na medida mesma em que não se priorizam os direitos políticos e civis como pré-condição para a universalização dos direitos sociais.

Se os representantes políticos justificam a baixa qualidade de sua representação como espelho do nível educacional dos próprios cidadãos que os elegeram estão a incorrer numa falácia que urge ser denunciada à opinião pública, pois o princípio fundamental da ética pública é a de que seja exemplar em relação à ética da vida privada. E em nome de qualquer direito social que seja, por mais nobre que seja, não pode nenhum governante suprimir o mínimo que seja dos direitos civis e políticos, pois em nome de uma igualdade social utópica e comprometedora da igualdade perante a lei, não se pode sacrificar a liberdade, essência da cidadania e da justiça, sem incorrermos no risco de não garantir nem uma nem outra. Mesmo o Welfare State, preconizado por William Beveridge em 1942, e que propunha um duro combate às cinco grandes ameaças ao direito à vida, à liberdade e à justiça do cidadão comum inglês (fome, doença, ignorância, saneamento e desemprego), em pleno esforço de guerra do governo Churchill, não estabelecia seus programas às custas do déficit das contas públicas, mas às custas de contribuições negociadas entre os próprios sindicatos, e como meio de garantia de um nível básico de subsistência, sem ingerência na liberdade de gestão da renda do cidadão, essência de sua autonomia.

Você pode obter mais dados sobre a obra de Mike Ashley, a própria exposição e todos os seus conteúdos em: http://www.bl.uk/takingliberties

22 outubro 2008

Uma luz na escuridão


De Rodrigo Constantino
Soler Editora, Belo Horizonte, 2008

Vasto panorama do pensamento humano sobre a liberdade, o liberalismo e a racionalidade econômica desde os autores fundadores do iluminismo inglês e escocês até os dos dias de hoje. Embora falte alguns na coletânea de resenhas como La Boétie, Montesquieu e o próprio Kant. E nunca seja demais lembrar que os valores universais da liberdade, da vida e da propriedade tem na legalidade o cimento que os une e os fazem tão interdependentes. Pois não se poderia jamais conceber a garantia da vida e da liberdade sem a justiça que garante todos os contratos, a propriedade entre eles.

Alguns desses aspectos, inclusive, lembrados pelo prefácio de Roberto Fendt ao elogiar a coletânea de Rodrigo Constantino, um jovem pensador brasileiro que nos recobra a esperança de continuidade de uma linha fértil mas reduzida de pensadores brasileiros como Meira Penna, Roberto Campos, José Guilherme Merquior, Eduardo Giannetti, entre outros. Entre as 75 resenhas, destacaríamos a de John Milton, Bernard Mandeville, Thomas Paine, Humboldt, Benjamin Constant, Frédéric Bastiat, Alexis de Tocqueville, Stuart Mill, Henry Thoreau, Herbert Spencer, Lord Acton, Böhm-Bawerk, Oppenheimer, Von Mises, Hayek e Ayn Rand. As demais, como Constantino mesmo nos diz são uma pequena mostra das principais idéias para nos levar a um contato direto com as obras originais dos autores. O que nos pareceu faltante foi uma pequena introdução sobre o contexto histórico e filosófico de cada autor.

Mas trata-se de um esforço sem igual dar à luz esta coletânea, em que pese um maior rigor de revisão no texto e inclusão do contexto histórico-filosófico que temos certeza Rodrigo ainda terá muito tempo para nos presentear.

Conheça mais em http://www.solereditora.com.br/site

http://rodrigoconstantino.blogspot.com

18 setembro 2008

As origens do pensamento grego


Jean-Pierre Vernant Difel, Rio de Janeiro, 1977

O autor foi o maior helenista vivo desde o pós-guerra até o ano passado quando morreu aos 93 anos. Este livro é um dos primeiros de uma vasta produção de mais de duas dezenas de obras inteiramente dedicadas ao pensamento da antiga Grécia. Desde então, e em Entre Mito e Política, publicado em 1996, Vernant dá uma interpretação inteiramente original sobre as relações entre o pensamento político grego e as ciências físicas e a geometria.

Se na fase mitológica da civilização helênica, a sociedade ainda estava organizada por tribos de agricultores e pastores em torno de um basileu (rei) quase sempre déspota, e é representada pelas narrativas em forma de poemas épicos de Homero e Hesíodo, com o advento da filosofia, sobretudo a partir da escola dos sofistas, com Sócrates e , depois, com Platão e Aristóteles, que o conhecimento vai proporcionar a organização social da polis, que se compõe sobretudo de mercadores e prestadores de serviço.

Conceitos fundamentais da filosofia política, e que vão permitir a titulação do cidadão diante da lei e a participação do poder dos governantes, como arché (origem, comando), kratos (poder), ágora (assembléia, Estado), isotes (isonomia), sophrosyne (eqüidade, equilíbrio, bom-senso), aphrosyne (desequilíbrio, loucura), dike (justiça, igualdade), demos (povo aldeão) são criados e eternizados pelo pensamento político grego até os dias de hoje. E, além das mudanças nos modos de produção de agrário-metalúrgico para mercantil-financeiro, a palavra escrita e tornada pública na praça, ao contrário da tradição oral dos tempos homéricos, se torna a condição de possibilidade da democracia e da própria lei. Pois a arte da política é essencialmente a arte da persuasão, o exercício da linguagem, a retórica, enfim.
O lugar urbano da ágora se torna o centro da cidade, pois eqüidistante dos extremos e não mais um topo de colina onde se localizavam os templos da era mitológica. Eqüidistante dos extremos, inclusive das idéias de todos os cidadãos que são, por definição, es meson, centrais e iguais.

10 julho 2008

Filosofia política, de Philippe Corcuff Europa-América, Mem Martins, Portugal, 2003


Importante contribuição ao debate sobre a situação e os limites da filosofia política neste novo século do professor da Universidade de Lyon. Logo na introdução o autor nos apresenta uma questão instigante: se, segundo a tradição filosófica mais remota do Ocidente, pensamos através de pares de oposições, como recursos conceituais e ao mesmo tempo limites do próprio pensamento, como idealismo/materialismo, subjetivo/objetivo, individual/coletivo, pensamos de maneira efetivamente crítica ou somos na verdade pensados por uma ideologia dominante de uma determinada época histórica? E o autor acrescenta três outros pares de oposições conceituais mais contemporâneos: a essência/aparência, o um/múltiplo e o mesmo/outro (ou identidade/diferença). Basta esta reflexão para nos conduzir à reflexão sobre toda a tradição do pensamento ocidental baseada nos pares de oposição da razão/emoção e, no campo da arte e cultura, na oposição entre os estilos barroco e clássico propostas por Jakob Burckhardt e Heinrich Wolfflin desde o século XIX.

Na primeira parte, o autor faz um levantamento abrangente dos pensadores clássicos, dos gregos à Renascença, passando pelos liberais, iluministas e economistas. Em Kant, por exemplo, extrai o máximo de um pensador desinteressado pela filosofia política, quando este idealiza a melhor organização política da sociedade que equilibra os valores da liberdade, da lei e do poder. A anarquia seria a lei e a liberdade sem o poder; o despotismo, a lei e o poder sem a liberdade; a barbárie, o poder sem a liberdade nem a lei; e a república, o ideal do poder com a liberdade e a lei. Na segunda parte, retoma o inventário em face de dois dos principais conceitos da filosofia política, qual seja o da dominação e da justiça. Recupera de Aristóteles a sua noção de eqüidade como forma superior da igualdade e da justiça, no sentido de que ela constitui uma correção do caráter geral e uniforme da lei na sua aplicação concreta sobre a conduta de um cidadão real. É a chamada “circunstâncias atenuantes” do ato julgado. O que terá inspirado o filósofo contemporâneo americano John Rawls (1921 – 2002) em sua obra Teoria da Justiça, de 1971. Segundo ela, dois princípios devem ser observados: as liberdades e os direitos de base iguais para todos não podem ser sacrificados na procura de uma maior justiça social e a igualdade de oportunidades não pode ser sacrificada ao melhoramento das condições de vida dos mais desfavorecidos.

A tal ponto que, mesmo na França, o ensaísta Alain Minc, redator final do plano A França no ano 2000, recomendava ao primeiro-ministro Edouard Ballandur que substituísse o valor da igualdade pelo da eqüidade na legenda oficial da república.

Já outro filósofo do liberalismo político norte-americano, Michael Walzer (1935), professor de Princeton e editor da revista Dissent, ficou conhecido como defensor do princípio da guerra justa e se inclui numa posição ideológica chamada de liberalismo comunitarista. Em seu livro Esferas da Justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade, de 1983, analisa como a sociedade distribui não só a riqueza e o poder, mas outros "bens" sociais, como reconhecimento, educação, trabalho, proteção social, lazer e até amor de forma desigual e como estes “bens” não devem servir como meio de dominação política, numa nova e criativa teoria da igualdade. Neste sentido defende uma intervenção mais sustentada do Estado a favor da justiça social, contra a pobreza e pela igualdade complexa, sobretudo nos domínios do emprego, da proteção social e da educação básica, contrastando com as posições dos libertarians e se identificando com um social-liberalismo.
Hans Jonas, 1903 – 1993, filósofo de origem alemã, vai defender uma ética ecológica, em seu livro O princípio de responsabilidade: uma ética para a civilização tecnológica, 1990, onde as gerações atuais têm responsabilidade pelos direitos à vida e à segurança ambiental das gerações futuras. O novo imperativo moral, derivado de Kant, deve se formular positivamente: age de modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana na terra. Ou mesmo negativamente: age de modo que os efeitos de tua ação não destruam a possibilidade de vida futura na terra.

Hanna Arendt (1906 – 1975), filósofa judia alemã emigrada nos EUA, dedica sua obra à reflexão da natureza da democracia política e das origens do totalitarismo (1951), quando o identifica com três ocorrências políticas: o isolamento dos indivíduos da livre convivência social; o terror objetivo e subjetivo, ou exterior, via os aparelhos repressivos do Estado, e interior, via ideologia dogmática; e a dominação do indivíduo, via a abolição da distinção público/privado.

Concluindo, Philippe Corcuff propõe como agenda deste século XXI a reinvenção crítica do Estado-providência, o Estado da segurança social que se estabilizou no decorrer do século XX, o que pode ser associado ao advento da social-democracia. Todavia, sempre posto em causa pela crítica social-liberal sobretudo da burocratização de suas instituições que tendem a cercear as iniciativas de empresas e cidadãos.
Vale a pena conferir.

Jorge Maranhão

26 março 2008

O SÉCULO XIX

A visão da história do século XIX do recém falecido prof. René Rémond, que compreende o período entre o Tratado de Viena de 1815 até a primeira guerra mundial de 1914, só poderia ser mesmo de um francês, ou eurocêntrica, como ele próprio vai concluir no final do livro, quando define como europeizantes, enfim, todas as visões de mundo deste último século. Mas de modo algum esta visão compromete a lúcida abordagem do emérito professor da Universidade de Nanterre. Ignorando a tradição política inglesa da relação do cidadão com os impostos cobrados pelas monarquias, da Carta Magna do século XIII à Revolução Gloriosa de 1688, Rémond destaca a principal mudança da ordem monárquica francesa até 1789 para o início do século XIX que, sem dúvida alguma, é a demanda por consentimento para a cobrança do imposto através da exigência de uma ordem constitucional (rules of law da tradição inglesa).
Nesta perspectiva separa o século em quatro grandes influências doutrinárias: a ascensão do liberalismo no primeiro quarto do século, seguido da ascensão da democracia de massas, dos socialismos e nacionalismos.
É de se frisar, todavia, que todas estas doutrinas políticas respondem a uma mesma visão de mundo romântica que vigora do final do século XVIII até o século XX. E o professor contesta que o liberalismo, por exemplo, pode ser reduzido à expressão dos interesses de classe da burguesia, como vão martelar os socialistas e nacionalistas daí por diante.
Se os regimes das monarquias absolutistas intitulavam do direito político-eleitoral apenas os nascidos da nobreza, a Monarquia de Julho, depois da Restauração de 1830, incluirá os capacitados pelos títulos do conhecimento, da propriedade e da renda a partir de 200 francos, denunciando a demagogia republicana do sufrágio universal que prevalecerá a partir de sua queda pelas barricadas da Segunda República de 1848. Deste apogeu ao declínio do liberalismo francês, passaremos a identificar a própria república com as sucessivas lutas da democracia e dos socialismos, onde imperará o princípio de cada cidadão, um voto. Pois o fato de distinguir duas categorias de cidadãos, entre nobre da Câmara Alta e os plebeus da Câmara Baixa, é perfeitamente natural para o liberalismo que não compactua com a hipocrisia e a demagogia. François Guizot, um ministro da Monarquia de Julho, chegará a aconselhar: - enriquecei-vos os que querem participar do processo político! Ou seja: o reconhecimento da igualdade de todos diante da lei, da justiça e dos impostos, não exclui as diferenças sociais, de fortuna e de cultura!
Das garantias civis e políticas, através dos direitos de sucessão e do ensino fundamental, todos terão igualdade de oportunidades. Ultrapassando-se esta realidade a partir da metade do século XIX, as repúblicas instauradas caem no perigo de ver a democracia se tornar demagogia. Mas desde 1820-1830, os Estados Unidos estão experimentando a transição do sufrágio censitário para o sufrágio universal. Com a posse do General Jackson em 1828 pelo voto universal, excluídos menores, escravos, mulheres e iletrados, os Estados Unidos se consagram como regime essencialmente liberal. A segunda experiência é a francesa que, em 1848, abole a escravidão e adota o sufrágio universal, deixando o destino político do país nas mãos dos demagogos, quando, para um liberal-democrata o direito do voto só deve ser estendido àqueles com condições de independência para exercê-lo. Mas os democratas insistirão na tese de que mesmo a igualdade política diante da lei só se atinge pela igualdade de oportunidades, com o fim de diminuir as desigualdades de nascimento e de fortuna.
Todavia, é o próprio desenvolvimento capitalista das tecnologias que irá garantir o direito de acesso à informação. Desde o início do século XIX, é a venda de publicidade que derruba os preços das assinaturas dos jornais diários que, até então, eram objeto até mesmo de assinatura coletiva. Assim acontece também com várias outras conquistas de cidadania como bicamerismo com limitação de poder das câmaras altas, maior acesso às câmaras baixas, sufrágio universal com inclusão das mulheres, candidaturas universais, maior acesso ao ensino público fundamental, adoção de concurso público para as carreiras de Estado, maior acesso à carreira militar, maior acesso ao crédito bancário, justiça gratuita, saúde pública preventiva, partidos políticos instituídos, imposto progressivo sobre mercadorias e rendas etc.
No final do século XIX, o Estado exerce numa escala crescente o mecenato dos antigos príncipes renascentistas e passa, por conseguinte, a se tornar objeto da luta política concreta dos socialistas, justificando, inclusive, a ascensão do anarco-sindicalismo de Bakunin, que objetiva não apenas a abolição da propriedade preconizada por Proudhon, como a substituição do Estado por uma confederação de sindicatos, além da abolição do exército, da religião, da polícia e dos tribunais, radicalizando por assim dizer a crítica liberal do Estado. Cabe aqui uma citação do próprio René Rémond de que o melhor governo é sempre aquele que não se faz sentir, que se faz esquecer!
Na luta anarquista, o argumento da propaganda é substituído pela criação do fato político, enquanto atentado, como no caso do assassinato do arque-duque Francisco Ferdinando, estopim da primeira guerra mundial. A partir do século das revoluções, a ênfase dos nacionalismos será contrapontuada pela ênfase do internacionalismo socialista: a Primeira Internacional é fundada na cosmopolita e industrial Londres de 1864 é contemporânea de um ucasse imperial abolindo a servidão na Rússia czarista, campesina e feudal de 1861 como o decretado pelo iluminista e reformador Alexandre II. No entanto, é na Rússia que se fará uma revolução comunista em 1917 sem ter adotado o sufrágio universal que impediria o despotismo e a corrupção da nomenclatura soviética. É uma revolução cultural que determina as mudanças políticas e não apenas as condições históricas. A substituição do ambiente rural pelo urbano para a propagação das novas idéias políticas corresponde à supremacia do valor da segurança pelo valor da liberdade e, neste aspecto, se trata de uma revolução eminentemente cultural.
Seja como for, o que René Rémond quer destacar é a importância fundamental da vigência do romantismo como visão de mundo e sistema de valores sobredeterminante dos eventos políticos. Como no caso da ênfase no nacionalismo que foi a maior contradição do liberalismo, uma vez que implica no fortalecimento dos Estados nacionais. Enquanto foi uma grande arma nas mãos do socialismo internacional que os tornava apenas seções nacionais da Internacional Socialista.

29 janeiro 2008

História das idéias políticas

História das idéias políticas, de François Châtelet, Olivier Duhamel e Evelyne Pisier-Kouchner, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1985
Embora escrito no início dos anos 80, antes da queda do muro de Berlim, os conceitos da filosofia política clássica permanecem consistentes neste grande compêndio dos autores franceses. Sobretudo quando caracteriza a história das idéias políticas a partir de suas várias teorias do Estado, como os estados teocráticos da antiguidade, o estado dos principados da Renascença, o Estado-nação dos nacionalismos românticos iluministas, o Estado-sociedade dos socialistas utópicos, o Estado-partido dos comunistas etc, até mesmo o Estado colocado em questão a partir das rebeliões e contraculturas dos anos 60.É de se destacar que o confronto entre estados despóticos ou tiranos e estados democráticos, que seriam melhor chamados de nomocráticos (nomos = lei, governo da lei) sempre existiu, mesmo que em teocracias pré-helênicas.
Portanto, de saída constatamos que a luta da cidadania contra os governantes precede mesmo a constituição da pólis grega. Com o advento do Império Romano, vemos se constituir o principal atributo do imperador que é a auctoritas, a qualidade moral que lhe permite julgar o que é mais conveniente para o bem público. Se na Renascença temos de um lado Lutero rompendo com a autoridade política do Pontífice romano (1517), temos de outro lado Maquiavel teorizando sobre a correta conduta do Príncipe (1513) para manter seu poder no principado, resumido na máxima de que os fins justificam os meios.
Mais adiante, ainda no século XVI, teremos também um Étienne de La Boétie com seu célebre Discurso da servidão voluntária (1549), onde questiona pela primeira vez que a fonte de poder dos governantes, na verdade, provém do consentimento dos cidadãos, o que o torna, por natureza, limitado. Se poder é uma capacidade de agir e produzir efeitos na sociedade, a autoridade é o poder político instituído e controlado por esta mesma comunidade. Se Thomas Hobbes (no início do século XVII e antes da revolução gloriosa inglesa de 1688) nos adverte para a necessidade de um Leviatã para proteger e proporcionar segurança aos cidadãos, John Locke, já no final do século XVII, em 1690 escreve o Segundo tratado do governo civil, onde vai priorizar a soberania dos próprios cidadãos como poder legislativo sobre a própria autoridade dos governantes. Neste instante é que se recupera na modernidade a correspondência entre o princípio da propriedade e o direito político de participação na gestão dos negócios públicos originária da pólis grega. Com o Bill of Rights (1690) a Inglaterra constitui o valor da propriedade privada da terra, e dos utensílios de trabalho, como direito individual de apropriação do produto do trabalho humano, e limita a ação dos reis e de seus direitos naturais e divinos ao próprio império das leis emanadas dos cidadãos. O que dará margem a Montesquieu no século XVIII construir a teoria da separação dos poderes: “a corrupção dos governos começa quase sempre pela corrupção dos próprios princípios”, citando o próprio quando se refere, por exemplo, à honra como princípio de respeito indiscutível às leis e aos contratos, e nobre atributo de alguns aristocratas e não forçosamente de toda a nobreza.
Portanto, a missão ontológica dos governos é a garantia dos direitos dos cidadãos a uma ordem legal (o poder legislativo delibera, o poder judiciário julga e o executivo executa leis e sentenças), garantia da vida, da segurança, de suas propriedades e contratos, para que os cidadãos circulem livremente e seus bens também circulem como mercadorias que produzirão a riqueza de toda a sociedade. O que torna “a mão invisível” da economia de Adam Smith não tão invisível assim, pois presente através do império da lei. E se a França vai constituir a República baseada nos princípios romântico-idealistas da liberdade (sem o limite da lei), da fraternidade e igualdade (restritas à obediência da lei), acaba por desencadear um processo político capaz de comprometer os valores universais da tradição humanista como a vida, a segurança, a legalidade, a propriedade e a própria liberdade de controlar os governos.
É um político irlandês, o aristocrata Edmund Burke (1729 – 1797), defensor da liberdade religiosa dos católicos e da independência americana que, em suas Reflexões sobre a revolução francesa (1790), fará a crítica da razão como único instrumento de elaboração das leis, e não os costumes e tradições culturais e sociais. Se o povo inglês é livre do terror dos governantes, é porque aprendeu no curso da história a construir instituições diversificadas que garantem liberdades concretas de se associar, empreender e se apropriar do produto de seu trabalho, ao invés de reivindicar uma liberdade geral baseada apenas em princípios idealistas. Tratava-se na verdade da primeira crítica ao idealismo romântico de Rousseau do contrato social pois a vontade geral pode sacrificar legítimos direitos de minorias. Somente no século XIX, um pensador liberal francês, Benjamin Constant (1767 – 1830), em sua obra Princípios de Política (1815) afirmará: “defendi durante quarenta anos o mesmo princípio: a liberdade na religião, na literatura, na filosofia, na indústria, na política; e, por liberdade entendo o triunfo da individualidade, tanto sobre a autoridade de quem pretendesse governar pelo despotismo, quanto sobre as massas que reclamassem o direito de subjugar a minoria.” Constant dá forma concreta ao valor da liberdade, que é a de que tudo é permitido desde que não proibido por força da lei, inclusive se empreender e dispor de sobre suas propriedades, mesmo que abusando das mesmas; enfim, legitimando pela propriedade pagadora de impostos o direito de cada cidadão de influir na administração pública e nos atos de poder dos governos.
Alexis de Tocqueville (1805 – 1859) escreve na mesma época A democracia na América (1835) e defende a necessidade de os governantes desenvolverem um poder judiciário forte e independente, que possa garantir efetivamente a controvérsia democrática, as associações civis e a constituição de uma administração pública eficiente e centralizada: “é no município que reside a força dos povos livres; as instituições dos governos municipais são para a liberdade o que as escolas primárias são para a ciência. Sem instituições municipais fortes e independentes uma nação pode ter um governo livre, mas não possui de fato o espírito da liberdade. E afirmo: para combater os males que o igualitarismo pretende produzir há apenas um remédio eficaz, que é a própria liberdade política do cidadão.” Tocqueville estava contraditando a utopia dos proto-socialistas como Saint-Simon (1760 – 1825) que, no Catecismo dos industriais (1823), pretende eliminar a mediação dos políticos, sejam aristocratas ou cidadãos comuns, da administração racional e positiva dos negócios públicos. Auguste Comte (1798 – 1857), defensor ardoroso do progresso da Humanidade através da ciência, radicalizará a proposta de uma hierarquia das competências, onde os sábios produzem os conhecimentos sobre a natureza física e social, os publicistas a difundem em planos de ação, os governantes a executam e o povo obedece, para seu maior proveito. O percurso para se chegar ao bem da humanidade é a pátria que ensina a solidariedade e a família que transmite os princípios morais. A sua filosofia da história determina que só se alcança a era positiva dos valores da humanidade quando se supera a era teológica, onde se elocubra a partir dos desígnios dos deuses, e a era metafísica, onde se elocubra sobre razões transcendentais. A construção de seu sistema positivista, que culmina com a contradição da instituição da religião da humanidade, de certa forma vai na mesma direção da construção de outros grandes sistemas políticos de interpretação da história, como por exemplo, quase na mesma época, o de Karl Marx (1818 – 1883), tributário e questionador das três grandes fontes do pensamento político europeu: a filosofia iluminista alemã de Kant e Hegel, a economia política inglesa de Adam Smith e David Ricardo, e o socialismo francês de Fourier, Saint-Simon e Proudhon.
Executor testamentário de Engels, fundador da social-democracia alemã, o político e pensador alemão Eduard Bernstein (1850 – 1932), nos Pressupostos do socialismo (1899) elabora a crítica humanista e política do marxismo quando recusa assimilar a democracia à dominação da classe burguesa e a inevitabilidade do socialismo. Para ele, a democracia é a própria ausência da dominação de classe, um estado social onde nenhuma classe pode deter privilégio em face da comunidade, onde se pode superar a dominação de classe, mesmo que não se suprimam as próprias classes sociais. A exigência, portanto, de uma ordem legal, na democracia, precede historicamente a própria afluência da burguesia e é a garantia fundamental do Estado democrático de direito. Outro pensador que fará contraponto a Karl Marx é Max Weber (1864 – 1920): Se Marx explica a história pela determinação econômica em última instância, Weber vai contrapor com a determinação ideológica e religiosa. Quando a limitação do consumo é combinada com a liberação das atividades de busca de riqueza, o resultado prático inevitável é o acúmulo de capital mediante a compulsão ascética para a poupança, pois as restrições impostas ao gasto de dinheiro servirão naturalmente para aumentá-lo, possibilitando o reinvestimento produtivo do capital.
Por outro lado, a imobilização de capital na compra de terras, por exemplo, é dispensável na medida mesma da honra da palavra empenhada e da força e da firmeza dos contratos de arrendamento mercantil, próprios do ascetismo laico protestante.
Pelo lado do capitalismo, em plena crise da grande depressão americana, John Maynard Keynes (1883 – 1946), economista inglês criador da macroeconomia, decreta o fim do laissez-faire clássico, patrocinando a política de intervenção do Estado na economia, visando, nem que seja temporariamente, a retomada do crescimento da produção, o aumento da renda nacional e o volume de emprego. Keynes se torna o grande fiador do New Deal de Roosevelt, dos programas de assistência social aos trabalhadores como o Social Relief e a profusão de agências federais reguladoras dos mercados. Hayek resgata o valor universal da legalidade e da justiça através da desmistificação esquerdista do valor da igualdade, afirmando a posição liberal clássica da negação de todo privilégio concedido pelo Estado que não a igualdade perante a lei e as condições de oportunidade de ascensão social.
Friedrich Hayek (1899 – 1992), pensador da Escola Austríaca, vai procurar resgatar durante toda a sua vida o sentido histórico do liberalismo clássico inglês do século XVII contra a tempestade romântica e utópica de todos as correntes socialistas que dominaram corações e mentes a partir do século XVIII. Hayek desmonta a “inevitabilidade” da planificação centralizada no Estado na medida em que a mesma interfere na livre formação dos preços nos mercados, condição fundamental para a própria racionalidade do planejamento econômico. Norberto Bobbio (1909 – 2004) é um dos grandes arautos do fim das ideologias no âmbito dos países mais desenvolvidos, quando grandes conquistas até então ditas socialistas são incorporadas às grandes economias de mercado européias e americana, como universalização da previdência, monopólio do Estado na emissão da moeda, controle do comércio exterior, compensações à desigualdade de renda, livre negociação sindical, tributação progressiva etc. Todavia, adverte a cidadania para a condução dos negócios do Estado: o que torna moralmente ilícita toda forma de corrupção política é a presunção de que o homem político que se deixa corromper coloca o interesse individual à frente do interesse coletivo, o bem próprio à frente do bem comum. E assim fazendo falta ao dever de quem se dedica ao exercício da atividade política. Milton Friedmann (1912 – 2006), discípulo de Hayek e expoente da Escola de Chicago, retoma a crítica de que as crises econômicas do século XX não são produto de excessos do capitalismo mas, pelo contrário, dos excessos de políticas intervencionistas e contesta os benefícios do Estado-Previdência moderno e as políticas de planned society defendida por Keynes. Refuta a legislação de proteção social do Estado como meio de diminuição da exploração que, na verdade, só pode ser combatida pelo livre mercado. Discussão que funda nos dias atuais o questionamento do próprio Estado enquanto instrumento da cidadania. Com a queda do muro de Berlim, o fim da guerra fria, cai também a dualidade entre as propostas socialistas e as liberais, aumentando a importância do terceiro setor para a mediação entre as atribuições indelegáveis do Estado e das empresas. Assim como perdura na atualidade a discussão sobre a crise da representação política e do papel da cidadania.