Como o direito à liberdade foi ameaçado na Inglaterra
Taking liberties, o documentário
Roteiro e direção de Chris Atkins
Trata-se de um vexaminoso inventário do legado anti-terror deixado por Tony Blair para a sociedade inglesa: sob o lema “nothing to hide, nothing to fear, um dos fundamentos dos direitos civis universais, o direito à privacidade, foi brutalmente violado. Para além dos demais como o direito de protesto e da livre expressão, de não ser preso sem acusação de crime previamente descrito em lei (o famoso instituto jurídico do habeas corpus já prescrito na Magna Carta, desde 1215), o direito de ser inocente até prova em contrário, o direito de não ser torturado para não confessar o que não se praticou, são os fundamentos da convenção européia sobre os direitos humanos assinada pelo próprio ministro Winston Churchill, ao fim da segunda guerra em 1945. Taking liberties é documentário chocante, hilariante e polêmico que detalha a destruição de nossas liberdades civis elementares durante os dez anos de governo do “novo trabalhismo” de Tony Blair (1997 – 2007). Lançado exatamente no mês de despedida do mandato do líder trabalhista, o filme e o livro cobrem as estórias de cidadãos comuns vítimas de abuso de poder da polícia, de prisões injustificáveis e de constrangimentos durante o processo legal etc, cenas que não vemos normalmente nos jornais e nas TVs, o que nos faz levantar suspeitas inclusive de controle dos governos sobre a liberdade de imprensa, na medida mesma em que a cidadania não exerce controle social sobre as ações governamentais e tudo pode ter o pretexto de ser “top secret” , “oficial staff only” ou “prohibited for security reasons” . O documentário tenta responder por que logo os ingleses, os criadores modernos da sagrada liberdade e dos direitos civis, adotaram o Prevenction of terrorism Act de 2005 sob a alegação de que o terrorismo ameaçava as instituições da democracia e do Estado dito liberal. Por que um país sacrifica um valor universal que lhe foi tão caro conquistar? Por conta de uma guerra no Iraque que até mesmo seu promotor, o presidente americano George Bush, acabou por confessar que foi um erro ter entrado e permanecido? Quais são realmente as causas das ações terroristas de fundamentalistas muçulmanos se não a falta das garantias da democracia em seus países de origem? Como as estórias de Bryan Haw que manteve um protesto contra a guerra do Iraque em frente ao parlamento britânico, até provocar uma lei (The serious organized crime and Police Act 2005) específica contra protestos nos arredores do parlamento, o que terminou por inflamar manifestações em toda a Inglaterra; as avós militantes pacifistas que foram protestar contra uma base militar norte-americana em Yorkshire e foram presas por invadir área se segurança militar: ou as irmãs Ellen e Rose que foram presas por obstruir estradas com manifestação pacífica contra a guerra, etc. No segundo segmento deste excelente documentário, o locutor nos dá as boas vindas para o mundo do contra-terror (40:50min): uma feira mundial de indústrias de tecnologia de segurança capitalizando o pânico produzido por governos e a mídia menos responsável. O mesmo Blair que se manifestava totalmente contra a política de controle dos cidadãos, através da criação de carteiras de identidade com mais dados (inclusive histórico escolar, profissional e civil, prontuário policial e até mesmo caracteres de DNA), vai ao parlamento justificar a medida como imprescindível no meio de seu governo e depois do atentado de 11 de setembro. Quando a tradição liberal inglesa sempre rejeitou esta legislação como invasão da privacidade e comum apenas em países autoritários (como a França de Napoleão que inaugurou a medida). É o caso do herói nacional inglês Harry Willcock que, em 1950, se recusou a mostrar sua identidade, foi preso, recorreu e obrigou a Suprema Corte a se pronunciar contra a medida instaurada temporariamente durante a segunda guerra, abolindo a exigência de carteira de identidade e devolvendo seu direito à privacidade. Além do que não se pode provar que seja uma medida eficaz, uma vez que vários dos terroristas presos neste período possuíam fichas na polícia inglesa. O documentário revela também que Tony Blair, assim como George Bush, foram informados por relatórios secretos que a invasão do Iraque apenas provocaria uma onda maior de terrorismo. Assim como denuncia a maior violação aos direitos humanos que foi a tortura denunciada pela Anistia Internacional como método de extração forçada de informações contra terrorismo na prisão da base naval de Guantánamo. A alegoria final sob a forma de um spot publicitário de uma companhia aérea Rendair é hilário (1:25m). E a citação final de Thomas Jefferson é a síntese deste documentário e uma das melhores definições da plena cidadania: quando o povo teme seu governo, temos a tirania; quando os governos temem o povo, temos a liberdade. Veja em http://video.google.com/videoplay?docid=-3351275215846218544
31 janeiro 2009
Philosophy, a graphic guide to the history of thinking De Dave Robinson & Judy GrovesIcon Books, Cambridge, 2007
Um campo tão abstrato e complexo como as idéias filosóficas visto pela linguagem tão concreta e didática como os quadrinhos. Só isto é de chamar a atenção de qualquer leitor. A começar pela delimitação do campo da filosofia enquanto especulação sobre as razões primeiras e últimas das coisas até as mirabolantes teorias do conhecimento da idade moderna. Muito embora o texto não considere a delimitação clássica da passagem da especulação mitológica pré-socrática para a propriamente filosófica da era dourada dos gregos, quando da questão de saber do que era feita a realidade se passou para a questão do próprio saber e do próprio ser.A partir de Sócrates a questão maior da filosofia será a natureza do próprio homem enquanto ser que conhece. Se, à primeira vista, os atenienses produziram os modelos da filosofia ocidental, como a poesia, o drama, a astronomia, a matemática, a política etc, o fizeram graças à superação da contradição entre o exercício da democracia dentro de uma estrutura social escravocrata, uma vez que se intitulavam como cidadãos apenas os senhores de escravos ou no máximo os homens livres. À “grande questão” sobre a natureza da realidade, como a questão que explicaria todas as demais, seria substituída pela questão sobre a natureza do próprio homem. O homem passa a ser a medida de todas as coisas, como preceituava Pitágoras.Após Platão, discípulo de Sócrates, e a sua alegoria da caverna, a filosofia permanecerá idealista por mais de dois mil anos, até o advento do empirismo de Hume e Locke. Prevalece a idéia de dois mundos, mito babilônico, egípcio e judaico-cristão: o mundo imperfeito dos homens e o mundo perfeito das idéias. Apenas com Aristóteles, se retomará a idéia do realismo filosófico da integridade da natureza e do homem. E até o advento da filosofia cristã a partir de Constantino (séculos III e IV d.C.) sucedem-se escolas hedonistas e epicuristas, voltadas para a busca da fruição da vida e do prazer, os racionalistas estoicistas que lhes opõem a razão contra os sentidos, até os céticos e cínicos relativistas cujo método de conhecimento era não acreditar em nada para se verem livres de todas as preocupações.Com Santo Agostinho, à fé viria se unir a razão, que é da natureza do homem pela própria vontade de Deus. E estava justificado o livre arbítrio. Sucedem-se as questões medievais a cerca da natureza de Deus como o primeiro motor, a causa de todas as causas, até que no século XIII São Tomás de Aquino identifica Deus como a própria natureza. A busca pelo conhecimento humano não pode ser tomada como uma tentação herética de se igualar a Deus, uma vez que mesmo as leis humanas estão sempre submissas às leis de Deus. Está justificado o direito divino dos reis, até o advento do renascimento humanista de Lutero.A Reforma do século XV abre caminho para a retomada das teorias políticas clássicas, com Maquiavel (século XVI) e Hobbes (século XVII) e seu conceito de contrato social, onde a instância governamental é o terceiro excluído do contrato para lhe garantir a arbitragem de eventuais conflitos, ao mesmo tempo que é incluído para considerar os efeitos exteriores ao próprio contrato. Moralidade é o mesmo que uma cínica obediência às leis de homens essencialmente vis. É também nos fins do século XVII que surge a dúvida metódica de Descartes, reinaugurando o estoicismo e ceticismo modernos através da teoria do conhecimento dedutivo-idealista. Quando John Locke, iluminista inglês, irá se opor às idéias inatas desta tradição retomando o empiricismo indutivo pré-socrático. É o apogeu do iluminismo humanista dos enciclopedistas franceses como Voltaire e Diderot na passagem do século XVII para XVIII que possibilita o iluminismo escocês de David Hume e seu empirismo ceticista. O princípio do contrato social hobbesiano de caráter cético e realista é questionado pelo romantismo idealista-coletivista de Jean-Jacques Rousseau com a defesa da natureza inocente do homem em estado de vida natural e do princípio da vontade geral.Enquanto isso, Kant se contrapõe a Hume demonstrando que o conhecimento não pode ser fruto apenas da experiência, mas existe a priori a ela sob a forma de intuição; ou seja, retoma a idéia de duas dimensões do mundo, a sua essência (nomos) e sua aparência (fenômeno). A idéia kantiana do imperativo categórico (só posso fazer aquilo que todos podem fazer) é a retomada da idéia de Locke de liberdade dentro da lei, para que a liberdade de todos possa ser de fato garantida; ao mesmo tempo em que antecipa a idéia do “no harm to others” de Stuart Mill. Já na passagem para o século XIX, Hegel retoma a idéia da realidade enquanto processo histórico dialético, onde sínteses são realizadas a partir de teses e antíteses. Embora se oponha a esta possibilidade, Schopenhauer deixará herdeiros de uma severa crítica à tradição racionalista ocidental, como o próprio Nietzsche. Se Marx é produto do idealismo alemão de Hegel, da economia política inglesa de Adam Smith e do socialismo utópico francês, Nietzsche é fruto da crítica do determinismo histórico de Fichte e Schopenhauer. Sucedem-se as críticas da história como produto da consciência em Hegel (ao contrário da consciência como resultante da história de Marx), da divisão do trabalho e da teoria da mais-valia de David Ricardo e Adam Smith e da utopia socialista de Feuerbach. As idéias-força de Marx ofuscam no mesmo momento histórico as idéias utilitaristas de John Stuart Mill, que afirma que a maior missão de um governo é a garantia da maior felicidade para a maioria dos cidadãos. Esta cultura de liberdade é que fundará a organização social norte-americana desde a independência até o transcurso do século XIX, com Thomas Jefferson, Thoreau e Tocqueville.Mas a partir do aprofundamento da crítica da razão nietzscheana, chegamos enfim à pós-modernidade com a filosofia se estilhaçando entre existencialismos, fenomenologias, filosofias da história pós-marxistas, filosofias da linguagem, estruturalismos, filosofia analítica, psicanálise, inúmeras teorias para as filosofias da ciência, da arte e da cultura. Ao mesmo tempo em que a convergência tecnológica parece tramar um retorno do ideal de cidadania de um homem livre, autônomo e senhor de seu destino.
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