30 junho 2010

O mal-estar na civilização, de Sigmund Freud


O mal-estar na civilização, de Sigmund Freud
Edição Standard, volume XXI, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1969

Durante os anos vinte e trinta, entre a Primeira e Segunda Grande Guerra, o advogado e militante do Partido Liberal (entenda-se, de esquerda) inglês William Beveridge esteve envolvido na mobilização e controle social de uma política pública de seguridade, o que viria a ser chamado de Welfare State a partir de 1945, com a fundação do NHS - National Health Service em 1948. Mas o tema acadêmico e o foco político do trabalho de Beveridge já eram conhecidos desde 1919 quando se tornou diretor da LSE – London School of Economics e onde permaneceu até 1937. Em 1941, o gabinete liberal de Churchill encomenda o relatório sobre a situação social inglesa durante a Segunda Grande Guerra com as recomendações para a erradicação dos chamados Cinco Grandes Demônios da fome, doença, ignorância, insalubridade e desemprego da população.
Mas o que Beveridge buscava, na verdade, não se limitava a um Estado de bem-estar social, senão uma sociedade de bem-estar em si mesma. Em pleno esforço de guerra do governo Churchill, o Welfare State não estabelecia seus programas apenas às custas do déficit das contas públicas, mas às custas de contribuições negociadas entre os próprios sindicatos, e como meio de garantia de um nível básico de subsistência, sem ingerência na liberdade de gestão da renda do cidadão, essência de sua autonomia. Era o reconhecimento do governo inglês de sua responsabilidade em cuidar do cidadão “do berço ao túmulo” (do slogan original, ”from craddle to grave” ou “from womb to tomb”).
Este é o contexto em que Sigmund Freud (1856-1939) se encontra em Londres quando de seu exílio voluntário e fuga do nazismo que tomava conta da Europa continental. Um pensador revolucionário indo ao encontro da experiência política democrática mais arrojada da Europa.
A questão que nos provoca, todavia, são as relações que podemos estabelecer com o surgimento da idéia e da política pública do Welfare State e, no contraponto, da doutrina freudiana do Mal-estar na civilização. Pois à primeira vista parece que Freud não vislumbra na nova organização do Estado um instrumento de mitigação das três grandes fontes de mal estar e infelicidades humanas: a debilidade e envelhecimento do corpo, as catástrofes da natureza e a vida social e política dos homens. Ou seja: a inequívoca mitigação, senão a extinção de pelo menos parte, das três fontes de infortúnio do homem com a evolução das instituições organizadas do Estado, num ambiente de crescente participação democrática do cidadão, não está evidenciada, se quer mencionada, no texto de Mal-estar na civilização (só há uma única citação da palavra Estado no capítulo final do livro). Costumamos, inclusive, e não apenas em português, a grafar a palavra Estado com e maiúsculo, como se o tomássemos como um Deus moderno. Todavia, esta nova forma de “religião” se trata de uma nova esperança na eterna busca humana da felicidade. Se a instituição da família patriarcal, assim como as religiões em si estão em declínio, estão também em declínio suas funções de educação e formação do cidadão, suas funções de julgar e arbitrar os naturais conflitos da vida em sociedade e, sobretudo, seu papel político de mediar a dominação e o poder entre os cidadãos e seus governantes. Curioso o fato de que o mesmo Freud, que já havia retomado em sua obra fontes históricas tão primárias como o Totem e Tabu, ou mesmo mais recentes como Moisés e o berço da civilização monoteísta judaica, não tenha dado relevo a um evento contemporâneo e tão vizinho quanto à ampliação das funções do Estado do Bem-estar e a extensão de suas atribuições clássicas judiciárias e de segurança para as atribuições de provisão de educação e saúde. Sobretudo como nova iniciativa de mitigação da infelicidade humana. O que o torna uma nova tentação de ente onisciente, onipotente e onipresente, tal qual o slogan do Welfare State, uma vez que de fato induz ao progresso concreto da ciência médica e da pesquisa científica, traduzidos por resultados quantificáveis de longevidade humana e qualidade de vida. Se Freud aponta a sociedade e suas leis como fonte do mal-estar, afirma também que “a primeira exigência da civilização é a justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo.” Mas nos parece que não vê com clareza que o Estado, para além de se constituir como instituição judiciária criada pelo homem para a aplicação das leis, é também a garantia maior da igualdade dos homens perante estas mesmas leis, suas liberdades civis e políticas e, sobretudo, a da busca de sua felicidade. Embora deixe claro o seu credo cético liberal quanto à natureza do home homini lúpus hobesiano, Freud não toma partido no debate político que se travava entre conservadores e liberais ingleses, ou entre social-democratas e socialistas e comunistas europeus. Afirma taxativamente: “não estou interessado em nenhuma crítica econômica do sistema comunista; não posso investigar se a abolição da propriedade privada é conveniente ou vantajosa. Mas sou capaz de reconhecer que as premissas psicológicas em que o sistema se baseia são uma ilusão insustentável”. E conclui, questionando a premissa do socialista anarquista Proudhon: “a agressividade não foi criada pela propriedade”. Quando afirma que o homem civilizado vive o mal-estar de haver trocado a parcela de sua felicidade por segurança, quer afirmar que trocou a busca da felicidade pela segurança, como resultante da supremacia da pulsão de vida sobre a pulsão de morte. A civilização mesma se ergue sob o peso do sentimento de culpa de todos os mitos genealógicos. Não importa se pelo tabu de assassinato do pai despótico pelos irmãos em bando, se pelo roubo da chama do saber de Prometeu ou se pelo pecado original de ter comido do fruto da árvore do bem e do mal do paraíso judaico-cristão. O que importa é que a civilização resulta da severa introjeção do sentimento de culpa em superego contra o princípio do prazer que anima o ego. E a luta entre as forças da vida e da morte prosseguem sob novos pares de dualidades, como segurança e liberdade, hedonismo e ascetismo, egoísmo e altruísmo, que não deixam de ser uma evolução diante do maniqueísmo entre conservadores e progressistas, direita ou esquerda ou mesmo as forças do bem e do mal.

Sobre a obra acesse: http://www.imagoeditora.com.br/product_info.php?products_id=678
Veja um dos raros vídeos com gravação original da voz de Freud:
http://www.youtube.com/watch?v=WutYCooUvEQ
http://www.youtube.com/watch?v=o-UuyIXtRi0
E sobre a Inglaterra como exílio de Freud:
http://www.youtube.com/watch?v=vG9wCSrTbXs
http://www.youtube.com/watch?v=weYttywhYbs&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=Tymq5CefW-E&NR=1

Goya y Las Pinturas Negras


Goya y Las Pinturas Negras,
Valeriano Bozal, Museo Nacional del Prado, 2009

Esta série de pinturas, originalmente murais, decoraram a casa de Francisco de Goya (1746 – 1828) conhecida como Quinta Del Sordo e foram transpostas para tela pelo Barão Émile d´Erlanger que adquiriu a quinta em 1873 e as doou ao Museo Del Prado. Ficaram conhecidas pelo título de Las Pinturas Negras pelo uso recorrente de pigmentos negros, pelo próprio sombrio dos temas ligados à morte e os enigmas que a cercam. Todavia, são o auge de um antecipado expressionismo uma vez que, por se tratar de uma obra feita na intimidade de sua própria casa, o pintor deixa totalmente livre sua fértil imaginação. A ponto de os críticos se perderem num imenso e contraditório universo simbólico de interpretações as mais estapafúrdias. Resta apenas uma unanimidade sobre Las Pinturas Negras como um marco da modernidade estética e da superação do academicismo neoclássico e do romantismo idealista que dominavam a cena artística à época em que foram realizadas por Goya. A última das quatorze pinturas, a única em que não prevalece os tenebrosos fundos negros, O cão semi-afogado, foi descrita por Antonio Saura como v“uma das imagens mais belas do mundo”.

Depois de uma vida dedicada à pintura de câmara do rei Fernando VII, que se resumia a um retratismo oficial e repetitivo na sua falsa imponência, Goya se retira da vida de pintor oficial do rei para a mais livre e pura expressão de sua individualidade, sua visão de mundo libertária, anti-inquisitorial e anticlerical, denunciando com paixão e vigor o clima de violência e perseguição do Santo Ofício. Quando a crítica vai designar o movimento expressionista propriamente dito, fora da Alemanha no início do século XX, se refere a Goya avant-la-letre, no seu final de carreira a um século antes. São derivados dele, portanto, a escola expressionista alemã de Munch, Kirchner e Paul Klee, como os pós-impressionistas franceses Cèzane, Gauguin e Van Gogh, e até mesmo os expressionistas contemporâneos como Francis Bacon e Lucien Freud.

É neste período das duas primeiras décadas do século XIX, em que Goya se retira para executar Las Pinturas Negras, que chega à Espanha os ventos liberais das revoluções americana e francesa, tendo Fernando VII chegado a jurar e governar durante três anos sob uma constituição monárquico-parlamentarista (o chamado triênio liberal), a partir de 1820, quando se proliferam periódicos, manifestos e panfletos pregando as liberdades civis de crença, associação e de imprensa e denunciando os crimes da Inquisição.

Las Pinturas Negras, portanto, expressam com vigor e maestria este movimento de denúncia e catarse sobre até que ponto pode chegar a bestialidade humana. E, para além de artistas plásticos de todo o mundo, inspiraram cineastas como Milos Forman que em 2006 realizou um belíssimo filme sobre a vida de Francisco de Goya, que aqui mesmo nesta Agenda já foi resenhado.

Vale a pena revisitar em:

http://www.museodelprado.es/en
http://pt.wikipedia.org/wiki/Francisco_de_Goya
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pinturas_negras
http://www.imdb.com/title/tt0455957/
http://www.avozdocidadao.com.br/detailAgendaCidadania.asp?ID=1071
http://wwws.warnerbros.es/goyasghost/