30 dezembro 2007

Hairspray

Cinema e cidadania

Fui ao cinema da sessão da tarde ver um filme de adolescentes para esfriar a cabeça: Hairspray. Mais um musical de sucesso da Broadway levado pela telona aos quatro cantos do mundo e em grande estilo. A história se passa nos anos sessenta, em Baltimore, no apogeu da luta contra o apartheid da sociedade americana. E o que mais me impressionou, para além do filme em si, foram as manifestações da platéia de adolescentes. Mais do que uma platéia de cinema, parecia o próprio auditório do “The Cornie Collins Show”. Adolescentes, na sua grande maioria meninas da mesma faixa etária da principal protagonista do filme, de quinze a dezoito anos, celulares a postos, óculos de grau, aparelhos ortodônticos na boca gritando lindo, lindo! para o galã Link Larkin com seu inigualável topete. A produção é esmerada, tanto na direção de arte que resgata em planos generosamente abertos todos os detalhes da década de sessenta numa cidade de interior americana, quanto na magistral trilha musical que levava as meninas a se levantarem para dançar em pleno cinema. O diretor e coreógrafo Adam Shankman, já indicado cinco vezes ao Oscar, constrói uma trama que é um primor do american way of life: uma adolescente gordinha chamada Tracy adora um programa de auditório da televisão local de Baltimore que, através de um concurso de dança, escolhe a Miss Teenage Hairspray do ano. Só que no programa não entram dançarinos negros, enquanto que na escola pública, Tracy tem grandes amigos dançarinos negros, até que uma seqüência de eventos a envolve numa passeata contra a discriminação racial em direção aos estúdios da televisão. Aqui vale atentar para o detalhe de dirigirem exatamente para a mídia a denúncia de um delito contra a ordem legal, para além da exposição de várias outras contradições sobre os bastidores do programa de maior audiência da TV de Baltimore e as tramas entre a diretora do programa, sua filha candidata a coroa de Miss, o dono da empresa de laquê que patrocina o programa e as relações entre os demais participantes. Vale atentar sobretudo na maneira como a sociedade civil americana usa a mídia para consolidar nas mentes e corações, principalmente dos mais jovens, os valores universais e perenes da democracia: o direito à busca da felicidade, a livre expressão da opinião, a fé na recompensa pelo esforço do talento individual, a igualdade perante a lei e a fé inabalável na ação coletiva e na justiça. Sempre com a exigência de tratamento entre cidadãos adultos, emancipados e independentes e não os coitadinhos de nossa tradição demagoga. Desde as campanhas da reconstrução da América a partir da grande depressão dos anos trinta – que precedem a própria mídia de massa - nunca mais a sociedade americana interrompeu sua missão de reproduzir os valores universais do legado humanista, não apenas nos sistemas clássicos de produção simbólica, como a educação e a justiça, mas sobretudo na mídia de entretenimento como o teatro musical, as revistas em quadrinhos, os programas de auditório e o próprio cinema. Assim é que ganha especial especial sentido para o cidadão comum americano, não apenas a clássica legenda do “crime doesn´t pay” mas, no caso deste Hairspray, o “Go for it! ´cause you´ve got to think big to be big! com que o pai de Tracy a incentiva a perseguir seu sonho. Não se trata apenas do combate a toda gama de preconceitos contra os diferentes, sejam negros ou gordinhos. Trata-se de não confundir a plena democracia da igualdade civil e política, diante do império da lei, com a mistificação da demagogia da igualdade social provida pelo mistificador de plantão.
Numa América Latina que oscila entre a consolidação da democracia e a recidiva da demagogia, cabe sem dúvida nenhuma ao Brasil, que detém o mais competente empresariado continental e o mais competente grupo de mídia da região, assumir sem hesitação sua responsabilidade política na reprodução dos valores universais da democracia. E talvez resida exatamente aí a emoção daquelas meninas brasileiras diante do espetáculo de Hairspray!

05 dezembro 2007

Jogo de cena



Fui ver Jogo de cena, o novo filme do mestre Eduardo Coutinho, diretor de outras obras-primas como Cabra marcado pra morrer e Edifício Master. Lançado em novembro, o filme/documentário mostra de maneira clara como funciona o atributo maior da grande arte de fundir realidade e fantasia, verdade e simulação, através de depoimentos reais de várias mulheres e a representação desses mesmos depoimentos por atrizes célebres como Andréia Beltrão, Marília Pera e Fernanda Torres.
Mas a cena-chave do filme é a de um depoimento de uma mãe que tem o filho assassinado e que é interpretado por uma atriz desconhecida. A sucessão das narrativas absolutamente iguais, de uma mãe que resolvera abrir sua dor diante das câmaras, nos leva a nos sentir quase que traídos por não sabermos distinguir qual o verdadeiro e o falso entre os dois pungentes relatos. Qual seria a autora real da narrativa e qual seria a intérprete? Os dois registros de uma depoente real e sua desconhecida intérprete, trabalhados pelo diretor-entrevistador, nos tira do sério, mobiliza, e nos expõe à trama infernal da grande arte enquanto dimensão supra-real. Vejo esta obra-prima de Eduardo Coutinho como uma grande e definitiva alegoria da cena brasileira, pois a pergunta que Jogo de Cena levanta é a mesma que pode ser feita em relação à performance de nossa classe política: como detectar a diferença entre uma conduta verdadeira e uma simulação para esconder intenções inconfessáveis? Ao nos perguntarmos “O que é verdade e o que é simulação?” nos vemos diante da questão fundamental do jogo político: “O que é democracia e o que é demagogia?”
Como bem já se disse muitas vezes a respeito da vida política, que as idas e vindas de opiniões, intenções de votos, acordos e desacordos, mentiras e traições, seguem padrões que lembram os de um verdadeiro jogo de cena, onde os cidadãos eleitores se sentem como meros espectadores de uma imensa e passiva platéia e não como os principais protagonistas da ação política, os sujeitos ativos da ação de eleger e se fazer representar pelos políticos. Como os grandes dribladores do futebol, que se arriscam a perder um gol feito, mas não a chance de enfeitar a finta mais desconcertante jogando para a arquibancada, fazendo a torcida se revoltar, desestimulando o eleitorado no exercício da plena cidadania de vigiar os mandatos e os governos que é a base da democracia.
Jogo de Cena é a comprovação de que, se a cultura brasileira é setorialmente competitiva com qualquer cultura de primeiro mundo, lamentavelmente, no setor cultural que perpassa todos os demais setores, que é a cultura política propriamente dita, e que estrutura a identidade cultural de um país como um todo, estamos abaixo da crítica.
Vale a pena conferir este clímax da expressão cultural do cinema brasileiro e a decisiva contribuição que as artes e a mídia podem dar ao desenvolvimento de uma cultura de plena cidadania. Sobretudo num momento em que só resta à cidadania mais consciente a missão histórica de resgatar da miséria cultural a nossa representação política, onde se finge, se engana, simula e dissimula mais do que o mais talentoso dos atores! Onde o jogo de cena é falar para a platéia, mas fazer diferente na hora de votar apenas por interesse privado ou corporativo. Principalmente nos casos das demagogias de cortes de impostos e aumento do custeio do Estado, fiscalização de repasses da União e aprovação de emendas de obras em redutos eleitorais, apoio a privatizações e nomeações de apaniguados em cargos de estatais, atendimento de demandas e privilégios do funcionalismo público, ampliação de políticas assistencialistas e muitas outras, que servem apenas para onerar os tributos de setores produtivos.
Prova inconteste de que não distinguimos ainda a função de representação política da função da representação teatral, a realidade da fantasia! E se lançarmos uma enquete - quem joga mais para platéia? O ator, o jogador ou o político? - daria este último sem dúvida alguma!

21 setembro 2007

Cidadania e classe social


Cidadania e classe social
Thomas Humphrey Marshall, 1893 - 1981

Leituras sobre cidadania, Senado Federal, MCT/CEE, Brasília, 2002 Editora Zahar, Rio de Janeiro, 1967
Editor: Senado Federal/Ministério da Ciência e Tecnologia – CEE Ano: 2002

Obra prima e marco nos estudos da cidadania como um dos mais complexos conceitos de toda a filosofia política, este livro do sociólogo inglês da LSE foi originalmente apresentado em conferência de 1949, quando definia historicamente a cidadania como uma sucessão dos direitos civis, políticos e sociais, além dos deveres.

Os direitos civis correspondem aos direitos relativos à vida, à segurança e às liberdades individuais, mas sobretudo ao direito à propriedade, aos contratos e à justiça.

Os direitos políticos devem garantir aos cidadãos de um determinado Estado a participação livre na atividade política, seja como membros de organismos do poder político, seja como simples eleitores de representantes nesses organismos. Os direitos sociais respondem às necessidades humanas básicas, assegurando o direito a um bem-estar econômico mínimo, relacionam-se principalmente com o direito a salário, saúde, educação, habitação e alimentação.

A esses diferentes tipos de direitos correspondem quatro conjuntos de instituições: os tribunais, para salvaguardar os direitos civis; as assembléias representativas, locais e nacional, como fóruns legislativos e de decisões políticas; os serviços sociais dos executivos para garantir o mínimo de saúde e viabilizar o acesso à educação.

Mas a noção de cidadania implica direitos e também deveres, sobretudo os de agir social e politicamente de forma a garantir aos demais cidadãos estes mesmos direitos, o que só foi possível com as conquistas do direito eleitoral, na França em 1793 e na Inglaterra somente em 1832, mesmo assim para homens proprietários, excluídos servos, desempregados e mulheres. Ou seja, como integrante de uma coletividade, todo cidadão deveria respeitar o acesso de seus concidadãos aos direitos básicos.

Marshall periodiza os fatos históricos relativos à esfera dos direitos nos Estados modernos europeus atribuindo a séculos diferentes o surgimento de cada tipo de direito. Assim os direitos civis seriam os primeiros, surgidos no século XVIII; os políticos estão ligados ao século XIX; e os sociais, ao século XX. Sendo que a literatura sociológica moderna atribui ao século XX o surgimento de uma quarta geração de direitos difusos relativos aos direitos dos consumidores e do meio ambiente. O que abriria na nossa concepção um novo campo de direitos econômicos ao consumo consciente e ao controle social dos governos, mandatos e orçamentos públicos como forma de garantia de fato dos direitos sociais e não de sua manipulação demagógica pelos políticos.

A noção de cidadania, se foi algum dia relativa às liberdades no âmbito das cidades, se nacionalizou a partir das constituições dos estados nacionais europeus durante os séculos XVIII e XIX, assim como se universaliza numa cidadania planetária a partir do século XX. A noção de igualdade perante a lei, por outro lado, vai garantir a possibilidade de mobilidade entre as próprias classes sociais, superando a noção socialista utópica da distribuição igualitarista da riqueza social e da quebra dos valores universais do contrato e da propriedade. A própria diminuição da desigualdade social foi uma conquista da evolução do próprio capitalismo que garante acesso pelo menos aos direitos sociais fundamentais para a livre competição.

O próprio princípio da justiça social, questionado pelos liberais, é tão somente para subsidiar os custos da justiça para quaisquer litigantes, mesmo os hipossuficientes, garantindo os direitos civis fundamentais. E não para intervir na desigualdade de renda social ou tentar eliminá-la a qualquer custo, o que acabaria cerceando as liberdades da livre iniciativa sem a conseqüente garantia da extinção das mesmas desigualdades. O direito de ter direitos, como definição clássica da cidadania, é na verdade a garantia de isonomia diante das leis, a igualdade de oportunidades, que só é garantida de fato pela eliminação de privilégios, pelo igual direito de ser desigual e pelo exercício dos deveres civis e políticos dos cidadãos. Desigualdades sociais podem ser admitidas como fruto de méritos empresariais, autorais ou ganhos pela assunção de riscos, garantidas a propriedade e sua sucessão, mas jamais pela desigualdade de oportunidades advindas de privilégios hereditários.

Se corretamente lido, verificaremos que, mesmo simpatizante de um socialismo fabiano, Marshall considera possível a elevação do nível geral de civilização dos trabalhadores sem no entanto interferência no livre funcionamento do mercado.

Biografia: http://www.lse.ac.uk/resources/LSEHistory/marshall.htm

Onde comprar: http://www.seep.ws/produtos.asp?produto=223

Saiba mais sobre o livro clicando aqui >>

19 setembro 2007

A formação das almas

A formação das almas
José Murilo de Carvalho

O imaginário da república no Brasil - O que se constata com a leitura deste belo ensaio de nosso maior historiador é o quanto a república foi um movimento sem raízes na cultura popular brasileira ainda muito marcada pelos símbolos monárquicos do longo segundo reinado. Para tanto, esforçam-se os republicanos a formar a alma brasileira nos padrões da propaganda do “orador do povo” Mirabeau que, nos anos de consolidação da República francesa, funda o Bureau de l´Esprit no Ministério do Interior justificando: “não basta mostrar a verdade, é necessário fazer com que o povo a ame, é necessário apoderar-se da imaginação do povo.”

O modelo republicano francês vem a prevalecer diante do modelo liberal americano pela profusão de símbolos e pelo misticismo romântico da comemoração do centenário da Revolução francesa em 1889. Na verdade, acabamos por substituir uma monarquia parlamentarista das mais avançadas da época por uma república oligárquica. Como se na guerra de secessão americana terminassem por ganhar as forças latifundiárias e conservadoras sulistas. Neste republicanismo positivista, a clássica liberdade político-fiscal inglesa, que funda a cidadania na esfera de sua relação com os governantes, se dilui em românticas liberdades civis de expressão, locomoção, credo e associação.

A visão jacobina (radicais sans-cullotes que se sentavam à esquerda no salão das reuniões dos revolucionários franceses) da república brasileira identificou a monarquia com o Ancien Régime, quando a nobreza brasileira era apenas nominal e não hereditária e o índice de moralidade um dos mais altos de toda a nossa história. A legenda católica de que “não existia pecado a baixo da linha do Equador” acaba se transformando na legenda de não existência da própria lei, o que dificulta a cultura brasileira na ordenação do Estado. Tínhamos uma tradição de espírito explorador capitalista sem a correspondente virtude da ética protestante. Talvez aqui se explique a razão de nossa orfandade sebastianista: como em Totem e Tabu, assassinamos o pai monarca mas não constituímos o império da lei, essência de uma verdadeira república.
Como fica claro, os dois maiores símbolos nacionais da república não são da república, uma vez que o hino nacional de Francisco Manuel da Silva foi composto em 1831 em homenagem à abdicação de D. Pedro I e coroação de D. Pedro II. E a bandeira apenas redesenhada com a legenda positivista, uma vez que as cores e os elementos geométricos de nossas riquezas já estavam na bandeira imperial. Na verdade o evento da proclamação da república não passou de uma passeata militar entre o Itamaraty e a Assembléia Legislativa, com a deposição e expatriação de D. Pedro II. Deposto o rei, tal qual a simbologia da revolução francesa, passa-se a representar a república pela figura feminina inspirada em Palas Atena, símbolo da guerra justa e da liberdade (vide a própria representação da estátua da liberdade americana doada pela república francesa). Só que, positivistas, nossos republicanos concebem um Estado provedor, uma pátria mátria no dizer de Comte, como na famosa escultura de Honoré Daumier em que Palas dá as tetas (da viúva?) aos filhos da república. O valor maior do positivismo, o altruísmo de uma sociedade cujo Deus é a própria humanidade e seus sábios os santos, é de natureza feminina que, enquanto mãe, pensa mais no filho do que em si mesma. Mesmo os opositores do novo regime, dilaceravam a simbologia da res publica como uma mulher pública, prostituta. Mas, se as virtudes da república podem ser contestadas, certamente não poderiam no regime machista monárquico. Como nenhum dos candidatos a heróis masculinos pegaram, de Deodoro a Benjamin Constant ou Floriano, restou desenterrar Tiradentes de quase um século antes, ou recuperar a figura religiosa de Nossa Senhora da Aparecida, negra e brasileira.

Mesmo com relação à legenda inscrita na nova bandeira redesenhada por Décio Villares, resta obscura a exclusão do segundo elemento do tríptico comteano: ordem como base, amor como princípio e progresso como fim. Conforme já nos referimos aqui, o amor comteano não se trata do amor eros ou filos, mas era o amor ágape do sentimento de nobreza com relação ao povo, entendido este amor classicamente, como a expressão afetiva da justiça, assim como a justiça era entendida como a expressão social do próprio amor.

De qualquer jeito, o que marca o positivismo romântico brasileiro é a contradição da superação da base da razão (a ordem) pelo amor (o princípio) para se chegar à ação-fim (progresso), quando na verdade o que se suprimiu no tríptico comteano foi o próprio princípio do amor-justiça. Esta seria o grande mistério da formação de nossas almas tão mais afeitas ao individualismo e a omissão política e incapazes de construir uma verdadeira cultura de cidadania. Parodiando a pietá de Michelângelo, José Murilo nos representa Nossa Senhora Aparecida tendo o Tiradentes esquartejado de Pedro Américo como símbolo de nosso povo!
http://www.companhiadasletras.com.br/

20 junho 2007

ABC de Ariano Suassuna


ABC de Ariano Suassuna

de Braulio Tavares

José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 2007

Temos ainda um grande caminho no esforço de conquistarmos a plena cidadania como cultura dominante brasileira. Mas estamos começando a acordar do grande sono do berço esplêndido. Nesta semana que passou, a Semana Armorial, composta de exposições cenográficas, de artes plásticas, oficinas de pintura e poesia, aulas-espetáculos, cinema, documentário, lançamentos de livros e concertos musicais, em homenagem a um de nossos maiores escritores vivos, ainda teve gente que fez muxoxo dizendo não entender lá muito bem a narrativa entrecortada da minissérie da TV Globo sobre o romance d’A Pedra do Reino.
Pois que não entenda, mas apenas se entregue aos sentimentos de prazer e deleite por se reencontrar enfim com as nossas próprias raízes, com a nossa identidade cultural. Pois não pode saber o que quer quem não sabe o que é. E neste momento crucial de nossa história, onde estamos empacados na encruzilhada sem saber que caminho tomar, sem saber o que queremos, enfim, de nossas vidas e de nosso país, se queremos continuar na mediocridade dos maus costumes políticos dos traidores de nossa representação política, ou se queremos construir uma nova e revigorada república forte e democrática, justa e transparente, é fundamental se entregar a nossa própria identidade, a conhecer e sentir na carne os espíritos de que somos feitos, as crenças de que somos herdeiros, os costumes a que nos rendemos.
No momento em que padecemos de mais uma tragédia nacional, em que um grande bufão de nossa política oficial quer nos fazer dementes e crédulos de suas mentiras contumazes, e arrasta as instituições da democracia para o lodo, sem a menor nobreza ou espírito público, é fundamental discernir o que pode significar a picardia de nosso grande cantador sem repente, cangaceiro manso, nobre palhaço frustrado, contador mentiroso de maravilhas, nosso maior professor de história e auto-estima Ariano Suassuna.
Para tanto, e dentre os vários produtos culturais dessa oportuna Semana Armorial, vale a pena ler o roteiro explicativo do ABC de Ariano Suassuna de Braulio Tavares, escritor, roteirista da própria minissérie, pesquisador e biógrafo de Ariano. Neste pequeno e precioso livro vamos entender os pontos-chave da narrativa fantástica d’A Pedra do Reino. O quanto ela tem a ver com a própria vida do romancista na sua profunda identificação com o personagem principal Quaderna. E de sua própria orfandade, poderemos tirar o entendimento de nossa própria orfandade coletiva, enquanto povo desprovido de liderança respeitável, de exemplaridade e de caminhos a seguir, fora o Deus de cada um, a pitada de fé de cada qual, e os falsos profetas de sempre. Pela biografia de Ariano, vamos compreender que fomos todos derrotados pelo embate de um patriarcado rural brasileiro com uma burguesia urbana arrivista, fundadora de uma república de pastiche em 1889, uma revolução anarco-sindicalista em 1930 e um golpe militar moralista em 1964. E ficamos tão mambembes na construção de nossa cidadania como a extraordinária expressão corporal de Quaderna na minissérie da Globo, que nada mais é do que a simulação do teatro de mamulengos recriada pelo genial diretor Luiz Fernando de Carvalho. Quaderna que Ariano nos ensina a ver como a síntese sertaneja e brasileira do herói épico e ascético do romanceiro da cavalaria medieval com o personagem popular da comédia de picardia renascentista, feito que nem Cervantes conseguiu sintetizar em Don Quixote e Sancho Pança.
Pois, como se diz entre o povo, miséria pouca é bobagem! Nunca precisamos tanto da ousadia das idéias para não continuar padecendo como um povo do porvir e desprovido de poder de realização. Quantas idéias, planos mirabolantes, conjecturas filosóficas, confissões ardentes, contratos de longo termo, testemunhos jornalísticos, inventários sigilosos, romances mirabolantes, imagens fantásticas, pinturas e projetos de arquitetação dramática, e tudo o mais que possam comportar os símbolos da humanidade, não estaremos todos produzindo neste exato momento sem que não nos demos conta, sem que a mídia não nos reflita e nos empodere.
Pois amarrando suas narrativas numa relação entre um indiciado injustiçado Quaderna, arrolado num processo fantástico diante de um corregedor bizarro, Ariano nos faz todos nos sentir vítimas da grande omissão do Estado brasileiro, que é a omissão de sua função mais elementar da providência da justiça. Ariano nos revela a nossa verdade tantas vezes sabotada pela mídia de entretenimento popularesca. E cita Machado de Assis: “o Brasil real é bom, revela os melhores instintos, mas o país oficial é caricato e burlesco.” E Euclides da Cunha: “deslumbrados pelas miragens de uma civilização que recebemos de empréstimo e que nos chega embalada pelos transatlânticos, nós ficamos nos acotovelando na rua do Ouvidor e deixamos de ver o Sertão amplíssimo, onde se desata a base real de nossa nacionalidade.” E Monteiro Lobato: “ temos de ser nós mesmos; ser núcleo de cometa, não cauda; puxar fila, não seguir”.
Portanto, Ariano afirma incansavelmente a identidade cultural brasileira em dimensão multimídia, fazendo-a vigorosa em todo e qualquer veículo, linguagem ou mídia que esteja a seu alcance. Inclusive nesta maravilhosa minissérie da TV Globo, que, se não é entendida, não é pela complexidade das narrativas intrincadas, se não pela nossa sensibilidade embotada pela pasteurização da cultura de massa globalizada. Este pequeno livro de Braulio Tavares é não apenas um ABC de nosso grande mestre Ariano Suassuna, mas um ABC de nossa própria identidade cultural.
Mais informações em http://www.arianosuassuna.com.br/

21 maio 2007

“Liberdade ou Igualdade?

Mário Guerreiro - Edipucrs, Porto Alegre, 2002

Em tempos demagógicos de licenciosidade e igualitarismo como os que o Brasil atravessa é urgente aprofundar os valores fundamentais da democracia que são a liberdade e a igualdade perante a lei. Pois muito se confunde em nosso país a possibilidade de convivência das liberdades civis e, sobretudo, políticas com o império da lei e da justiça. Quando a justiça e o direito não são a negação das liberdades, mas, ao contrário, a sua própria condição de possibilidade.

Este alentado ensaio do pensador e filósofo brasileiro, Mário Guerreiro, se constitui no painel mais completo sobre tão fundamental questão da filosofia dos valores, da filosofia política e da cultura escrito em nosso idioma.

Logo na introdução, Mário Guerreiro revela sua opção doutrinária de radical defensor das garantias individuais da liberdade humana. E cobra de um cidadão autônomo a responsabilidade civil e política pela sua livre escolha de sua conduta social. Assim como denuncia o Espírito Absoluto de Hegel, o determinismo do processo histórico de Marx e o inconsciente de Freud como os mais consagrados subterfúgios para a irresponsabilidade política do homem moderno. Quando determinismos históricos consagrados pela ótica marxista, como a da eclosão das revoluções socialistas nos países de capitalismo mais avançado como a Inglaterra, acabaram por ser desmentidos pela livre escolha da ação humana.

Mário Guerreiro releva a partir daí o conceito de liberdade de John Stuart Mill, como ausência de coerções injustificáveis. O que concilia a liberdade individual com a ordem social e o império da lei. Nenhum dano ao outro (no harm to others) passa a ser o conceito-chave da liberdade individual garantida pela isonomia da igualdade de todos perante a lei. Com Hume (1751) o autor lembra da desigualdade intrínseca da natureza humana e alerta de que toda tentativa de produção da igualdade social, que não a da isonomia, acabaria por destruir a liberdade sem nos levar à igualdade. Para tanto, há que se garantir a necessária indeterminação do processo histórico para o exercício pleno da liberdade de escolha individual e sua implícita responsabilidade civil e política. Pois a liberdade individual que autodetermina nossa conduta social e a própria iniciativa do empreendimento é uma parte apenas da liberdade de auto-governo e da participação política. E ajunta o autor: “seria demasiadamente cômodo reivindicar direitos sem assumir os correspondentes deveres, assim como seria demasiadamente cômodo aceitar o bônus da liberdade e rejeitar o ônus da responsabilidade”. Como repetimos em nossos programas de cultura de cidadania: não temos razão em reclamar de governos se nos omitimos da participação política, sobretudo os socialmente mais responsáveis e privilegiados. E vale mais uma vez a citação do autor: “se não há liberdade de escolha, não pode haver responsabilidade por qualquer escolha feita. Se não há responsabilidade, como estabelecer quaisquer restrições à conduta humana? Uma suposta ética sem restrições é algo semelhante a uma competição de natação sem água, assim como um sistema legal sem punições é algo semelhante a um jogo de tênis sem bola.” “Não há liberdade sem lei”, diz Thomas Hobes.

De tais princípios, o autor vai distinguir as diversas concepções do Estado. Se para marxistas, o Estado é um bem necessário e para anarquistas um mal desnecessário, para os liberais, o Estado é um mal necessário.

No segundo capítulo, Mário Guerreiro revela os fundamentos de sua reflexão com uma exposição da biografia filosófica do grande pensador e economista da Escola Austríaca Friedrich Hayek. No terceiro expõe as razões de sua opção pelo velho liberalismo que, como brinca o próprio Hayek, passou a ser jovem na sua velhice. No quarto capítulo, o autor expõe a correlação necessária entre uma ética mínima e um Estado mínimo através de uma interessante abordagem do segundo parágrafo da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de Thomas Jefferson quando: “sustentamos que estas verdades são auto-evidentes, que todos os homens foram criados iguais; que eles são dotados por seu criador de certos direitos inalienáveis; que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. E que para assegurar estes direitos, foram instituídos governos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados”.

A questão que nos parece essencial é que o valor e o direito inalienável da justiça, garantidos pelos justos poderes dos governos contratados soberanamente pelos cidadãos governados, ficou apenas implícito no final do parágrafo, quando deveria se apresentar logo no início ao lado da vida e da liberdade. Neste aspecto, a própria hierarquia dos direitos naturais estabelecida por Locke entre a vida, a liberdade e a propriedade teria de ser considerada pela necessária anterioridade do direito à justiça que garante a priori todos os demais direitos como, aliás, todos os demais contratos sociais. Pois, um Estado sem lei, como tem sido na maior parte do tempo a própria história de nossa república, como diria Nietzsche, acaba sendo “o monstro frio dentre os mais frios dos monstros”. Quando a igualdade de que se referia Thomas Jefferson, não é a igualdade biológica, matemática ou econômica, de status enfim na sociedade, que não passa de uma utopia freqüentemente nutrida pelo ressentimento e pela perversidade dos desiguais, mas simplesmente a igualdade perante a lei. Lei que, se descumprida, tem como sanção a própria cassação da liberdade, quando não a própria supressão da vida enquanto pena capital. O que nos parece aqui um desvirtuamento da tradição dos códigos penais da antigüidade, a começar pelo próprio código mosaico que nos lega maior importância ao respeito à honra, pelo princípio da justiça e pelo respeito aos contratos, diante da própria vida, da liberdade e da propriedade. O Estado mínimo, portanto, pressupõe a aplicação de princípios de uma ética mínima de caráter universal e negativo e emergiu de um contrato social em que os governados concederam poder limitado aos governantes para gozar dos benefícios de um Estado de direito e não de um Estado provedor, assistencial, empreendedor, onisciente e onipotente.

Nos capítulos quinto e sexto, Mário Guerreiro, faz uma brilhante defesa do pensamento de Hayek através de uma crítica exaustiva aos autores R. Norman e H. Wainwright nos explicando por que a busca de qualquer igualdade, que não a igualdade perante a lei, sempre acaba por destruir a liberdade sem nos levar ao bem maior da Justiça. O que nos permite definir a cidadania como consciência de igualdade perante a lei, nos libertando das demagogias das pseudo-garantias de direitos sociais, como trabalho, previdência, saúde, educação etc, sem as necessárias contrapartidas dos deveres da responsabilidade política.

18 abril 2007

Egoísmo racional

O individualismo de Ayn Rand
De Rodrigo Constantino
Documenta Histórica Editora, Rio, 2007

Economista formado pela PUC-RJ, com MBA de Finanças no IBMEC, Rodrigo tem 30 anos e trabalha no mercado financeiro desde 1997. É autor dos livros Prisioneiros da Liberdade, e Estrela Cadente: As Contradições e Trapalhadas do PT, pela editora Soler, e lança agora este Egoísmo Racional: o Individualismo de Ayn Rand, pela Documenta Histórica. Além do que, todos podemos acompanhar o pensamento vivo de Rodrigo Constantino através de seu blog onde se declara logo no cabeçário “um pensador independente e libertário”.

Neste seu livro sobre Ayn Rand, importante filósofa americana nascida na Rússia em 1905 e falecida em Nova York em 1982, cuja obra é pouco difundida em língua portuguesa, Constantino nos resume os tópicos principais do pensamento da autora, a começar dos conceitos de individualismo e egoísmo racional, e sua filosofia por ela denominada de objetivismo. Para termos uma idéia da importância de seu pensamento, vale registrar uma pesquisa divulgada pelo professor Eduardo Chaves, filósofo da Unicamp, junto aos leitores americanos da editora Random House, onde quatro das obras literárias de Ayn Rand -- Atlas Shrugged (1957; em Português: Quem é John Galt?), The Fountainhead (1943; em Português: A Nascente), We the Living (inédito no Brasil) e Anthem (inédito no Brasil) -- foram colocadas entre os dez melhores livros do século.

Um dos pontos altos do livro é o capítulo sobre a imoralidade de Robin Hood, figura românticamente idealizada como quem roubava dos ricos para dar aos pobres, quando na verdade não fazia mais do que recuperar o que era tomado a força dos produtores, via impostos extorsivos pelas autoridades dos barões ingleses. É o momento histórico do surgimento da Magna Carta inglesa, onde o conceito de justiça não pode abolir o conceito de propriedade que vai fundar séculos depois, na Revolução Gloriosa, a correta noção de cidadania, como a fonte do poder consentido ao Estado para garantir os contratos entre os próprios cidadãos.

Aliás, vimos insistindo nesta tese de que os liberais, exatamente pelo seu apego a uma tradição racionalista, e má avaliação do poder do aparelho de propaganda socialista, que suplantou a ingenuidade dos primeiros panfleteiros ingleses, substimaram a própria força da filosofia e visão de mundo romântica. Claro indício disto é o mal entendido da dialética do senhor e do escravo hegeliana, quando limitada a uma dimensão de dominação intelectual (do mestre e do aprendiz) e não propriamente política do senhor e do oficial. Outro ponto alto trazido à tona do pensamento da filósofa por Constantino é o elogio do individualismo contra as concepções coletivistas e o elogio da acumulação de capital das economias de mercado. Assim como o império da lei e a limitação do poder do Estado como a maior conquista da cidadania, quando o cidadão pode fazer qualquer coisa que não esteja legalmente proibida, enquanto o oficial do governo não pode fazer nada que não esteja legalmente consentido pelo cidadão.

No capítulo do rebanho bovino, Constantino nos revela a crítica randiana do Welfare State, quando os sociais-democratas se apropriaram do Estado dividindo-o em áreas de interesse de grupos de pressão, onde cada um luta por privilégios às custas dos demais cidadãos, e largando os indivíduos autônomos, e não atrelados a quaisquer desses grupos de pressão, na condição de presas fáceis desses verdadeiros predadores do interesse público e em nome de um “bem comum” inexistente. Quando o Estado deveria estar limitado apenas às suas funções de garantia da lei, através da força policial, das forças armadas e das cortes de justiça que devem decidir sobre as disputas entre os cidadãos e a garantia dos contratos.

Dever máximo da argumentação de uma verdadeira cultura de cidadania, onde a voz do cidadão deve assumir em alto e bom som o seu papel de solista meio ao coro geral dos omissos. Conforme a citação de Edmund Burke, com que nos brinda no final do seu livro Rodrigo Constantino: “Tudo que é necessário para o triunfo do mal é que pessoas de bem nada façam.”

Veja mais em http://rodrigoconstantino.blogspot.com/

E também http://aynrand.com.br/

14 março 2007

A Lei e a Ordem, de Ralf Dahrendorf


A Lei e a Ordem, de Ralf Dahrendorf
Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1997

Livro de grande oportunidade, dada a desordem e o regresso por que passa nosso país em face do sucateamento das instituições jurídico-políticas do Estado “empreendedor” brasileiro. Título que vem bem a calhar para um novo entendimento das razões inconfessáveis por que se retirou do dístico de nosso pavilhão auriverde exatamente o princípio da justiça, nos restando o progresso como fim e a ordem como base. Puro pastiche quando se sabe que sem o princípio da justiça não há nem ordem nem progresso.
O sociólogo alemão abre sua investigação sobre a anomia do estado exatamente na Alemanha do pós-guerra, destruída não só pelas sucessivas violações legais das potências aliadas como sobretudo pelas violências sociais e políticas internas que levou a cultura alemã à barbárie.
Se na Alemanha nazista é o estado totalitário que se esfacela, no Brasil democrático e delinqüente são as liberdades civis que não são mais garantidas por um estado falido e desmoralizado pelos sucessivos escândalos de corrupção. E o crime não tem recrudescido apenas no Brasil. Para Dahrendorf, é um fenômeno mundial, tendo o índice multiplicado por três na maioria dos países ocidentais. A diferença está na efetividade da execução penal.
A diferença está na igualdade de todos diante da lei. Pois todos somos iguais na nossa humanidade. Jamais na capacidade de nos singularizarmos socialmente. Todos somos iguais na condição humana, jamais no mérito de nos distinguirmos pela iniciativa. Todos somos iguais nos deveres civis, jamais no empenho e na decisão do risco que corremos e dos lucros que auferimos. Iguais diante do destino que nos reserva a todos o mesmo fim e desesperança. Somos todos iguais nas nossas absolutas diferenças, como já preceituava nosso grande Rui Barbosa.
A anomia (de nomos, do gr. lei, norma), como fenômeno de sociedade sem processo legal nem instituições que o assumam, começa quando um número elevado de violações de normas torna-se público pela mídia sem a correspondente punição exemplar. É quando parece que o crime vale a pena ser praticado e a opinião dominante é que é certo se escapar da pena. Ou seja, a chamada cultura de impunidade brasileira tem dado estatístico quando as pesquisas dos tribunais concluem que apenas 4% das denúncias de crimes têm seus processos concluídos. Se é perfeitamente compreensível que haja mudanças de entendimento de valores em algumas áreas delimitadas da ordem social e em nome de uma nova concepção de liberdades civis, como no caso do homossexualismo, da eutanásia e do aborto, isso não significa admitir uma generalização da tolerância para com delitos de outra natureza como corrupção pública e a invasão de propriedades, o que caracterizaria o perigo da anomia. Não podemos confundir evolução de costumes, revolução mesmo no domínio dos valores da cultura, com motins, revoltas e insurreições desprovidos de sentido construtivo, mas apenas destrutivo. Neste sentido, mais uma vez se impõe o velho princípio de John Stuart-Mill: no harm to others.
E a desordem promovida pelo desfuncional e ineficiente estado brasileiro não promove a liberdade, senão a licenciosidade ou permissividade. Pois a liberdade não se limita com a justiça, senão é a sua própria garantia de possibilidade.
Para o entendimento do estado brasileiro é fundamental a leitura e reflexão sobre o segundo ensaio do livro de Dahrendorf: buscando Rousseau e encontrando Hobbes. No sentido em que a construção de uma ordem social pacífica e próspera depende de se partir da concepção realista do homem como lobo do homem (Hobbes) e não idealizada, como no bom selvagem de Rousseau. Pois os conflitos são parte da natureza humana, quer sejam motivados pela competição (ou medo da morte), quer pela desconfiança ou pela glória e vaidade intrínseca ao poder, como nos ensina Dahrendorf. É o contrato social que nos garante a coexistência pacífica meio as naturais contendas.
Por fim, duas citações e um reparo: “O processo de extensão dos direitos de cidadania em resposta às lutas de classe pelos direitos sociais nos últimos dois séculos pode ser visto como uma alteração fundamental no contrato social moderno.”
“O domínio da lei, no sentido de um conjunto de direitos formais para todos e o devido processo para defendê-los, é uma das grandes aquisições da história humana, uma aquisição liberal, não no sentido partidário, mas no sentido do progresso da liberdade humana.”
Todavia, se a leitura de Ralf Dahrendorf é essencial para a compreensão da situação política brasileira, impressiona seu silêncio com relação à mídia, sobretudo pelo seu viés romântico e sua influência sobre os mais jovens, como grande causa dos perigos da anomia nas sociedades ocidentais. E também como grande possibilidade de resgate de uma urgente cultura de cidadania no Brasil.

Maiores informações veja http://www.institutoliberal.org.br/publicacoes/
Rio, 13/03/07

10 fevereiro 2007

Pro dia nascer feliz, imperdível documentário de João Jardim


Um dos mais impressionantes documentários sobre a realidade nacional. No caso, um rico, vasto e sensível painel do estado da educação no Brasil através de depoimentos emocionantes de jovens do ensino médio e de professores de três diferentes regiões brasileiras. Da menina Valéria que recitava poesias no longínquo sertão nordestino, lutando contra toda sorte de adversidade social, mas com um sentido de criação que chega a nos enrubescer. Pois, o que temos de reclamar por não realizar um projeto sem condições objetivas diante de tanta escassez de tudo? É emocionante o depoimento de Valéria que afirma que ninguém na escola acreditava que era mesmo ela que compunha seus poemas. No extremo oposto da esquizofrênica pirâmide social brasileira, o diretor colhe com admirável sensibilidade as angústias dos jovens de classe média alta dos tradicionais colégios confessionais do Rio de Janeiro e São Paulo, superexigidos por pais, professores e amigos. Um painel de recursos tecnológico-educacionais abundantes, muita expectativa de competição e muito pouco afeto.
Mas meio a estas extremidades, o diretor João Jardim nos surpreende com a realidade mundo-cão das escolas das favelas das periferias do Rio e São Paulo. Escolas dantescas largadas à incúria das autoridades públicas, dentro do tradicional quadro de irresponsabilidade política e de ausência de cidadania característico de nossa cultura de impunidade e de pastiche. Professores que fingem ensinar e alunos que fingem aprender, aqueles cativos do terror de alunos delinqüentes e estes do narco-tráfico que coabita muro-a-muro com a escola e alicia os jovens para o ilusório mundo das conquistas fáceis, alimentadas pela alienação consumista da mídia.
Os depoimentos que se seguem são de cortar o coração de qualquer cidadão que tenha um filho brasileiro em idade escolar. Os jovens favelados de menor afirmam com escárnio que não tem lá muito problema roubar alguém ou até mesmo matar se for para livrar a cara, pois o máximo que vão pegar são três anos na Febem. Além do que sai na televisão todo o dia que os políticos roubam muito mais e não são presos, o que justifica a criminalidade geral da sociedade são justamente seus políticos.
Basta ligar a televisão e está lá: o crime no Brasil compensa!
Grande e dura aula de cidadania brasileira para tomarmos ciência o quanto antes que, se a educação e as instituições jurídico-políticas estão sucateadas no Brasil, só sobra mesmo a mídia para salvar o país da barbárie. Até por que o círculo vicioso da violação legal e da violência social não interessa mais a ninguém, sobretudo aos mais abastados que falam tanto dos entraves e gargalos da economia e se omitem do dever de dar o exemplo da iniciativa e da participação política.
Trata-se pois de um documentário imperdível para os cidadãos verem e recomendarem!

http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/pro-dia-nascer-feliz/pro-dia-nascer-feliz.asp

21 janeiro 2007


O Festival de Salzburg,
Um filme dirigido por Tony Palmer

Para quem não pode se dar ao luxo de freqüentar o Festival de Salzburg, pode fazer uma viagem completa pela sua história nesses últimos 80 anos de existência, incluindo farto material de época, depoimentos e revelações inéditas de ilustres freqüentadores e responsáveis pelo sua realização, direção e produção, desde seu surgimento, passando pelo nazismo, até os dias de hoje. Sai enfim o filme sobre o mais prestigiado festival de música e ópera do mundo em DVD, dirigido pelo cineasta inglês Tony Palmer e disponível em qualquer boa locadora de vídeo.
Criado no ocaso do império austro-húngaro logo depois da primeira grande guerra, por dois expoentes da cultura austríaca deste último século, o poeta Hugo Von Hofmannsthal (libretista de grande parte das óperas de Richard Strauss) e o diretor de teatro Max Reinhardt exatamente para afirmar perante o mundo a identidade nacional da Áustria, passaram por ele as maiores estrelas mundiais da ópera e do concerto como Arturo Toscanini, Maximiliam Schell, Klaus Maria Brandauer, Wilhelm Furtwängler, Peter Sellars, Herbert von Karajan, Plácido Domingo, Fischer-Dieskau, Daniel Barenboim, Maurizio Pollini, até astros do momento como Anne-Sophie Mutter, Mitsuko Uchida, Valery Gergiev, Lang Lang, Anna Netrebko, Riccardo Muti and Simon Rattle e tantos outros fazendo depoimentos inéditos sobre suas relações com o Festival.
Não somente pela aura de ter sido o berço de nascimento do mais genial compositor da história da música, o grande Mozart, Salzburg mantém o ambiente mágico para o lançamento das grandes performances, como a primeira ópera italiana regida por Toscanini na década de 20, os lançamentos das óperas modernas a partir de Richard Strauss e toda a controvérsia sobre as performances históricas da ópera Jedermann no contexto de ascenção do nazismo. Com depoimentos e registros filmográficos de época, este documentário é imperdível inclusive para os que já tiveram a chance de assistir ao Festival de Salzburg ao vivo, pelo montante de revelações históricas que traz.


Mais informações do DVD com 195 minutos de duração:
http://www.digitalclassicsdvd.co.uk/product.asp?ProductID=940

13 janeiro 2007


Documentário Brilhante sobre o filme Diamante Bruto

Já se disse que toda arte é antes de tudo arte sobre arte. Uma experiência estética de um autor sobre outro autor. Uma resenha sentimental sobre os autores que o autor mais admira e mais lhe impressionou. O que se convencionou chamar de o caráter metalinguístico da obra de arte. Pois bem: este documentário Brilhante é o filme sobre um filme.
Em 1977, o cineasta Orlando Senna realizou Diamante Bruto, um filme que se passa em Lençóis, uma pequena cidade da Chapada Diamantina, na Bahia, que sofria com a decadência da extração de diamante, sua principal atividade econômica. Quase 30 anos depois, Conceição Senna filma Brilhante, um documentário sobre como o longa anterior foi responsável pelo progresso da cidade.
Contando com depoimentos dos moradores, o filme narra a história da cidade desde a filmagem de Diamante Bruto, até os tempos atuais, mostrando o desenvolvimento turístico da cidade obtido através da sua divulgação na produção de 1977.
O documentário foi desenvolvido através de uma oficina de roteiro realizada em Lençóis por Orlando Senna, marido de Conceição, em 2000. A diretora, que também foi atriz de Diamante Bruto, percebeu pelas conversas com moradores, que a história poderia render um belo filme, complementando o anterior. Brilhante participou de diversos festivais, entre eles o Brazilian Film Festival, de Nova York.
Vale a pena conhecer mais este recanto de nosso enorme país. País que de vez em quando parece não caber dentro da nossa capacidade de compreendê-lo e admirá-lo em toda a sua imensidão e diversidade.