Com a decisão monocrática da ministra Carmen Lúcia de suspender, em caráter cautelar, os dispositivos que previam novas regras de distribuição dos royalties do petróleo, atendendo pleito dos governos do Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo, a decisão do mérito deverá ser apreciada agora no início de abril pelo plenário do Supremo. Diante dessa “derrota” preliminar imposta pela ministra, o que fazem nossos legisladores? Quatro deputados (Júlio César/PI, Marcelo Castro/PI, Ronaldo Caiado/GO e Humberto Souto/MG) já colhem assinaturas para uma PEC que altere “na marra” os percentuais de distribuição dos royalties. Parece que não aprendem nunca. Evidentemente que tal PEC também será questionada no Supremo, dando mais munição ainda a grita generalizada contra a “judicialização da política”. Como se política fosse tarefa exclusiva de políticos profissionais e não de todos os que convivem na polis. Como se não fizessem por onde ter suas iniciativas contestadas pelo judiciário. Como no caso desta nova lei dos royalties que segue no mesmo caminho, uma vez que a CCJ, para além de comissão revisora de redação, deveria ser também, e com total independência, uma comissão de defesa efetiva dos valores e princípios que fundamentam a constitucionalidade das leis.
De embate entre poderes, esta já está sendo considerada mais uma vergonhosa trapalhada produzida pelos nossos congressistas, no que já foi chamado de “deslealdade federativa” ou mesmo “canibalismo federativo”. Não custa lembrar que, para além dos princípios da vida, da liberdade e da propriedade, o princípio da honra – sobretudo como honra a contratos - vem sendo esquecido no Brasil como um dos mais firmes pilares da cidadania e de todo o processo civilizatório do ocidente. Daí, a cláusula pétrea do inciso 36 do artigo 5º da CF: a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Ao estabelecer um novo marco regulatório, que passa por cima de contratos acordados anteriormente, nossos legisladores jogaram para o alto o princípio da honra e da legalidade - para não falar da moralidade - institucionalizando uma triste e desastrosa quebra de palavra e contrato empenhados e fazendo surgir uma desnecessária e custosa insegurança jurídica. Mais do que isso, a nova proposta de lei força os estados produtores ao não cumprimento de seus próprios compromissos contratuais atuais, posto que estes foram firmados dentro de um marco jurídico totalmente diverso. Para não imaginar a retaliação que já se imagina iniciar da forma a mais selvagem com a criação de novos encargos tributários para o setor de petróleo, na ânsia de reequilibrar as finanças públicas das fazendas estaduais atingidas.
Mais uma vez cabe uma urgente e oportuna reflexão. Esse verdadeiro vício de nossos agentes governamentais em usar a legalidade - daí a expressão alegar - para se romper com a moralidade pública é um dos traços mais espúrios de nossa cultura política, além de sobejamente conhecida causa de nossa paralisia econômica, o entrave maior, o verdadeiro gargalo de nosso desenvolvimento. Usa-se a lei como se fosse o único princípio na condução dos negócios públicos, da República mesma, como se as leis não pudessem ser corrompidas se desacompanhadas dos demais princípios como a moralidade, a impessoalidade, a eficiência e a publicidade. Temos visto e revisto estes filmes repetitivamente no melancólico festival de nossa demagogia. Usa-se a fúria legiferante para justificar a ineficiência do poder público, para prejudicar inimigos políticos, para se extorquir empresas e mesmo para paralisar iniciativas da sociedade, e sem a menor cerimônia, como se fôssemos um bando de parvos cidadãos de segunda classe.
Fica aqui, pois, a dica para pelo menos três grandes lutas da cidadania para os próximos meses: a revisão do pacto federativo, a reforma política e a luta contra a PEC da Impunidade que pode atingir mortalmente uma das maiores conquistas da Carta de 88, que foi a independência e autonomia do Ministério Público. Uma agenda que só se viabiliza com a união estratégica de organizações da sociedade civil, associações de representação de carreiras de estado e os centros de estudo, pesquisa e elaboração de políticas públicas de universidades. Para não falar na própria mídia que tem sido imprescindível na sua função maior de dar visibilidade às iniciativas da cidadania. Aliás, que tal começarmos a pensar formas e meios de implementar mecanismos que punam nossos políticos quando estes fazem a União, os estados, o Judiciário e os cidadãos pagadores de impostos perderem tempo e recursos com propostas demagógicas e flagrantemente inconstitucionais?
* Jorge Maranhão é diretor do Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão.
Email: jorge@avozdocidadao.com.br