10 setembro 2013

Agentes policiais e agentes de cidadania

Tenho lido nos últimos tempos muitas matérias e reportagens sobre a atuação das instituições de segurança pública frente às manifestações políticas em geral e a crise da política de pacificação no Rio de Janeiro, em particular. E gostaria de compartilhar com o leitor uma reflexão. Por que só se pensa em segurança pública diante de eventos de confronto das instituições policiais com os cidadãos? Seja no caso das manifestações de julho, no julgamento do Carandiru, nas repressões às invasões de propriedades, e até mesmo nas ações das unidades de pacificação que sobem às comunidades, o que a mídia de massa nos deixa visível quase sempre é a ação policial e não a do conjunto das instituições de segurança, como o ministério público, as perícias, a justiça criminal e demais entidades de monitoramento dos governos da sociedade.
 
No recente episódio do desaparecimento do pedreiro Amarildo numa ação da unidade da polícia pacificadora, a UPP, numa das maiores favelas do Rio, a Rocinha, as reportagens “acusam” os militantes de direitos humanos de precipitação ao responsabilizar a própria polícia militar do estado pelo sumiço do pedreiro. Quando sabemos que a instituição da polícia em si não mata, não pode ser objeto de processo penal, pois quem eventualmente sequestrou e matou o pedreiro foram agentes policiais a serem identificados pelas investigações. Além do que, os ativistas não se precipitam a desconfiar da instituição policial, mas apenas suspeitam, ação legitima de qualquer cidadão, uma vez que Amarildo, detido pela polícia, passou à condição de protegido do próprio Estado. 
 
A questão de fundo, portanto, é a do próprio grau de nossa cidadania, de nossa precária educação política. No imaginário social projetado pela mídia está sempre onipresente o braço pesado do Estado através de seu hiperativismo governamental. Nem me refiro aqui à imprensa sensacionalista, de cujas páginas a sabedoria popular diz que se torce sangue. Refiro-me aos próprios termos e seus sentidos utilizados nas matérias até mesmo dos jornais considerados imparciais. Não distinguimos os avisos de suspeita do cidadão, a busca de indícios e provas da ação de investigação policial, as funções de denúncia e acusação cativas do ministério público e, por fim, a sentença de culpa como ato privativo dos tribunais. 
 
A mídia brasileira de maneira geral acha que investiga, relata, denuncia, acusa e julga, isso quando não mistura tudo ou, o que é pior, limita em nosso imaginário o processo judiciário à atuação da polícia! Se a cidadania suspeita que elementos da polícia têm a ver com o desaparecimento de Amarildo, para não falar de possíveis conexões políticas na cadeia de comando da instituição, temos o dever de pressionar pela rapidez e eficiência das investigações, ao fim das quais se identificarão denunciados e acusados, jamais culpados, exatamente ao contrário das sempre precipitadas conclusões das reportagens. 
 
Não se trata apenas de trocas infelizes de verbos ou de licenças retóricas permitidas pelo ofício de escrever. Trata-se de um sintoma que revela o nosso imaginário social de fraco entendimento das funções institucionais do Estado e que, a meu ver, só pode ser superado pela qualificação de uma elite de cidadãos no próprio espaço público da mídia. Pelas manifestações de verdadeiros agentes de cidadania, cuja grande missão é exatamente a de discutir o que devam ser as melhores políticas de segurança pública, como, de resto, de direitos humanos, proteção à vida dos cidadãos e, sobretudo, as corretas atribuições do poder executivo com relação às demais funções institucionais do Estado.
 
A voz das ruas apenas grita, como é próprio do ativismo juvenil. Os cidadãos, não! Têm o dever de assumir suas responsabilidades políticas diante de outro cidadão que lhe cobra: - E você? Propõe o quê? Pois só são cidadãos aqueles que se “propõem a propor”, aqueles que se reúnem em assembleias de suas organizações, constroem consensos e partem para a defesa de suas propostas no espaço público da mídia e das redes sociais. O Brasil atravessa um momento político riquíssimo. Aquele em que os cidadãos estão percebendo que ainda não são cidadãos de fato, pois são apenas cidadãos pagadores de impostos e não cidadãos eleitores, que é a mínima contrapartida do direito mais sagrado de votar diante do dever mais básico de pagar imposto. Quando percebem a farsa demagógica das eleições em que representam o papel de eleitores bienais, mas que, uma vez eleitos, governantes e legisladores fazem o que querem com seus mandatos, servem mais aos interesses de grupos que lhes financiaram do que aos cidadãos que os elegeram. 
 
Os plenos cidadãos não são apenas os cidadãos compadecidos com a injustiça social, a traição dos políticos e a ineficiência da gestão pública. Não são cidadãos plenos aqueles em estado de solidariedade que, movidos pelo coração, se dedicam a enxugar gelo com o curto cobertor da filantropia. Assim como não são verdadeiros agentes de cidadania os cidadãos que se limitam a cumprir suas obrigações legais, cidadãos em estado de normas e legalidade, pouco se lixando com a cultura da transgressão da sociedade. Só são de fato plenos cidadãos os agentes de cidadania em estado perene de protagonismo político, que resolvem intervir no espaço público, monitorar os mandatos, orçamentos, a qualidade da gestão e das políticas públicas. 
 
E isso só pode ser feito com a mudança da cultura política vigente no país desde a colônia: a relação fisiológica e de compadrio entre governados e governantes que visa à privatização da coisa pública. A única coisa que pode mudar esta cultura nefasta é o consenso por uma reforma política exequível por verdadeiros agentes de cidadania. De forma a se pactuar a necessidade urgente de zelar a cada dia mais pela integridade da relação entre governantes e governados, através da consolidação de instituições políticas, jurídicas, de gestão e controle do Estado, mais afeitas ao perene interesse público dos próprios cidadãos eleitores do que aos dos eleitos da vez e seus cínicos financiadores.
 
Publicado no Diário do Comércio de São Paulo em 10/09/2013