Recebo o convite para o 8º Congresso GIFE – Grupo de Institutos e Fundações Empresariais dedicadas ao investimento social privado no Brasil. A proposta é colocar em discussão a capacidade transformadora do investimento social. Vale notar que, desde a sua constituição, em 1995, o Gife persegue uma distinção fundamental do investimento social privado da prática de meras ações assistencialistas, trocando o voluntarismo da filantropia pela preocupação com o planejamento e avaliação dos projetos, sua sustentabilidade, impacto social e envolvimento das comunidades beneficiadas.
Mas se consultamos com atenção o documento do último Censo Gife de 2012, a despeito da evolução contínua do montante do investimento social das empresas, que de 2,2 bilhões tem uma previsão próxima a 2,5 bilhões para este ano, vemos que pouco transformamos as próprias estratégias das iniciativas de responsabilidade social empresarial. Segundo o Censo, mais de 70% do investimento, por exemplo, contemplam programas nas áreas da educação, assistência social, formação de jovens, saúde, esportes, artes. Investimentos que poderíamos conceituar como da ordem social propriamente dita. E não da ordem política, que seria a de cobrar pela eficiência dos investimentos públicos nestes mesmos setores, que, de resto, são obrigações do estado.
Os demais 30% investidos nas áreas de direitos humanos, geração de renda, meio ambiente, apoio à gestão etc, que poderíamos conceituar como da ordem dos direitos difusos ou da legalidade, seguem a mesma lógica. Se pensamos em termos mais abrangentes, todavia, veremos que não evoluímos de uma responsabilidade social para uma responsabilidade política empresarial, o que chamo de uma cidadania corporativa propriamente dita.
E que penso ser a grande demanda do Brasil contemporâneo. Pelo menos, se interpretamos de maneira correta os acontecimentos destes últimos meses: jornadas de junho, manifestações crescentes contra a corrupção dos governos e ineficiência das instituições de controle da gestão pública, e que resultaram agora neste novo fenômeno de busca de identidade social dos jovens rolezeiros.
Se evoluímos de uma cidadania de solidariedade para uma cidadania de legalidade, isso não significa que atingimos a síntese da cidadania de moralidade pública, onde obrigatoriamente se concretizam em conduta social as nossas crenças de ordem moral.
Quando o próprio linguajar dos jovens rolezeiros sapeca um “na moral” a cada interlocução. O debate público sobre a vida política do país segue torto sobre o que é a legalidade. Uma vez que nossa legalidade é provida de um excesso de leis espúrias e desprovida de cumprimento, sanções e consequência política, sem fundamento na moralidade pública e nos princípios e valores da tradição humanista.
A moralidade é reduzida a condutas sociais de grupos segmentados, atributos próprios a religiosos e militares pelo seu apego à ordem e à disciplina, ou ao sarro de entidades dedicadas à cultura de folclore regional. O que podemos entender como o terceiro grau da cidadania, para além da solidariedade e legalidade, é um dever (moral) de todos os cidadãos, e não sonsas e demagógicas titulações de direitos sociais generalizados.
A legalidade, sozinha, sem estar baseada na moralidade pública e sem ter como fim a melhoria da “polis”, do coletivo e não do singular, torna o debate totalmente corrompido. Hoje, lidamos com valores corrompidos e ideias mal colocadas. O que resulta que a legalidade de per si vira panaceia que frustra e não dá conta destes últimos fenômenos políticos tonitroados pela grande mídia. Essa é a verdadeira questão, para além do quebra-quebra ou da justa reivindicação dos jovens que, no fundo, querem ter sua existência política reconhecida e carrear sua energia para a participação na construção de políticas públicas e no melhor uso dos orçamentos e das instituições.
É preciso superar o falso dilema da legalidade versus transgressão para o resgate dos valores morais sobre os quais construímos a civilidade. Ela é muito mais ampla que isso e as próprias instituições devem ser reinventadas para dar conta de lidar com a energia política e a demanda moral dos jovens. Pois se nossos lamentáveis governantes não estão dando conta de responder com eficiência as vozes das ruas, urge que venha à cena política as elites que têm condições intelectuais e econômicas de propor alternativas de políticas públicas para a maior qualificação do debate público e da representação política.
E em que áreas devem atuar nossas elites? Quais os setores que têm poder de ampliar as vozes dos cidadãos para além das vozes das ruas? Diante da ineficiência do estado, naquilo que é sua missão indelegável e estendida para a sua tresloucada ação empresarial, temos de enfrentar a responsabilidade política de reinventar, sobretudo, as instituições transmissoras de valores como a educação, a justiça, a mídia e o próprio setor empresarial. Destes setores, é a educação sem dúvida a que melhor teria condições de disseminar os corretos valores da legalidade e da moralidade pública. Mas, num país em que a educação é fraca, a justiça falha e a mídia não assume a sua primordial função de conscientizar e mobilizar, contamos apenas com o setor empresarial para “turbinar” a disseminação dos deveres da cidadania por toda a sociedade. E na medida em que a empresa observe estrategicamente o princípio da subsidiariedade, para não brincar de empreender educação enquanto transmissão de conhecimento quando deveria investir na educação enquanto sistema de transmissão de valores.
Se queremos realmente impacto das iniciativas de responsabilidade social empresarial, temos de enfrentar a nossa responsabilidade política que é o real sentido da expressão “cidadania corporativa”. E dedicarmos espaço da comunicação corporativa de nossas empresas para divulgação dos corretos conceitos da cidadania, superando nosso histórico jesuitismo, para resgatar os valores da moralidade pública, tão corrompidos pelo nosso complexo de vira-lata.
Neste sentido, é imperioso o investimento nas organizações da sociedade civil dedicadas ao controle social dos mandatos políticos, ao monitoramento dos compromissos de campanhas, à fiscalização da execução dos orçamentos e da conduta dos agentes públicos e das instituições. Este seria realmente o foco transformador para o investimento social de impacto de uma verdadeira elite empresarial. Para que cesse de vez o ceticismo e cinismo dos que menosprezam o povo no lugar de dignificá-lo. Para que recuperemos o mínimo de nossa tão abalada auto-estima e nos reconheçamos enquanto agentes de cidadania, que para além da consciência de que é dever de todos cuidar do bem coletivo, nos obriguemos a atuar no espaço público para incentivar outros cidadãos a fazerem o mesmo.
* Jorge Maranhão é diretor do Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão. Email: jorge@avozdocidadao.com.br