22 outubro 2008

Uma luz na escuridão


De Rodrigo Constantino
Soler Editora, Belo Horizonte, 2008

Vasto panorama do pensamento humano sobre a liberdade, o liberalismo e a racionalidade econômica desde os autores fundadores do iluminismo inglês e escocês até os dos dias de hoje. Embora falte alguns na coletânea de resenhas como La Boétie, Montesquieu e o próprio Kant. E nunca seja demais lembrar que os valores universais da liberdade, da vida e da propriedade tem na legalidade o cimento que os une e os fazem tão interdependentes. Pois não se poderia jamais conceber a garantia da vida e da liberdade sem a justiça que garante todos os contratos, a propriedade entre eles.

Alguns desses aspectos, inclusive, lembrados pelo prefácio de Roberto Fendt ao elogiar a coletânea de Rodrigo Constantino, um jovem pensador brasileiro que nos recobra a esperança de continuidade de uma linha fértil mas reduzida de pensadores brasileiros como Meira Penna, Roberto Campos, José Guilherme Merquior, Eduardo Giannetti, entre outros. Entre as 75 resenhas, destacaríamos a de John Milton, Bernard Mandeville, Thomas Paine, Humboldt, Benjamin Constant, Frédéric Bastiat, Alexis de Tocqueville, Stuart Mill, Henry Thoreau, Herbert Spencer, Lord Acton, Böhm-Bawerk, Oppenheimer, Von Mises, Hayek e Ayn Rand. As demais, como Constantino mesmo nos diz são uma pequena mostra das principais idéias para nos levar a um contato direto com as obras originais dos autores. O que nos pareceu faltante foi uma pequena introdução sobre o contexto histórico e filosófico de cada autor.

Mas trata-se de um esforço sem igual dar à luz esta coletânea, em que pese um maior rigor de revisão no texto e inclusão do contexto histórico-filosófico que temos certeza Rodrigo ainda terá muito tempo para nos presentear.

Conheça mais em http://www.solereditora.com.br/site

http://rodrigoconstantino.blogspot.com

18 setembro 2008

As origens do pensamento grego


Jean-Pierre Vernant Difel, Rio de Janeiro, 1977

O autor foi o maior helenista vivo desde o pós-guerra até o ano passado quando morreu aos 93 anos. Este livro é um dos primeiros de uma vasta produção de mais de duas dezenas de obras inteiramente dedicadas ao pensamento da antiga Grécia. Desde então, e em Entre Mito e Política, publicado em 1996, Vernant dá uma interpretação inteiramente original sobre as relações entre o pensamento político grego e as ciências físicas e a geometria.

Se na fase mitológica da civilização helênica, a sociedade ainda estava organizada por tribos de agricultores e pastores em torno de um basileu (rei) quase sempre déspota, e é representada pelas narrativas em forma de poemas épicos de Homero e Hesíodo, com o advento da filosofia, sobretudo a partir da escola dos sofistas, com Sócrates e , depois, com Platão e Aristóteles, que o conhecimento vai proporcionar a organização social da polis, que se compõe sobretudo de mercadores e prestadores de serviço.

Conceitos fundamentais da filosofia política, e que vão permitir a titulação do cidadão diante da lei e a participação do poder dos governantes, como arché (origem, comando), kratos (poder), ágora (assembléia, Estado), isotes (isonomia), sophrosyne (eqüidade, equilíbrio, bom-senso), aphrosyne (desequilíbrio, loucura), dike (justiça, igualdade), demos (povo aldeão) são criados e eternizados pelo pensamento político grego até os dias de hoje. E, além das mudanças nos modos de produção de agrário-metalúrgico para mercantil-financeiro, a palavra escrita e tornada pública na praça, ao contrário da tradição oral dos tempos homéricos, se torna a condição de possibilidade da democracia e da própria lei. Pois a arte da política é essencialmente a arte da persuasão, o exercício da linguagem, a retórica, enfim.
O lugar urbano da ágora se torna o centro da cidade, pois eqüidistante dos extremos e não mais um topo de colina onde se localizavam os templos da era mitológica. Eqüidistante dos extremos, inclusive das idéias de todos os cidadãos que são, por definição, es meson, centrais e iguais.

10 julho 2008

Filosofia política, de Philippe Corcuff Europa-América, Mem Martins, Portugal, 2003


Importante contribuição ao debate sobre a situação e os limites da filosofia política neste novo século do professor da Universidade de Lyon. Logo na introdução o autor nos apresenta uma questão instigante: se, segundo a tradição filosófica mais remota do Ocidente, pensamos através de pares de oposições, como recursos conceituais e ao mesmo tempo limites do próprio pensamento, como idealismo/materialismo, subjetivo/objetivo, individual/coletivo, pensamos de maneira efetivamente crítica ou somos na verdade pensados por uma ideologia dominante de uma determinada época histórica? E o autor acrescenta três outros pares de oposições conceituais mais contemporâneos: a essência/aparência, o um/múltiplo e o mesmo/outro (ou identidade/diferença). Basta esta reflexão para nos conduzir à reflexão sobre toda a tradição do pensamento ocidental baseada nos pares de oposição da razão/emoção e, no campo da arte e cultura, na oposição entre os estilos barroco e clássico propostas por Jakob Burckhardt e Heinrich Wolfflin desde o século XIX.

Na primeira parte, o autor faz um levantamento abrangente dos pensadores clássicos, dos gregos à Renascença, passando pelos liberais, iluministas e economistas. Em Kant, por exemplo, extrai o máximo de um pensador desinteressado pela filosofia política, quando este idealiza a melhor organização política da sociedade que equilibra os valores da liberdade, da lei e do poder. A anarquia seria a lei e a liberdade sem o poder; o despotismo, a lei e o poder sem a liberdade; a barbárie, o poder sem a liberdade nem a lei; e a república, o ideal do poder com a liberdade e a lei. Na segunda parte, retoma o inventário em face de dois dos principais conceitos da filosofia política, qual seja o da dominação e da justiça. Recupera de Aristóteles a sua noção de eqüidade como forma superior da igualdade e da justiça, no sentido de que ela constitui uma correção do caráter geral e uniforme da lei na sua aplicação concreta sobre a conduta de um cidadão real. É a chamada “circunstâncias atenuantes” do ato julgado. O que terá inspirado o filósofo contemporâneo americano John Rawls (1921 – 2002) em sua obra Teoria da Justiça, de 1971. Segundo ela, dois princípios devem ser observados: as liberdades e os direitos de base iguais para todos não podem ser sacrificados na procura de uma maior justiça social e a igualdade de oportunidades não pode ser sacrificada ao melhoramento das condições de vida dos mais desfavorecidos.

A tal ponto que, mesmo na França, o ensaísta Alain Minc, redator final do plano A França no ano 2000, recomendava ao primeiro-ministro Edouard Ballandur que substituísse o valor da igualdade pelo da eqüidade na legenda oficial da república.

Já outro filósofo do liberalismo político norte-americano, Michael Walzer (1935), professor de Princeton e editor da revista Dissent, ficou conhecido como defensor do princípio da guerra justa e se inclui numa posição ideológica chamada de liberalismo comunitarista. Em seu livro Esferas da Justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade, de 1983, analisa como a sociedade distribui não só a riqueza e o poder, mas outros "bens" sociais, como reconhecimento, educação, trabalho, proteção social, lazer e até amor de forma desigual e como estes “bens” não devem servir como meio de dominação política, numa nova e criativa teoria da igualdade. Neste sentido defende uma intervenção mais sustentada do Estado a favor da justiça social, contra a pobreza e pela igualdade complexa, sobretudo nos domínios do emprego, da proteção social e da educação básica, contrastando com as posições dos libertarians e se identificando com um social-liberalismo.
Hans Jonas, 1903 – 1993, filósofo de origem alemã, vai defender uma ética ecológica, em seu livro O princípio de responsabilidade: uma ética para a civilização tecnológica, 1990, onde as gerações atuais têm responsabilidade pelos direitos à vida e à segurança ambiental das gerações futuras. O novo imperativo moral, derivado de Kant, deve se formular positivamente: age de modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana na terra. Ou mesmo negativamente: age de modo que os efeitos de tua ação não destruam a possibilidade de vida futura na terra.

Hanna Arendt (1906 – 1975), filósofa judia alemã emigrada nos EUA, dedica sua obra à reflexão da natureza da democracia política e das origens do totalitarismo (1951), quando o identifica com três ocorrências políticas: o isolamento dos indivíduos da livre convivência social; o terror objetivo e subjetivo, ou exterior, via os aparelhos repressivos do Estado, e interior, via ideologia dogmática; e a dominação do indivíduo, via a abolição da distinção público/privado.

Concluindo, Philippe Corcuff propõe como agenda deste século XXI a reinvenção crítica do Estado-providência, o Estado da segurança social que se estabilizou no decorrer do século XX, o que pode ser associado ao advento da social-democracia. Todavia, sempre posto em causa pela crítica social-liberal sobretudo da burocratização de suas instituições que tendem a cercear as iniciativas de empresas e cidadãos.
Vale a pena conferir.

Jorge Maranhão

26 março 2008

O SÉCULO XIX

A visão da história do século XIX do recém falecido prof. René Rémond, que compreende o período entre o Tratado de Viena de 1815 até a primeira guerra mundial de 1914, só poderia ser mesmo de um francês, ou eurocêntrica, como ele próprio vai concluir no final do livro, quando define como europeizantes, enfim, todas as visões de mundo deste último século. Mas de modo algum esta visão compromete a lúcida abordagem do emérito professor da Universidade de Nanterre. Ignorando a tradição política inglesa da relação do cidadão com os impostos cobrados pelas monarquias, da Carta Magna do século XIII à Revolução Gloriosa de 1688, Rémond destaca a principal mudança da ordem monárquica francesa até 1789 para o início do século XIX que, sem dúvida alguma, é a demanda por consentimento para a cobrança do imposto através da exigência de uma ordem constitucional (rules of law da tradição inglesa).
Nesta perspectiva separa o século em quatro grandes influências doutrinárias: a ascensão do liberalismo no primeiro quarto do século, seguido da ascensão da democracia de massas, dos socialismos e nacionalismos.
É de se frisar, todavia, que todas estas doutrinas políticas respondem a uma mesma visão de mundo romântica que vigora do final do século XVIII até o século XX. E o professor contesta que o liberalismo, por exemplo, pode ser reduzido à expressão dos interesses de classe da burguesia, como vão martelar os socialistas e nacionalistas daí por diante.
Se os regimes das monarquias absolutistas intitulavam do direito político-eleitoral apenas os nascidos da nobreza, a Monarquia de Julho, depois da Restauração de 1830, incluirá os capacitados pelos títulos do conhecimento, da propriedade e da renda a partir de 200 francos, denunciando a demagogia republicana do sufrágio universal que prevalecerá a partir de sua queda pelas barricadas da Segunda República de 1848. Deste apogeu ao declínio do liberalismo francês, passaremos a identificar a própria república com as sucessivas lutas da democracia e dos socialismos, onde imperará o princípio de cada cidadão, um voto. Pois o fato de distinguir duas categorias de cidadãos, entre nobre da Câmara Alta e os plebeus da Câmara Baixa, é perfeitamente natural para o liberalismo que não compactua com a hipocrisia e a demagogia. François Guizot, um ministro da Monarquia de Julho, chegará a aconselhar: - enriquecei-vos os que querem participar do processo político! Ou seja: o reconhecimento da igualdade de todos diante da lei, da justiça e dos impostos, não exclui as diferenças sociais, de fortuna e de cultura!
Das garantias civis e políticas, através dos direitos de sucessão e do ensino fundamental, todos terão igualdade de oportunidades. Ultrapassando-se esta realidade a partir da metade do século XIX, as repúblicas instauradas caem no perigo de ver a democracia se tornar demagogia. Mas desde 1820-1830, os Estados Unidos estão experimentando a transição do sufrágio censitário para o sufrágio universal. Com a posse do General Jackson em 1828 pelo voto universal, excluídos menores, escravos, mulheres e iletrados, os Estados Unidos se consagram como regime essencialmente liberal. A segunda experiência é a francesa que, em 1848, abole a escravidão e adota o sufrágio universal, deixando o destino político do país nas mãos dos demagogos, quando, para um liberal-democrata o direito do voto só deve ser estendido àqueles com condições de independência para exercê-lo. Mas os democratas insistirão na tese de que mesmo a igualdade política diante da lei só se atinge pela igualdade de oportunidades, com o fim de diminuir as desigualdades de nascimento e de fortuna.
Todavia, é o próprio desenvolvimento capitalista das tecnologias que irá garantir o direito de acesso à informação. Desde o início do século XIX, é a venda de publicidade que derruba os preços das assinaturas dos jornais diários que, até então, eram objeto até mesmo de assinatura coletiva. Assim acontece também com várias outras conquistas de cidadania como bicamerismo com limitação de poder das câmaras altas, maior acesso às câmaras baixas, sufrágio universal com inclusão das mulheres, candidaturas universais, maior acesso ao ensino público fundamental, adoção de concurso público para as carreiras de Estado, maior acesso à carreira militar, maior acesso ao crédito bancário, justiça gratuita, saúde pública preventiva, partidos políticos instituídos, imposto progressivo sobre mercadorias e rendas etc.
No final do século XIX, o Estado exerce numa escala crescente o mecenato dos antigos príncipes renascentistas e passa, por conseguinte, a se tornar objeto da luta política concreta dos socialistas, justificando, inclusive, a ascensão do anarco-sindicalismo de Bakunin, que objetiva não apenas a abolição da propriedade preconizada por Proudhon, como a substituição do Estado por uma confederação de sindicatos, além da abolição do exército, da religião, da polícia e dos tribunais, radicalizando por assim dizer a crítica liberal do Estado. Cabe aqui uma citação do próprio René Rémond de que o melhor governo é sempre aquele que não se faz sentir, que se faz esquecer!
Na luta anarquista, o argumento da propaganda é substituído pela criação do fato político, enquanto atentado, como no caso do assassinato do arque-duque Francisco Ferdinando, estopim da primeira guerra mundial. A partir do século das revoluções, a ênfase dos nacionalismos será contrapontuada pela ênfase do internacionalismo socialista: a Primeira Internacional é fundada na cosmopolita e industrial Londres de 1864 é contemporânea de um ucasse imperial abolindo a servidão na Rússia czarista, campesina e feudal de 1861 como o decretado pelo iluminista e reformador Alexandre II. No entanto, é na Rússia que se fará uma revolução comunista em 1917 sem ter adotado o sufrágio universal que impediria o despotismo e a corrupção da nomenclatura soviética. É uma revolução cultural que determina as mudanças políticas e não apenas as condições históricas. A substituição do ambiente rural pelo urbano para a propagação das novas idéias políticas corresponde à supremacia do valor da segurança pelo valor da liberdade e, neste aspecto, se trata de uma revolução eminentemente cultural.
Seja como for, o que René Rémond quer destacar é a importância fundamental da vigência do romantismo como visão de mundo e sistema de valores sobredeterminante dos eventos políticos. Como no caso da ênfase no nacionalismo que foi a maior contradição do liberalismo, uma vez que implica no fortalecimento dos Estados nacionais. Enquanto foi uma grande arma nas mãos do socialismo internacional que os tornava apenas seções nacionais da Internacional Socialista.

29 janeiro 2008

História das idéias políticas

História das idéias políticas, de François Châtelet, Olivier Duhamel e Evelyne Pisier-Kouchner, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1985
Embora escrito no início dos anos 80, antes da queda do muro de Berlim, os conceitos da filosofia política clássica permanecem consistentes neste grande compêndio dos autores franceses. Sobretudo quando caracteriza a história das idéias políticas a partir de suas várias teorias do Estado, como os estados teocráticos da antiguidade, o estado dos principados da Renascença, o Estado-nação dos nacionalismos românticos iluministas, o Estado-sociedade dos socialistas utópicos, o Estado-partido dos comunistas etc, até mesmo o Estado colocado em questão a partir das rebeliões e contraculturas dos anos 60.É de se destacar que o confronto entre estados despóticos ou tiranos e estados democráticos, que seriam melhor chamados de nomocráticos (nomos = lei, governo da lei) sempre existiu, mesmo que em teocracias pré-helênicas.
Portanto, de saída constatamos que a luta da cidadania contra os governantes precede mesmo a constituição da pólis grega. Com o advento do Império Romano, vemos se constituir o principal atributo do imperador que é a auctoritas, a qualidade moral que lhe permite julgar o que é mais conveniente para o bem público. Se na Renascença temos de um lado Lutero rompendo com a autoridade política do Pontífice romano (1517), temos de outro lado Maquiavel teorizando sobre a correta conduta do Príncipe (1513) para manter seu poder no principado, resumido na máxima de que os fins justificam os meios.
Mais adiante, ainda no século XVI, teremos também um Étienne de La Boétie com seu célebre Discurso da servidão voluntária (1549), onde questiona pela primeira vez que a fonte de poder dos governantes, na verdade, provém do consentimento dos cidadãos, o que o torna, por natureza, limitado. Se poder é uma capacidade de agir e produzir efeitos na sociedade, a autoridade é o poder político instituído e controlado por esta mesma comunidade. Se Thomas Hobbes (no início do século XVII e antes da revolução gloriosa inglesa de 1688) nos adverte para a necessidade de um Leviatã para proteger e proporcionar segurança aos cidadãos, John Locke, já no final do século XVII, em 1690 escreve o Segundo tratado do governo civil, onde vai priorizar a soberania dos próprios cidadãos como poder legislativo sobre a própria autoridade dos governantes. Neste instante é que se recupera na modernidade a correspondência entre o princípio da propriedade e o direito político de participação na gestão dos negócios públicos originária da pólis grega. Com o Bill of Rights (1690) a Inglaterra constitui o valor da propriedade privada da terra, e dos utensílios de trabalho, como direito individual de apropriação do produto do trabalho humano, e limita a ação dos reis e de seus direitos naturais e divinos ao próprio império das leis emanadas dos cidadãos. O que dará margem a Montesquieu no século XVIII construir a teoria da separação dos poderes: “a corrupção dos governos começa quase sempre pela corrupção dos próprios princípios”, citando o próprio quando se refere, por exemplo, à honra como princípio de respeito indiscutível às leis e aos contratos, e nobre atributo de alguns aristocratas e não forçosamente de toda a nobreza.
Portanto, a missão ontológica dos governos é a garantia dos direitos dos cidadãos a uma ordem legal (o poder legislativo delibera, o poder judiciário julga e o executivo executa leis e sentenças), garantia da vida, da segurança, de suas propriedades e contratos, para que os cidadãos circulem livremente e seus bens também circulem como mercadorias que produzirão a riqueza de toda a sociedade. O que torna “a mão invisível” da economia de Adam Smith não tão invisível assim, pois presente através do império da lei. E se a França vai constituir a República baseada nos princípios romântico-idealistas da liberdade (sem o limite da lei), da fraternidade e igualdade (restritas à obediência da lei), acaba por desencadear um processo político capaz de comprometer os valores universais da tradição humanista como a vida, a segurança, a legalidade, a propriedade e a própria liberdade de controlar os governos.
É um político irlandês, o aristocrata Edmund Burke (1729 – 1797), defensor da liberdade religiosa dos católicos e da independência americana que, em suas Reflexões sobre a revolução francesa (1790), fará a crítica da razão como único instrumento de elaboração das leis, e não os costumes e tradições culturais e sociais. Se o povo inglês é livre do terror dos governantes, é porque aprendeu no curso da história a construir instituições diversificadas que garantem liberdades concretas de se associar, empreender e se apropriar do produto de seu trabalho, ao invés de reivindicar uma liberdade geral baseada apenas em princípios idealistas. Tratava-se na verdade da primeira crítica ao idealismo romântico de Rousseau do contrato social pois a vontade geral pode sacrificar legítimos direitos de minorias. Somente no século XIX, um pensador liberal francês, Benjamin Constant (1767 – 1830), em sua obra Princípios de Política (1815) afirmará: “defendi durante quarenta anos o mesmo princípio: a liberdade na religião, na literatura, na filosofia, na indústria, na política; e, por liberdade entendo o triunfo da individualidade, tanto sobre a autoridade de quem pretendesse governar pelo despotismo, quanto sobre as massas que reclamassem o direito de subjugar a minoria.” Constant dá forma concreta ao valor da liberdade, que é a de que tudo é permitido desde que não proibido por força da lei, inclusive se empreender e dispor de sobre suas propriedades, mesmo que abusando das mesmas; enfim, legitimando pela propriedade pagadora de impostos o direito de cada cidadão de influir na administração pública e nos atos de poder dos governos.
Alexis de Tocqueville (1805 – 1859) escreve na mesma época A democracia na América (1835) e defende a necessidade de os governantes desenvolverem um poder judiciário forte e independente, que possa garantir efetivamente a controvérsia democrática, as associações civis e a constituição de uma administração pública eficiente e centralizada: “é no município que reside a força dos povos livres; as instituições dos governos municipais são para a liberdade o que as escolas primárias são para a ciência. Sem instituições municipais fortes e independentes uma nação pode ter um governo livre, mas não possui de fato o espírito da liberdade. E afirmo: para combater os males que o igualitarismo pretende produzir há apenas um remédio eficaz, que é a própria liberdade política do cidadão.” Tocqueville estava contraditando a utopia dos proto-socialistas como Saint-Simon (1760 – 1825) que, no Catecismo dos industriais (1823), pretende eliminar a mediação dos políticos, sejam aristocratas ou cidadãos comuns, da administração racional e positiva dos negócios públicos. Auguste Comte (1798 – 1857), defensor ardoroso do progresso da Humanidade através da ciência, radicalizará a proposta de uma hierarquia das competências, onde os sábios produzem os conhecimentos sobre a natureza física e social, os publicistas a difundem em planos de ação, os governantes a executam e o povo obedece, para seu maior proveito. O percurso para se chegar ao bem da humanidade é a pátria que ensina a solidariedade e a família que transmite os princípios morais. A sua filosofia da história determina que só se alcança a era positiva dos valores da humanidade quando se supera a era teológica, onde se elocubra a partir dos desígnios dos deuses, e a era metafísica, onde se elocubra sobre razões transcendentais. A construção de seu sistema positivista, que culmina com a contradição da instituição da religião da humanidade, de certa forma vai na mesma direção da construção de outros grandes sistemas políticos de interpretação da história, como por exemplo, quase na mesma época, o de Karl Marx (1818 – 1883), tributário e questionador das três grandes fontes do pensamento político europeu: a filosofia iluminista alemã de Kant e Hegel, a economia política inglesa de Adam Smith e David Ricardo, e o socialismo francês de Fourier, Saint-Simon e Proudhon.
Executor testamentário de Engels, fundador da social-democracia alemã, o político e pensador alemão Eduard Bernstein (1850 – 1932), nos Pressupostos do socialismo (1899) elabora a crítica humanista e política do marxismo quando recusa assimilar a democracia à dominação da classe burguesa e a inevitabilidade do socialismo. Para ele, a democracia é a própria ausência da dominação de classe, um estado social onde nenhuma classe pode deter privilégio em face da comunidade, onde se pode superar a dominação de classe, mesmo que não se suprimam as próprias classes sociais. A exigência, portanto, de uma ordem legal, na democracia, precede historicamente a própria afluência da burguesia e é a garantia fundamental do Estado democrático de direito. Outro pensador que fará contraponto a Karl Marx é Max Weber (1864 – 1920): Se Marx explica a história pela determinação econômica em última instância, Weber vai contrapor com a determinação ideológica e religiosa. Quando a limitação do consumo é combinada com a liberação das atividades de busca de riqueza, o resultado prático inevitável é o acúmulo de capital mediante a compulsão ascética para a poupança, pois as restrições impostas ao gasto de dinheiro servirão naturalmente para aumentá-lo, possibilitando o reinvestimento produtivo do capital.
Por outro lado, a imobilização de capital na compra de terras, por exemplo, é dispensável na medida mesma da honra da palavra empenhada e da força e da firmeza dos contratos de arrendamento mercantil, próprios do ascetismo laico protestante.
Pelo lado do capitalismo, em plena crise da grande depressão americana, John Maynard Keynes (1883 – 1946), economista inglês criador da macroeconomia, decreta o fim do laissez-faire clássico, patrocinando a política de intervenção do Estado na economia, visando, nem que seja temporariamente, a retomada do crescimento da produção, o aumento da renda nacional e o volume de emprego. Keynes se torna o grande fiador do New Deal de Roosevelt, dos programas de assistência social aos trabalhadores como o Social Relief e a profusão de agências federais reguladoras dos mercados. Hayek resgata o valor universal da legalidade e da justiça através da desmistificação esquerdista do valor da igualdade, afirmando a posição liberal clássica da negação de todo privilégio concedido pelo Estado que não a igualdade perante a lei e as condições de oportunidade de ascensão social.
Friedrich Hayek (1899 – 1992), pensador da Escola Austríaca, vai procurar resgatar durante toda a sua vida o sentido histórico do liberalismo clássico inglês do século XVII contra a tempestade romântica e utópica de todos as correntes socialistas que dominaram corações e mentes a partir do século XVIII. Hayek desmonta a “inevitabilidade” da planificação centralizada no Estado na medida em que a mesma interfere na livre formação dos preços nos mercados, condição fundamental para a própria racionalidade do planejamento econômico. Norberto Bobbio (1909 – 2004) é um dos grandes arautos do fim das ideologias no âmbito dos países mais desenvolvidos, quando grandes conquistas até então ditas socialistas são incorporadas às grandes economias de mercado européias e americana, como universalização da previdência, monopólio do Estado na emissão da moeda, controle do comércio exterior, compensações à desigualdade de renda, livre negociação sindical, tributação progressiva etc. Todavia, adverte a cidadania para a condução dos negócios do Estado: o que torna moralmente ilícita toda forma de corrupção política é a presunção de que o homem político que se deixa corromper coloca o interesse individual à frente do interesse coletivo, o bem próprio à frente do bem comum. E assim fazendo falta ao dever de quem se dedica ao exercício da atividade política. Milton Friedmann (1912 – 2006), discípulo de Hayek e expoente da Escola de Chicago, retoma a crítica de que as crises econômicas do século XX não são produto de excessos do capitalismo mas, pelo contrário, dos excessos de políticas intervencionistas e contesta os benefícios do Estado-Previdência moderno e as políticas de planned society defendida por Keynes. Refuta a legislação de proteção social do Estado como meio de diminuição da exploração que, na verdade, só pode ser combatida pelo livre mercado. Discussão que funda nos dias atuais o questionamento do próprio Estado enquanto instrumento da cidadania. Com a queda do muro de Berlim, o fim da guerra fria, cai também a dualidade entre as propostas socialistas e as liberais, aumentando a importância do terceiro setor para a mediação entre as atribuições indelegáveis do Estado e das empresas. Assim como perdura na atualidade a discussão sobre a crise da representação política e do papel da cidadania.

30 dezembro 2007

Hairspray

Cinema e cidadania

Fui ao cinema da sessão da tarde ver um filme de adolescentes para esfriar a cabeça: Hairspray. Mais um musical de sucesso da Broadway levado pela telona aos quatro cantos do mundo e em grande estilo. A história se passa nos anos sessenta, em Baltimore, no apogeu da luta contra o apartheid da sociedade americana. E o que mais me impressionou, para além do filme em si, foram as manifestações da platéia de adolescentes. Mais do que uma platéia de cinema, parecia o próprio auditório do “The Cornie Collins Show”. Adolescentes, na sua grande maioria meninas da mesma faixa etária da principal protagonista do filme, de quinze a dezoito anos, celulares a postos, óculos de grau, aparelhos ortodônticos na boca gritando lindo, lindo! para o galã Link Larkin com seu inigualável topete. A produção é esmerada, tanto na direção de arte que resgata em planos generosamente abertos todos os detalhes da década de sessenta numa cidade de interior americana, quanto na magistral trilha musical que levava as meninas a se levantarem para dançar em pleno cinema. O diretor e coreógrafo Adam Shankman, já indicado cinco vezes ao Oscar, constrói uma trama que é um primor do american way of life: uma adolescente gordinha chamada Tracy adora um programa de auditório da televisão local de Baltimore que, através de um concurso de dança, escolhe a Miss Teenage Hairspray do ano. Só que no programa não entram dançarinos negros, enquanto que na escola pública, Tracy tem grandes amigos dançarinos negros, até que uma seqüência de eventos a envolve numa passeata contra a discriminação racial em direção aos estúdios da televisão. Aqui vale atentar para o detalhe de dirigirem exatamente para a mídia a denúncia de um delito contra a ordem legal, para além da exposição de várias outras contradições sobre os bastidores do programa de maior audiência da TV de Baltimore e as tramas entre a diretora do programa, sua filha candidata a coroa de Miss, o dono da empresa de laquê que patrocina o programa e as relações entre os demais participantes. Vale atentar sobretudo na maneira como a sociedade civil americana usa a mídia para consolidar nas mentes e corações, principalmente dos mais jovens, os valores universais e perenes da democracia: o direito à busca da felicidade, a livre expressão da opinião, a fé na recompensa pelo esforço do talento individual, a igualdade perante a lei e a fé inabalável na ação coletiva e na justiça. Sempre com a exigência de tratamento entre cidadãos adultos, emancipados e independentes e não os coitadinhos de nossa tradição demagoga. Desde as campanhas da reconstrução da América a partir da grande depressão dos anos trinta – que precedem a própria mídia de massa - nunca mais a sociedade americana interrompeu sua missão de reproduzir os valores universais do legado humanista, não apenas nos sistemas clássicos de produção simbólica, como a educação e a justiça, mas sobretudo na mídia de entretenimento como o teatro musical, as revistas em quadrinhos, os programas de auditório e o próprio cinema. Assim é que ganha especial especial sentido para o cidadão comum americano, não apenas a clássica legenda do “crime doesn´t pay” mas, no caso deste Hairspray, o “Go for it! ´cause you´ve got to think big to be big! com que o pai de Tracy a incentiva a perseguir seu sonho. Não se trata apenas do combate a toda gama de preconceitos contra os diferentes, sejam negros ou gordinhos. Trata-se de não confundir a plena democracia da igualdade civil e política, diante do império da lei, com a mistificação da demagogia da igualdade social provida pelo mistificador de plantão.
Numa América Latina que oscila entre a consolidação da democracia e a recidiva da demagogia, cabe sem dúvida nenhuma ao Brasil, que detém o mais competente empresariado continental e o mais competente grupo de mídia da região, assumir sem hesitação sua responsabilidade política na reprodução dos valores universais da democracia. E talvez resida exatamente aí a emoção daquelas meninas brasileiras diante do espetáculo de Hairspray!

05 dezembro 2007

Jogo de cena



Fui ver Jogo de cena, o novo filme do mestre Eduardo Coutinho, diretor de outras obras-primas como Cabra marcado pra morrer e Edifício Master. Lançado em novembro, o filme/documentário mostra de maneira clara como funciona o atributo maior da grande arte de fundir realidade e fantasia, verdade e simulação, através de depoimentos reais de várias mulheres e a representação desses mesmos depoimentos por atrizes célebres como Andréia Beltrão, Marília Pera e Fernanda Torres.
Mas a cena-chave do filme é a de um depoimento de uma mãe que tem o filho assassinado e que é interpretado por uma atriz desconhecida. A sucessão das narrativas absolutamente iguais, de uma mãe que resolvera abrir sua dor diante das câmaras, nos leva a nos sentir quase que traídos por não sabermos distinguir qual o verdadeiro e o falso entre os dois pungentes relatos. Qual seria a autora real da narrativa e qual seria a intérprete? Os dois registros de uma depoente real e sua desconhecida intérprete, trabalhados pelo diretor-entrevistador, nos tira do sério, mobiliza, e nos expõe à trama infernal da grande arte enquanto dimensão supra-real. Vejo esta obra-prima de Eduardo Coutinho como uma grande e definitiva alegoria da cena brasileira, pois a pergunta que Jogo de Cena levanta é a mesma que pode ser feita em relação à performance de nossa classe política: como detectar a diferença entre uma conduta verdadeira e uma simulação para esconder intenções inconfessáveis? Ao nos perguntarmos “O que é verdade e o que é simulação?” nos vemos diante da questão fundamental do jogo político: “O que é democracia e o que é demagogia?”
Como bem já se disse muitas vezes a respeito da vida política, que as idas e vindas de opiniões, intenções de votos, acordos e desacordos, mentiras e traições, seguem padrões que lembram os de um verdadeiro jogo de cena, onde os cidadãos eleitores se sentem como meros espectadores de uma imensa e passiva platéia e não como os principais protagonistas da ação política, os sujeitos ativos da ação de eleger e se fazer representar pelos políticos. Como os grandes dribladores do futebol, que se arriscam a perder um gol feito, mas não a chance de enfeitar a finta mais desconcertante jogando para a arquibancada, fazendo a torcida se revoltar, desestimulando o eleitorado no exercício da plena cidadania de vigiar os mandatos e os governos que é a base da democracia.
Jogo de Cena é a comprovação de que, se a cultura brasileira é setorialmente competitiva com qualquer cultura de primeiro mundo, lamentavelmente, no setor cultural que perpassa todos os demais setores, que é a cultura política propriamente dita, e que estrutura a identidade cultural de um país como um todo, estamos abaixo da crítica.
Vale a pena conferir este clímax da expressão cultural do cinema brasileiro e a decisiva contribuição que as artes e a mídia podem dar ao desenvolvimento de uma cultura de plena cidadania. Sobretudo num momento em que só resta à cidadania mais consciente a missão histórica de resgatar da miséria cultural a nossa representação política, onde se finge, se engana, simula e dissimula mais do que o mais talentoso dos atores! Onde o jogo de cena é falar para a platéia, mas fazer diferente na hora de votar apenas por interesse privado ou corporativo. Principalmente nos casos das demagogias de cortes de impostos e aumento do custeio do Estado, fiscalização de repasses da União e aprovação de emendas de obras em redutos eleitorais, apoio a privatizações e nomeações de apaniguados em cargos de estatais, atendimento de demandas e privilégios do funcionalismo público, ampliação de políticas assistencialistas e muitas outras, que servem apenas para onerar os tributos de setores produtivos.
Prova inconteste de que não distinguimos ainda a função de representação política da função da representação teatral, a realidade da fantasia! E se lançarmos uma enquete - quem joga mais para platéia? O ator, o jogador ou o político? - daria este último sem dúvida alguma!