Tenho comentado aqui o processo de corrupção de valores da sociedade brasileira e apontado para algumas instituições como responsáveis pela sua perpetuação ou pela sua superação. Em tempos de julgamento de mensalão, é crescente a exigência de moralidade pública por parte de pelo menos vinte milhões de eleitores empenhados na superação da nossa cultura de transgressão por uma cultura de plena cidadania. Temos dito que o Brasil tem mudado, muito embora setores da vida política, do judiciário, do empresariado, da academia e da mídia ainda resistam a esta ideia que nos parece evidente. Estamos todos a exigir responsabilidades de todos: responsabilidade civil do cidadão comum, responsabilidade fiscal dos governantes, responsabilidade social dos empresários, responsabilidade política dos mandatos parlamentares, responsabilidade moral da mídia, enfim de todos diante de todos, a condição da paz social e da própria liberdade.
Todavia, não fui questionado por nenhum representante de nenhum destes segmentos, com exceção de um amigo produtor de conteúdo de entretenimento, que me alegou exatamente o limite moral de sua função, muito embora concordasse com a crítica que faço à mídia brasileira como espaço público por excelência. Se os sistemas de representação política, do judiciário, da educação e empresarial têm falhado no dever moral de resgate e transmissão de valores, por que não se tenta a mídia, cuja qualidade de conteúdos é uma das mais reconhecidas pela própria sociedade? Não tendo aceitado a cobrança, me alegou seus dilemas morais entre introduzir ou não cenas de construção de valores em seus roteiros, dados os direitos de livre consciência por parte do telespectador numa sociedade democrática. Além do que o canal para o qual trabalha já faz merchandising social em suas novelas para além de campanhas filantrópicas. Esclareci que não me referia à cidadania de solidariedade, traço jesuítico de nossa formação cultural, mas a valores cívicos e morais. E comecei a listar o repertório de valores corrompidos no nosso imaginário social, se não produzidos, com certeza reproduzidos pela mídia:
1. A mórbida cobertura sensacionalista de toda sorte de delitos em detrimento direto das respectivas penas; mais da delinquência política dos governantes do que da ação das organizações sociais de controle e monitoramento do poder público;
2. A cidadania representada sempre como intitulação, antes de direitos sociais do que de deveres políticos; antes como solidariedade do que como legalidade ou moralidade pública;
3. A representação da coisa pública como “algo de ninguém”, necessariamente degradada, ao invés de “algo de todos” e por todos cuidada;
4. A deturpação do valor transcendente da vida pelas condições "sociais" da vida;
5. A deturpação do valor da justiça pelo pleonasmo da justiça “social”;
6. A deturpação do valor da igualdade perante as leis pela utópica "igualdade social”;
7. A representação indistinta de estado e governo;
8. A usurpação do lugar simbólico de Deus, da religião e da família pela exacerbação do Estado-provedor e sua representação indistinta como estado patrão, melhor empregador e empresário;
9. O entendimento deturpado da liberdade enquanto ausência de leis ou limites, licenciosidade ou privilégio, numa perspectiva de identidade; e não enquanto liberdade de se fazer o que quer limitada à perspectiva da alteridade, do outro também poder fazer o que quer;
10. O valor da propriedade representado por caricaturas de edificações neoclássicas de palacetes ou fábricas de chaminés; e não a propriedade imaterial e intelectual, da liberdade de escolha do destino de um bem privado e até de si mesmo;
11. A visão deturpada do poder executivo como o poder dominante quando a rigor é apenas o poder que executa o orçamento aprovado no legislativo e as sentenças exaradas do judiciário; e a consequente sub-representação da função judiciária do estado, ou seja, a sua própria origem ontológica;
12. A deturpação do conceito de controle social, tomado mais como controle dos governos sobre a sociedade do que, exatamente o contrário, o controle social da sociedade sobre os governos, os mandatos e a boa aplicação do orçamento público;
13. O empresário privado visto apenas como o grande empresário ganancioso e explorador, e a consequente redução da responsabilidade social empresarial a uma propaganda de reputação institucional limitada à responsabilidade socioambiental e excluída a sua responsabilidade política;
14. A redução da participação política do cidadão ao dever, e não ao direito, de votar nas eleições; e a redução da ação política à astúcia, vontade e poder de caciques partidários;
15. A redução da representação das instituições de estado mais às instituições de segurança pública e coerção policial do que às instituições jurídicas e de controle e fiscalização do poder público;
16. O falso dilema entre a natural eficiência da gestão privada e a pretensa virtude dos valores públicos, ou a generalização dos vícios de ambos;
17. A redução da moralidade pública à moralidade religiosa e a falsa equivalência conceitual entre moral e ética; a redução da exigência da moralidade pública a meras campanhas moralistas;
18. A omissão das doutrinas políticas conservadoras, ou mesmo liberais, diante da superexposição das doutrinas socialistas e socialdemocratas;
19. A deturpação do conceito de contribuinte ao invés de pagador de impostos;
20. A deturpação do sentido de educação política, que passa a ter cunho meramente político-partidário e não de responsabilidade política de todos os cidadãos em fiscalizar e cobrar resultados de mandatos e governos.
Antes que meu amigo me voltasse a justificar seus limites morais, interrompi o inventário com a provocação sobre seus dilemas morais. Era ou não seu dever moral interferir na reprodução deste imaginário social totalmente corrompido e colaborar para a superação do chamado "merchandising social" ao menos por um merchandising verdadeiramente cívico? Ficou de pensar e me retornar com os votos de um país melhor para todos nós em 2013.