05 fevereiro 2013

Santa Maria e a justiça dos homens

Diante dessa tragédia inominável que se abateu sobre jovens inocentes em Santa Maria cabe aqui uma reflexão sobre a responsabilidade civil e criminal, que é apenas o sentido primeiro da cidadania, e a consequente responsabilidade política, sentido último de uma plena cidadania. Evidentemente, o momento agora é de dor, solidariedade e de investigação sobre as causas da catástrofe e suas consequências criminais. Mas é preciso também que a ação de investigação, a cargo da Polícia Civil e do Ministério Público, faça a devida apuração de eventuais responsabilidades administrativas e criminais de órgãos e agentes públicos dos próprios governos estadual e municipal, aos quais compete a fiscalização de estabelecimentos de frequência pública, e que podem inclusive ser indiciados por eventual negligência e omissão na prevenção e fiscalizaçãocontra eventuais sinistros. A intensa sucessão de reportagens na mídia tem se constituído numa oportunidade inigualável para o aprendizado de massa do processo de conscientização sobre a própria cultura de cidadania. Se num primeiro momento se clama por solidariedade, num segundo se clama por justiça. Na busca de fazer as instituições funcionarem no processo investigatório, logo veremos o despertar do exercício da plena cidadania quando se começar a cobrar dos governantes as condições de as mesmas funcionarem.

Com a tragédia de Santa Maria, um ou outro noticiário nos deu conta de como funcionam os programas de prevenção contra catástrofes em países de cultura política mais avançada, como atuam as autoridades de fiscalização e as instituições de apuração de responsabilidades, de indiciamento e julgamento dos culpados. A mídia também nos faz lembrar de casos semelhantes, ocorridos no nosso passado recente. Destaco aqui o ocorrido na casa de show Canecão Mineiro, em Belo Horizonte em 2003 pela rigorosa semelhança com o caso da Boate Kiss de Santa Maria. Mesmíssimos fatores de risco: queima de fogos em local fechado, superlotação, falta de saídas de emergência adequadas, sinalização e extintores inadequados e fiscalização precária do poder público. Na época, depois da responsabilidade comprovada pela investigação da Polícia Civil, o Ministério Público entrou com ação civil na justiça contra o próprio estado, na figura do Corpo de Bombeiros, e contra a prefeitura, responsável pela fiscalização e concessão de alvará de funcionamento ao estabelecimento. Depois de perder nas duas instâncias do TJ mineiro, o Ministério Público recebeu o acórdão final do Superior Tribunal de Justiça, que não poderia ser mais emblemático: “não existe nexo de causalidade entre a alegada omissão do poder público e o incêndio ocorrido”. Ou seja, para os ministros do STJ, se o Estado não fiscalizou - e com isso deixou centenas de pessoas à mercê de uma falsa “fatalidade” - tudo bem. Ele não poderia ser responsabilizado por nada. Justiça só para as pessoas físicas: o empresário da banda e alguns integrantes, e o dono da boate, que foram condenados apenas àprestação de serviços comunitários. É, portanto, de estarrecer como o crime compensa no Brasil, ao contrário do que nos ensinam nações de cultura de cidadania política mais desenvolvida!

Se somos campeões de empreendedorismo e incansáveis geradores de riquezas, apesar da concorrência desleal de agentes da lei corruptos e agentes da economia informal e ilegal, não conseguimos influir em políticas públicas e olhar para mais além do que nossos legítimos e imediatos interesses privados. Um eventual julgamento de autoridades e governantes omissos,no caso de Santa Maria hoje, seria diferente da estapafúrdia absolvição no caso de Belo Horizonte de uma década atrás? Pois bem, para o exercício de uma plena cidadania temos de refletir sobre a nítida falta de independência do judiciário, principalmente de suas maisaltas cortes, em relação ao Poder Executivo, como salientou o Ministro Joaquim Barbosa no seu discurso de posse ao criticar o processo de indicação e escolha atualmente em vigor. Como se sabe, os presidentes de cada Tribunal de Justiça estadual são escolhidos pelo governador do estado, através de uma lista nem sempre representativa da vontade de todo o corpo de magistrados. E os ministros do STJ e do próprio STF o são pela presidência da República. O que esperar então de decisões judiciais que pleiteiam a condenação do Estado, na figura de governantes que os nomeou?

Setores do próprio Judiciário começam a se articular contra esse sistema. A Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, a Amaerj – Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro – e outras entidades congêneres defendem há algum tempo uma maior democratização na escolha dos integrantes desses tribunais. Assim como uma PEC do Senador Cristóvam Buarque, parada na CCJ sem relator designado, que tira dos poderes executivos a escolha de presidentes de tribunais e ministros de cortes superiores.

No caso de Santa Maria, o Ministério Público estadual já instaurou inquérito civil público para apuração de responsabilidades civis, para além das criminais. Resta saber se, passados dez anos, não evoluímos nada em termos de cultura política e de cidadania e o destino desse inquérito será o mesmo daquele de Minas, que não enxergou nexo de causalidade entre uma tragédia evitável e a responsabilidade do Estado em prevenir, fiscalizar, multar e julgar os que acham que normas e leis são apenas entraves de dificuldades para se vender facilidades.